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Torturado lembra 'condicional' que viveu na ditadura; delegado já esqueceu

O engenheiro João Casimirov em frente à Praça dos Cristais, em Brasília: ex-militante da ALN foi torturado na ditadura - Ana Lima/UOL
O engenheiro João Casimirov em frente à Praça dos Cristais, em Brasília: ex-militante da ALN foi torturado na ditadura Imagem: Ana Lima/UOL

Carlos Tautz

Colaboração para o TAB, do Rio

16/05/2023 04h00

Dois-oito-oito-meia-meia-sete-cinco.

Ainda hoje, esse número de telefone no estado de São Paulo está fresco na memória do projetista aeronáutico aposentado João Casimirov, 76. Sem falhar, entre o final de 1974 e agosto de 1979, às vésperas da promulgação da Lei de Anistia, esse ex-militante da ALN (Ação Libertadora Nacional) telefonava diariamente ao delegado Cláudio Guerra e a outra pessoa que se identificava como "Flávio".

"Fui solto [Casimirov foi torturado por uma semana e depois liberado], com o compromisso de informar diariamente o que eu estava fazendo, onde estava trabalhando. Ele me ofereceu emprego para trabalhar com ele e ingressar na USP para continuar meu curso de engenharia, mas não aceitei. Ele queria que eu desse informações", relata Casimirov ao TAB.

O relato veio à tona a partir de uma pesquisa inédita, coordenada pelo Centro de Antropologia Forense da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), em convênio com o Ministério Público Federal e o Ministério Público de São Paulo, que investigam as relações entre empresas estatais e privadas com a ditadura militar. Os primeiros resultados serão divulgados nos dias 6 e 7 de junho na Unifesp.

Casimirov, que também se aproximou do MR-8 e do PCdoB, chegou a treinar tiro no ABC paulista em preparação para atuar na guerrilha que os comunistas organizaram no início da década de 1970 na região do rio Araguaia, no Pará. Antes de viajar, porém, foi preso pela Operação Bandeirantes — comando de repressão política integrado por policiais civis e militares de São Paulo, financiado por grandes indústrias sediadas no estado.

João Casimirov, em frente à Praça dos Cristais, em Brasília: ele foi preso e torturado por ter militado na ALN, durante a ditadura - Ana Lima/UOL - Ana Lima/UOL
Libertado, Casimirov teve que ligar todo dia, durante cinco anos, para um número de telefone e contar sua rotina
Imagem: Ana Lima/UOL

'Ajudei muita gente'

O ex-militante, que hoje vive com a esposa em Brasília, lembra que foi transportado em um Fusca velho pelo delegado Guerra e outro policial de volta para sua casa, em Mauá, na Grande São Paulo. Depois, foi levado para a residência de sua sogra, onde estavam a esposa e um filho recém-nascido. Segundo Casimirov, Guerra até conversou com seu sogro antes de o libertar, sob o compromisso de dar os telefonemas.

Oferecer dinheiro e emprego em companhias monitoradas por militares, além de matrícula em faculdades públicas, era uma das táticas usadas para cooptar militantes de esquerda e levá-los à delação dos companheiros.

Hoje, Guerra se apresenta como Pastor Cláudio e atua no Espírito Santo. Recrutado nos anos 1960 na Polícia Civil capixaba pelo falecido coronel Freddie Perdigão para reprimir a esquerda no Brasil e até em Angola, Guerra admite que, sobre Casimirov, "alguma coisa está vindo na memória. Mas, aos 82 anos, a minha memória não está muito boa".

O ex-delegado conta que "fazia tipo um acompanhamento para 'restaurar a pessoa', para ver se não entrava em nada mais errado. Não que eu achasse que a busca de terminar com a ditadura fosse coisa errada. Mas, para mim, era. Eu estava de um lado e os outros estavam do outro", diz Guerra ao TAB, por mensagem de WhatsApp.

"Ajudei muita gente, não foi só ele. Eu não lembro especificamente dele, mas coisas estão vindo na minha mente de que realmente eu fui com algumas pessoas na casa", diz.

João Casimirov, em frente à Praça dos Cristais, em Brasília: ele foi preso e torturado por ter militado na ALN, durante a ditadura - Ana Lima/UOL - Ana Lima/UOL
Imagem: Ana Lima/UOL

Benefícios às empresas

Guerra ainda está sendo processado pela participação no comando paralelo de civis e militares que fez explodir, em 1º de maio de 1981, uma bomba no Riocentro, zona oeste do Rio. Na explosão, que não atingiu o show de MPB onde estavam milhares de pessoas, morreu o sargento do Exército Guilherme Pereira do Rosário e ficou gravemente ferido o capitão Wilson Dias Machado, hoje coronel da reserva. Ambos preparavam o artefato dentro de um automóvel.

De sua parte, Casimirov recupera facilmente a memória nas entrevistas conduzidas por pesquisadoras da Unifesp — que também investigam as ossadas encontradas na vala clandestina do cemitério de Perus, em São Paulo.

Divididos em dois grupos, são 13 as empresas investigadas. O objetivo é descobrir o papel que grandes empresas tiveram na violação de direitos durante a ditadura.

"No país a partir de 1964, um regime autoritário se organizou e expandiu estruturas violentas e repressivas sob a justificativa de conter o 'perigo comunista'." Em um contexto global de Guerra Fria, com a disputa entre os blocos socialista e capitalista, desenvolveu-se no Brasil a "Doutrina de Segurança Nacional".

Em troca de espionagem sobre seus trabalhadores, grupos econômicos nacionais e internacionais foram beneficiados com políticas públicas, que incluíam de isenção de impostos a autorizações para aumentarem suas tarifas e preços, além de conivência com a vigilância política sobre os funcionários e seus sindicatos.

Emprego na Embraer

Projetista aeronáutico aposentado, Casimirov conta que teve dificuldades de se reempregar após a prisão. Passou oito anos em empregos temporários até ser contratado pela Embraer — então uma empresa estatal, repleta de militares sem função operacional definida.

Apesar de seu passado de militância armada, ele teria conseguido a vaga devido à sua capacitação em engenharia, à ajuda de amigos funcionários e à pressa da Embraer em dar andamento ao projeto do caça AMX. O projetista foi contratado após uma semana de testes profissionais — aparentemente sem que a empresa tivesse averiguado seus antecedentes junto ao SNI (Serviço Nacional de Informações). Casimirov entrou na Embraer em 1982 e saiu após a greve de 1984.

O Ministério Público sustenta que várias leis obrigam as empresas a prestarem conta de sua atuação no passado. No âmbito civil, essa obrigação estaria nos artigos 1145 e 1146 do Código Civil; no trabalhista, conforme alteração da Lei 13.467/17, artigo 448-A; e, no campo tributário, como obriga a lei 5.172/66.

A Embraer — que não respondeu ao pedido de posicionamento sobre as acusações — está em um grupo de três empresas investigadas, juntamente com as metalúrgicas Belgo e a Mannesmann, cujos relatórios de pesquisa serão apresentados em dezembro.

Os resultados da pesquisa sobre um outro conjunto de dez companhias — Aracruz, Companhia Docas de Santos, Petrobras, Fiat, Itaipu, Josapar, Paranapanema, Cobrasma, CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) e Folha de S.Paulo — serão divulgados em seminário nos dias 6 e 7 de junho, na Unifesp.