'Um viado falando pra esse país': Trevisan expõe dores em autobiografia
O caminho é incontornável: quem escolhe mexer com suas próprias memórias precisa estar pronto para relembrar gozos e, sobretudo, encarar as dores. "Tudo que estou fazendo é um tratado da dor humana", explicava o escritor João Silvério Trevisan, usando-se como exemplo para uma turma de alunos de sua oficina de autobiografia, ministrada no início de maio na biblioteca Mário de Andrade, na região central de São Paulo.
Acostumado a dar aulas de escrita há quase quatro décadas, pela primeira vez Trevisan experimentou um curso exclusivamente voltado a idosos que desejam escrever suas próprias histórias. "Estou enfrentando uma depressão profunda, mas quando vi o anúncio dessa oficina, decidi participar. Talvez me ajude no processo de cura", apresentava-se uma das participantes, uma psicanalista.
Na sala, cerca de 20 pessoas ouviam as provocações do escritor para estimular o processo criativo e, principalmente, encarar o que ele chama de "espelho literário". "Esse é o papel da literatura, não é brincadeirinha, não é fru-fru. É transmutar a realidade, refazer nossa relação com o mundo com o olhar renovado", diz, semanas depois, ao TAB. "Mas a gente precisa encarar nossos demônios. É o encontro mais próximo da sua intimidade. A gente passa a vida inteira fugindo de coisas odiosas."
Durante quatro tardes, o grupo se reuniu para ouvir lições e relatos de Trevisan e desenvolver o esboço do que pode vir a ser o livro de suas vidas. "Graças à literatura, estou vivo e sobrevivi", confessava ele mesmo.
Um projeto de vida que também interessa ao escritor, jornalista e histórico ativista do movimento LGBTQIA+, prestes a completar 79 anos no próximo dia 23. O homem que ajudou a contar — e a formar — a história dos homossexuais no Brasil agora escancara ele mesmo a sua história. "Era exatamente o que eu queria fazer no final da minha vida como escritor", diz. "Você passa a vida inteira tentando olhar para dentro e não consegue. Uma vida inteira é insuficiente para um conhecimento mínimo que a gente possa ter."
Trilogia da dor
João Silvério Trevisan acaba de lançar "Meu Irmão, Eu Mesmo" (Alfaguara), a segunda parte de uma trilogia autobiográfica iniciada em 2017. Na primeira, "Pai, Pai", o escritor escrutina sua relação insustentável com José, um homem alcoólatra e violento — que, além do desprezo, a única coisa que deu ao filho foi "um espermatozoide", como o autor escreve na abertura do livro.
"Fui encontrando esse cara tão ausente em tudo quanto é espaço da minha vida: na minha vida física, na minha vida psíquica, minha vida artística", desabafa o escritor, sentado na sala de casa, no centro de São Paulo.
A negligência paterna, no entanto, fora inversamente proporcional ao amor do irmão, Cláudio, a quem Trevisan dedica o novo livro. A amizade entre eles — repleta de confidências, sonhos, tristezas e alegrias — é o centro da narrativa. "Esse cara foi essencial para me dar um pouco de segurança emocional e afetiva, saber o que é ser amado por um irmão e amar meu irmão", afirma. Cláudio morreu em 1996, aos 48 anos, em decorrência de um câncer linfático.
A viagem para dentro de si também fez com que Trevisan revelasse, pela primeira vez, viver há 30 anos com o HIV. O diagnóstico da infecção se deu em 1992, sob uma nuvem de desinformação e preconceito, carregada por uma espécie de sentença de morte.
"Eu queria tornar público, porque sabia do meu papel público, mas não podia esquecer minha vida. Eu tinha que me defender e o estigma dentro da comunidade ainda é muito brabo, ainda hoje", diz. "Levei tanto chute na bunda por ser positivado."
Longe de ser uma "autoajuda", como faz questão de ressaltar Trevisan, a obra forja uma espécie de "confraria da dor", onde ele se encontra com os leitores que também sofrem. "Há que ser feito um esforço imenso para tornar essa dor visível e palpável, e nessa visibilidade, nessa palpabilidade, certamente comparecerão as dores de quem entra em contato com as minhas", diz.
A última parte da trilogia ainda não tem data para ser lançada, mas vem sendo rascunhada há quarenta anos: "Antropofágico Amor", em terceira pessoa, falará da dor de uma paixão, numa história que envolve nomes conhecidos. "É um troço barra pesada, cara. É sobre um amor que quase acabou com a minha vida. Tem cicatriz para caralho, e eu fiquei muito tempo tentando tocar na caixa e não conseguia. Era de uma dor insuportável."
'Apagamento homossexual'
A conversa com TAB aconteceu dias antes da Parada do Orgulho LGBT+, hoje um evento de grandes proporções e carro-chefe da agenda turística da capital paulista. Como faz em toda edição, Trevisan estará na rua, neste domingo (11), com o chapéu cinza e a gravata-borboleta.
"Tenho uma alegria sem tamanho com as Paradas, cara. A importância política é imensurável não só para a comunidade, mas para o país. A comunidade LGBT era um zero à esquerda do ponto de vista político. Para conseguir dez gatos-pingados para qualquer coisa, era um Deus nos acuda", relembra o autor, cuja obra — que perpassa a literatura, o cinema e o teatro — é fundamental para a representação e visibilidade LGBTQIA+.
"Na Parada tem essa demonstração clara, à luz do dia. As pessoas felicíssimas, ainda que não saibam porra nenhuma, mas a quantidade de jovens que vão gritando slogans, numa felicidade imensa: 'Icha, icha, icha, eu sou mais é bicha'... As meninas são muito atrevidas, não estão nem aí, de mãos dadas, gritando, pintando e bordando. É uma vivência politicamente palpável, do ponto de vista de evolução que houve", diz ele.
Trevisan ajudou a população LGBTQIA+ a escrever sua própria história, inúmeras vezes subjugada. Em 1978, esteve na fundação do jornal Lampião da Esquina, primeiro jornal gay do país, e do Grupo Somos, espécie de gênese do movimento LGBTQIA+. Também biografou sua comunidade — em "Devassos no Paraíso", faz um apanhado histórico da homossexualidade no Brasil.
E fez tudo isso arcando com o ônus do preconceito. "Senti, minha vida toda, que sempre desconfiaram de mim. Percebo as pegadas que me foram deixadas, mas o grande motivo é a minha homossexualidade e o momento em que botei isso para fora", desabafa. "Não tenho o reconhecimento que mereceria. Em muitos sentidos, eu abri espaço e penei por isso. Fui punido severamente."
Chamado de obsceno pela ditadura militar e de inadequado pela esquerda, que considerava a homossexualidade um problema burguês, Trevisan conta ter ouvido inúmeras vezes que seu problema como escritor era ser militante.
A discriminação é resultado de "um apagamento homofóbico, e que nos persegue", classifica. Isso o relegou a escrever apenas para nichos, nunca num caderno de cultura de jornal. "Não sou um viado falando para viado. Sou um viado falando para esse país, e o meu ponto de vista enquanto viado é privilegiado, porque é um ponto de vista da margem. Estou me comunicando com um país, no qual eu vivo, com o qual eu dialogo, o qual me faz sofrer, o qual me faz feliz."
Coisa próxima do divino
"Uma pergunta que me faço é: será que vai sobrar alguma coisa da minha obra daqui 20 anos?", confidenciou Trevisan aos alunos da oficina de escrita. "Meu desejo é compartilhar a vida que vivi."
No último dia de aula, uma mulher mais velha leu por alguns minutos o resultado de um mergulho muito íntimo. Falava sobre as expectativas da mãe e narrava, sem meias palavras, uma tentativa de suicídio. Trevisan ouviu a história com atenção.
Às lágrimas, ela afirmou que o processo da escrita despertou emoções que em anos de terapia ela não tinha experimentado. "Fico feliz em ouvir isso", disse o escritor. "Vocês não são os únicos que saem daqui com coisas novas."
"Gosto da ideia de que você chega num momento da literatura em que você toca o seu mistério. Aí você, nesse momento, sabe que você tirou alguma coisa próxima do divino", explica, ao TAB. "Não é um vômito, mas, ao mesmo tempo, é parte do meu caos interior que eu estou vertendo."
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