Brasileiro obcecado com Luiz Gama recebe prêmios inéditos na Alemanha
Na bússola mental de Bruno, todos os caminhos levam a Gama. Das feiras-livres de São Paulo, que ele frequentava na infância com os pais feirantes, às ruas movimentadas de Frankfurt, onde ele mora, depois que se tornou pesquisador do Instituto Max Planck.
Todos os caminhos levam a Gama porque Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882) é a obsessão de Bruno Rodrigues de Lima, 34, desde sempre. A ponto de ele ter montado uma tabela, com base em artigos publicados em jornais e documentos jurídicos produzidos por Gama, considerado o patrono da abolição da escravidão no Brasil, com informações sobre 3,5 mil dias da vida do jurista negro.
Esse afinco fez com que Bruno desenvolvesse sua peculiar trajetória acadêmica. "Eu pregava a palavra do Gama todos os dias, era aquele chato que passava de sala em sala na universidade divulgando a vida e a importância do Gama", diverte-se ele, que começou a cursar direito na PUC-Campinas (Pontifícia Universidade Católica de Campinas), mas deu um jeito de se mudar para Salvador, terra-natal do Gama, para conseguir estudá-lo melhor — e acabou se formando na UNEB (Universidade do Estado da Bahia).
Todos esses caminhos, percorridos muitas vezes numa cadeira de rodas — pois Bruno sofre de uma doença autoimune chamada espondilite anquilosante e precisou do equipamento em determinado período da vida —, devem estar na mente dele nesta quarta-feira (21), quando ele vai receber um prêmio na cidade de Göttigen: a medalha Otto Hahn da Sociedade Max Planck. A cerimônia terá a presença do chanceler da Alemanha.
No segundo semestre, ele também será laureado com o prêmio Walter Kolb de melhor tese de doutorado da Universidade de Frankfurt. Tornando-se, assim, o único latino-americano a ganhar a Otto Hahn esse ano e o segundo desde 1957 a ganhar o Walter Kolb.
"Acho que o reconhecimento acadêmico alemão a um trabalho sobre história da escravidão no Brasil reflete como recentemente a Alemanha tem discutido seu passado colonial", avalia ele.
"Do ponto de vista pessoal, esse momento é bem significativo. Sou egresso do ensino médio público, ingressei na universidade através do ProUni, fui cotista, entrei no mestrado da UnB e, depois, sem falar uma palavra de alemão, vim com bolsa de doutorado-sanduíche, logo cortada pelo governo Bolsonaro", recapitula.
"Num momento de incerteza, já sem bolsa e com o visto prestes a expirar, consegui uma vaga de doutorado pleno em Frankfurt. Defendi a tese em tempo recorde e a lançarei em livro em duas edições simultâneas [em inglês e em português; o ministro Silvio Almeida assina o prefácio da edição brasileira]."
Um quilombo e o abolicionista
Bruno ouviu falar pela primeira vez de Luiz Gama quando morava em Itatiba, no interior paulista. Tinha 13 anos e engajou-se em uma luta popular pelo reconhecimento daquele que depois seria o primeiro quilombo urbano do país, o Brotas. Em meio às reuniões que traçavam a estratégia da luta, soube que eles teriam de ser tão hábeis como Luiz Gama, um advogado autodidata negro que utilizava as próprias leis para libertar escravos antes mesmo da Lei Áurea.
A partir de então, ainda na adolescência, passou a seguir os rastros do notável jurista. A opção pelo curso de direito lhe pareceu natural, posto que iria seguir os passos do seu grande mestre. Mas a frustração veio porque aparentemente ninguém queria levar a sério, naquela época, a ideia de estudar Gama.
"Quero que a lei seja uma verdade respeitada [?] e não um joguete pernicioso posto fortuitamente nas mãos da imbecilidade", era a frase do Gama que passou a funcionar como lema na vida de Bruno.
Nesse meio-tempo, ele já tinha feito uma viagem para Salvador, cidade natal de Gama, para buscar material sobre o jurista e decidido trocar de curso. Tornar-se um historiador especializado no jurista virou seu desejo.
No meio do caminho, veio a doença.
Luta contra a corrente
Em agosto de 2008, quando trabalhava como estagiário na Associação dos Advogados Trabalhadores Rurais em Salvador, começou a sentir sintomas estranhos: primeiro um inchaço no braço esquerdo, depois no ombro, o tornozelo, uma quase paralisia... "Eu não sabia que raio era aquilo, mas aí não conseguia mais andar de bicicleta", lembra.
Acabou sendo diagnosticado com a doença autoimune da qual sofre até hoje. O tratamento o trouxe de volta a São Paulo, para temporadas de um mês na Santa Casa, quando aproveitava para refinar a pesquisa. "Eu ia pesquisar no Arquivo do Estado de São Paulo ou no Arquivo Geral do Tribunal de Justiça", recorda.
Entrou no doutorado na UnB (Universidade de Brasília) já de olho em Frankfurt, pois conhecera num congresso de história do direito um professor alemão que pareceu interessado no tema, o jurista e historiador Thomas Duve.
"Eu queria ler o que o Gama leu, eu queria cada vez mais pesquisar e entender os livros jurídicos que eram a base do direito brasileiro do século 19, livros que eram citados nos processos movidos por ele", explica Bruno. E, por incrível que pareça, essa bibliografia era mais fácil de ser encontrada em Frankfurt do que em uma universidade brasileira.
Seu orientador na UnB, o jurista Marcelo Neves, que havia morado lá, o incentivou a buscar uma experiência alemã."O trabalho de Bruno é pioneiro porque ele conseguiu ainda muito jovem reunir toda a obra de Luiz Gama, um abolicionista, advogado, negro", salienta Neves. "Sua trajetória é uma luta realmente contra a corrente e, para um brasileiro, ganhar esse prêmio é algo muito relevante."
"As contribuições da tese de Bruno para o avanço dos conhecimentos atuais são inúmeras", concorda a pesquisadora Ligia Fonseca Ferreira, estudiosa da obra de Gama e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). "O material que ele analisou é formado em grande parte por fontes jurídicas primárias que até agora não tinham sido exploradas."
Café novo, jornal velho
Em sua rotina, em Frankfurt, Bruno diz que mantém o hábito de acordar, passar um café, e ler o jornal. Mas não o jornal do dia — mesmo porque ele ainda não aprendeu alemão. "Leio uma edição de algum jornal contemporâneo ao Gama, a partir da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional", conta.
Com isso, vira e mexe descobre algum artigo ainda desconhecido de Gama. E acaba puxando alguma história que ninguém estudou.
Entre livros jurídicos do século 19 e jornais digitalizados, Bruno reconstitui um Brasil que não existe mais, mas é essencial para entender o país de hoje. Por isso, não se incomoda e se orgulha de ser "o chato que leva a palavra do Gama".
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