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Após 48 anos, dentista torturado na ditadura é indenizado em R$ 1,1 milhão

O dentista Osmar Gomes da Silva, na Paróquia de Nossa Senhora do Rosário, na Pompeia, em Santos (SP) - Maurício Businari/UOL
O dentista Osmar Gomes da Silva, na Paróquia de Nossa Senhora do Rosário, na Pompeia, em Santos (SP) Imagem: Maurício Businari/UOL

Maurício Businari

Colaboração para o TAB, de Santos (SP)

10/06/2023 04h00

Aos 83 anos, o dentista Osmar Gomes da Silva está prestes a receber uma indenização de R$ 1,1 milhão da União pelos cinco meses em que foi torturado e mantido como preso político nos porões do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações de Defesa Interna), durante a ditadura militar, há quase cinco décadas.

No início de maio, após 16 anos de batalhas judiciais, ele teve finalmente reconhecida a injustiça cometida contra ele em 1975, quando foi sequestrado de seu consultório, em Santos, no litoral de São Paulo, e levado para a capital. A ação indenizatória, porém, não será, segundo ele, capaz de apagar as lembranças amargas e as marcas da violência sofrida.

Silva nasceu em 1939, no bairro portuário do Macuco, filho de um ensacador de café que trabalhava nos antigos Armazéns Gerais do porto de Santos, e de uma enfermeira que cuidava de pacientes no IAPM (Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos).

Desde menino frequentava as missas da Paróquia São José Operário e tornou-se coroinha. Depois, na adolescência, continuou a conviver com a comunidade católica do bairro, nas reuniões da comunidade de jovens da igreja.

O pai, como todo trabalhador operário, lia a Voz Operária, o jornal do Partido Comunista Brasileiro. E Silva, apesar da pouca idade, o ouvia falar sobre as dificuldades das classes mais pobres, como a de sua família, mas sonhava virar dentista.

Com muito esforço, Silva triunfou no seu objetivo. Aprovado na Faculdade de Odontologia da USP (Universidade de São Paulo), mudou-se para uma pensão na capital, estudava durante o dia e trabalhava à noite. Em 1964, formou-se. Meses depois, era declarado o golpe militar. Silva então retornou a Santos e abriu um consultório. E foi lá, atendendo aos clientes das classes trabalhadoras, que se tornou um militante.

"Eu atendia pessoas ligadas aos sindicatos. Santos sempre foi uma cidade conhecida por seus movimentos sindicais, tanto que passou a ser chamada de 'cidade vermelha' durante o regime. Esse meu contato com militantes do partido e intelectuais me levou à filiação ao Partido Comunista do Brasil, em 1969", conta o dentista.

Na época, seu pai morreu e ele se casou, mas nem a mulher, nem a mãe, sabiam da militância. A clandestinidade, lembra Silva, era obrigatória em tempos de ditadura. Os membros usavam codinomes — à época, surgiam rumores do desaparecimento de quem não sinalizava obediência ou concordava com a subserviência aos militares.

"O Partido Comunista caiu na ilegalidade. Os militares inventaram que éramos terroristas, que usávamos armas, quando, na realidade, o que buscávamos era multiplicar o conhecimento e a filosofia de construção de um mundo melhor e mais justo para as classes menos favorecidas", explica o dentista.

O dentista Osmar Gomes da Silva, 83, receberá indenização por ter sido preso e torturado na ditadura - Maurício Businari/UOL - Maurício Businari/UOL
Imagem: Maurício Businari/UOL

Milagre econômico e sequestro

Nos anos 1970, o crescimento econômico do país durante o "milagre econômico" contribuiu para a legitimação do regime, popularizando a ditadura. E foi justamente nessa época de efervescência do anticomunismo que Osmar "desapareceu" de seu consultório, no bairro da Aparecida, em agosto de 1975.

"Eu estava atendendo um paciente, quando minha assistente entrou na sala e disse que havia na recepção alguns 'senhores' querendo falar comigo. Eles me agarraram e levaram para um carro estacionado na rua. Quando entrei, colocaram um capuz na minha cabeça e eu passei um bom tempo no banco de trás, espremido entre dois homens, seguindo para um destino desconhecido."

Quando o capuz foi retirado, Silva já estava num ambiente escuro, sem janelas e repleto de militares. Era o mal-afamado DOI-Codi. Após responder a um breve interrogatório, foi jogado em uma cela com outros cinco rapazes. Tempos depois, descobriu que havia sido delatado por companheiros que foram presos antes dele.

"Sabíamos das prisões de outros companheiros, mas ninguém sabia o que acontecia lá dentro. Até então ninguém havia saído e contado a história."

Osmar Gomes da Silva, dentista que recebe indenização de R$ 1,1 mi por prisão e tortura na ditadura - Maurício Businari/UOL - Maurício Businari/UOL
Osmar, com seu advogado Alexandre Amaral dos Santos, leem o depoimento de Osmar escrito à mão e entregue à Justiça
Imagem: Maurício Businari/UOL

Cadeira do dragão

Silva conta que o local possuía diversos salões, corredores e celas. Na cela em que estava, havia apenas alguns colchões velhos, jogados no chão. Não demorou muito para que o dentista começasse a ouvir gritos e o choro desesperado de mulheres e homens ecoando nos corredores.

"Um dia me chamaram para tentar arrancar informações de mim, perguntando em que bases eu militava, com quem eu me encontrava e coisas assim. Respondia que não sabia e eles [os militares] disseram: 'Então você vai responder na 'cadeira do dragão'", lembra.

Tiraram sua roupa e o sentaram numa cadeira metálica, ligada a uma máquina de choque. "Não há como descrever a dor excruciante daquilo. E o cara [um dos militares] não parava de fazer perguntas e girar a manivela da máquina de choque. Mas eu não delatei ninguém. Não sei como aguentei."

Outra técnica de tortura, descreve Silva, consistia em colocar um arame eletrificado no ouvido do preso para que a dor fosse mais intensa, sentida no tímpano e no ouvido interno. Após um tempo, a sensação era de que o cérebro estava fritando, segundo relata.

O "telefone" também era um método recorrente. Para essa prática, era escolhido um militar mais musculoso, que colocava a pessoa sentada em uma cadeira, enquanto, com as duas mãos, ele dava um forte tapa em ambos os ouvidos. A pressão fazia com que, muitas vezes, o tímpano estourasse e a pessoa era jogada na cela, de volta, com os ouvidos sangrando.

Entre uma sessão de tortura e outra, os presos eram colocados em viaturas e levados para o "passeio", uma ronda pelas cidades de origem, para que locais de reunião dos "comunistas" e até outros "suspeitos de subversão" fossem apontados pelos prisioneiros.

"Aquilo era o inferno na Terra. Se existe o inferno, ele estava ali, nos porões do DOI-Codi. As torturas eram constantes, não sabíamos quando era dia e quando era noite e já nem dava para contar o tempo. A comida se parecia com dejetos, onde eles despejavam grandes quantidades de salitre. Até hoje não sei o porquê, mas era intragável."

Carta escrita à mão pelo dentista Osmar Gomes da Silva, narrando sua prisão e tortura no DOI-Codi em 1975 - Maurício Businari/UOL - Maurício Businari/UOL
Carta escrita à mão pelo dentista Osmar Gomes da Silva, narrando sua prisão e tortura no DOI-Codi em 1975
Imagem: Maurício Businari/UOL

A morte de Herzog

O dentista foi mantido prisioneiro na mesma época que o jornalista Vladimir Herzog, morto dois meses depois de sua chegada, em 25 de outubro. Ele o conhecera antes de ser preso. E diz, com toda a certeza, que a versão de suicídio justificada pelos militares é "uma grande mentira".

"Ele foi morto lá dentro pelos militares. Não aguentou as torturas. Éramos companheiros de corredor, mas nunca nos encontramos. Fui saber que ele estava lá quando a notícia da morte dele se espalhou. Aquele foi o momento da virada, o começo do fim da ditadura."

Silva foi libertado na véspera do Natal de 1975. Estava fraco, muitos quilos mais magro e com uma barba que "parecia a de um náufrago". Quando chegou em casa, surpreendeu a todos, sua esposa ficou "petrificada", como se tivesse visto um fantasma. Sua mãe o abraçava e chorava. "Eu sobrevivi", disse a elas.

A relação com a esposa nunca mais foi a mesma e ela, com medo, pediu a separação tempos depois.

Catarse literária

Silva precisou de muito tempo para conseguir superar os traumas. Por anos, os gritos, os cheiros e até a sensação de dor permaneciam vívidos em sua memória. Até que encontrou na redação literária uma forma de terapia. Ao longo dos anos, escreveu três livros. Em nenhum deles, porém, ele conta sobre os horrores que vivenciou.

"Optei por escrever sobre a minha infância, minha juventude. Contos sobre a cidade de Santos. Decidi que superaria o que passei sem nunca falar nada sobre isso. Até hoje, não vejo certos tipos de filmes ou livros, como dramas e histórias de guerra ou de opressão militar. Me disparam gatilhos de traumas que levei muito tempo para superar. Só agora, com a ação na Justiça, me permiti reviver essa história."

Osmar Gomes da Silva, dentista que recebe indenização de R$ 1,1 mi por prisão e tortura na ditadura - Maurício Businari/UOL - Maurício Businari/UOL
Osmar lê seu primeiro livro, 'Rumo ao Paraíso e outras histórias'
Imagem: Maurício Businari/UOL

Ação milionária

Desde 2006, Silva luta na Justiça para ser indenizado pelo Estado pelos tormentos que enfrentou. Em maio, segundo o advogado Alexandre do Amaral Santos, o STJ (Supremo Tribunal de Justiça) certificou a ação como "trânsito em julgado", ou seja, a decisão é definitiva, não cabendo recursos.

"A Justiça reconheceu o direito de Osmar à indenização, que inicialmente era de R$ 100 mil e agora conseguimos majorar para R$ 1,1 milhão. À União cabe apenas recurso em relação aos cálculos do valor", explica o advogado. "Esse valor leva em consideração os juros e a correção monetária, que correm desde a data em que foi movida a ação, há 16 anos."

A ação foi construída sobre documentos fornecidos pelo próprio Estado, com dados, nomes e datas das prisões. Já os relatos sobre as torturas foram fornecidos pelo dentista, em um documento escrito de próprio punho.

Silva diz que não sabe ainda o que fará com o dinheiro, caso a União decida pagar integralmente a quantia aprovada na ação. "O mais importante é o símbolo, é o que representa. Ganhar o reconhecimento de que fui injustiçado e tornar público que fui um dos muitos torturados por aqueles monstros que eram os militares. Isso representa, para mim, a vitória da democracia."