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Edy Star, 1º artista gay assumido: 'o que a censura proibia a gente tinha'

Artista e cantor baiano Edy Star - Júlia Rodrigues/UOL
Artista e cantor baiano Edy Star
Imagem: Júlia Rodrigues/UOL
Tiago Dias, Do TAB e em São Paulo

15/10/2022 04h00

Em 1973, a dupla Erasmo e Roberto Carlos compôs uma canção que seus fãs, naquele início de reinado romântico nas FMs, nem chegaram a conhecer. O rock chamado "Claustrofobia" iniciava com um pedido: "E dou vexame porque preciso de espaço. Quero respirar senão acabo no bagaço, atravessando o compasso".

Os versos davam voz a alguém que clamava por espaço, "senão eu grito", repetia no fim do refrão. Nem Erasmo, nem Roberto chegaram a gravar. A música foi feita a pedido de um artista baiano em ascensão no teatro musical: Edy Star.

Artista plástico e um dos performers mais quentes da noite carioca nos anos 1970, Edy estava prestes a gravar seu primeiro disco solo, "Sweet Edy", e pedia canções para conhecidos. Entre eles, o amigo de adolescência de Salvador, Gilberto Gil, que assim definia o amigo: "uma bicha baiana maravilhosa".

A música dos reis da Jovem Guarda era metáfora numa época em que a comunidade LGBTQIA+ sequer conseguia se identificar por letras, mas tinha como habitat um armário bem trancado. Não era o caso de Edy, que protagonizaria, dois anos depois, a adaptação brasileira do musical "Rocky Horror Show", vestido de biquíni e espartilho no palco.

A censura, claro, ficou em cima o tempo todo. Nas fotos de divulgação, Edy aparecia apenas de macacão e a música principal do espetáculo, "Sweet Transvestite", foi vetada por trazer a palavra "travesti". Ainda assim, ele lembra bem a sensação de liberdade que corria na cena carioca, do Teatro Rival às boates da Praça Mauá. Ali, ele era o rei da noite. "Tinha strip-tease, nu frontal, show lésbico, um anão nu que corria pelo palco", diz. "Tudo que a censura proibia, a gente tinha."

A três meses de completar 85 anos, Edy mantém os cabelos compridos e a cabeça fervilhante de histórias, que relembra com rompantes de deboche e gargalhadas altas. Se, no decorrer do tempo, seus amigos e conhecidos atingiram as alturas, Edy se tornou uma figura cult: participou de filmes, dirigiu peças, foi dono de puteiro em Madri e é celebrado até hoje pela parceria com Raul Seixas no álbum coletivo "Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10" (1971), objeto de culto e item valioso entre colecionadores.

Edy Star também entrou para a história involuntariamente. Apesar de tantos homossexuais conhecidos, ele levou a fama como o primeiro artista brasileiro a se assumir homossexual — pelo menos através da imprensa. Foi durante uma entrevista para a revista "Fatos e Fotos". Perguntado ao que ele creditava todo o sucesso, Edy respondeu: 'Porque eu assumi o que eu sou'.

A frase foi destacada e correu como uma revelação bombástica, apesar de óbvia. "Eu pensei: 'ué, mas todo mundo não sabia?'", conta, quase envaidecido. "Achei tudo maravilhoso. Meu bem, não me abatendo fisicamente, o resto você pode. Pode falar tanto 'filha da puta!' quanto 'maravilhoso!'", exclama.

Artista e cantor baiano Edy Star - Júlia Rodrigues/UOL - Júlia Rodrigues/UOL
Imagem: Júlia Rodrigues/UOL

Artista e cantor baiano Edy Star - Júlia Rodrigues/UOL - Júlia Rodrigues/UOL
Imagem: Júlia Rodrigues/UOL

'Senão eu grito'

Edy Star desce as escadas do Cabaret da Cecília, um bar com ar de prostíbulo antigo, onde ele costuma se apresentar, na região central de São Paulo. Aparece de bermudinha e camiseta preta. Com as unhas pintadas de preto e lápis nos olhos, ele imita um jeito de diva ao se dirigir ao pequeno palco vazio: "Quero luzes de plateia!"

Nas últimas semanas, ele está sob alguns holofotes, em shows-celebração de "Sociedade da Grã-Ordem Kavernista", e no lançamento de seu primeiro livro, "Diário de um Invertido" (editora Noir), com memórias anteriores à saída do armário na revista. São escritos de antes da maioridade e passam quase ao largo de suas experiências sexuais. São mais relatos das descobertas românticas na Salvador dos anos 1950. "Nesse tempo eu não tinha essa percepção de escrever esse tipo de coisa. Sempre fui um apaixonado", pontua.

O livro é um documento histórico, que registra os conflitos e prazeres dissidentes daquela sociedade baiana — "Imagina! Homem de Havaianas era um escândalo. Camisa vermelha? Pulseiras? Nem pensar!", ele relembra. Em um dos textos daquela época, Edy desabafa: "Sempre chorava e ficava com ódio de mim mesmo ao pensar que só eu no mundo fazia tal ato de torpeza".

Naquela década, a palavra "viado" o seguia por todos os cantos. "Eu não era pintosa, tinha medo da porrada. Eu não reagia, porque eram sempre umas três pessoas que ficavam em volta", diz. Tinha quem o ameaçava de outro jeito. "Se não der pra mim, vou alarmar". Edy faz um olhar entre tímido e malicioso: "Eu não era besta, né".

Ainda assim, teve seu momento de revelação, quando comprou o livro "Homossexualismo masculino" (termo hoje banido), do médico legista Jorge Jaime. Queria descobrir exatamente aquilo que ele era. A obra, enraizada na ideia da homossexualidade como uma anomalia, apontava aquela vivência como um desvio a ser curado ou punido.

Edy Star nos anos 1950 na Praça Castro Alves em Salvador - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Edy Star nos anos 1950 na Praça Castro Alves em Salvador
Imagem: Acervo pessoal

Com os amigos da Praça Castro Alves, espaço de sociabilidade gay na cidade - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Com os amigos da Praça Castro Alves, espaço de sociabilidade gay na cidade
Imagem: Acervo pessoal

"Todos os exemplos eram gays que morriam de lepra, eram assassinados ou então se suicidavam. Naturalmente, me senti um maldito. Eu não estava preparado para isso", conta. Edy só saiu da autopunição quando conheceu a Rua Chile e, depois, a Praça Castro Alves, que atraía e consolidava um espaço de sociabilidade homossexual em Salvador. A palavra "gay" sequer existia naquele vocabulário. Ali, Edy e tantos outros eram "entendidos" — "que entende, que faz", seja enrustido ou não.

Aqueles homens eram como ele — e não pareciam sofrer de moléstias, pelo contrário. "Ninguém se suicidou. Descobri pessoas como eu que eram felicíssimas. Então eu resolvi ser feliz também", diz, enquanto segura os cabelos ondulados com as mãos adornadas com anéis e pulseiras que guarda daquele período — "tudo prata", avisa.

Na Praça Castro Alves, todas se chamavam por nome de mulher. Carlos era Carmem, Luiz era Elizete. Edy ficou conhecido como Grace Kelly, mas não por muito tempo. A convivência fez surgir uma nova persona, mais combativa, principalmente quando aparecia por lá alguma gangue querendo apavorar as paqueras. "Não tinha Tinder, meu amor."

A qualquer sinal de ameaça, Edy era o primeiro a pegar qualquer coisa no chão. "Não brigo de mão, brigo com pau na mão. Eu já gritava: 'vamboooora'. Quando via, tinha 20 viados para oito garotos. Era uma batalha campal, eu botava pra correr." Ganhou uma nova alcunha: Bofélia. "A bicha mais bofe que aquela turma conhecia."

Artista e cantor baiano Edy Star - Júlia Rodrigues/UOL - Júlia Rodrigues/UOL
Imagem: Júlia Rodrigues/UOL

Cavalo velho, capim novo

Edy nasceu Edivaldo Souza em Juazeiro, na Bahia, numa família de cinco filhos, pai vendedor e mãe dona de casa. A arte entrou na vida na pré-adolescência. Já em Salvador, na Rádio Sociedade da Bahia, era um dos cantantes no programa infantil "Hora da Criança".

Nos anos 1950, Edy passou a trabalhar como desenhista-vitrinista da loja "O Cruzeiro". Estudava à noite e depois caía nos bares e puteiros dando canja com Glauber Rocha e Gilberto Gil, que na época tocava acordeom na TV Itapoã.

Em casa, o problema nunca foi com quem saía e amava, mas sim a boêmia e a falta de um trabalho fixo. "Me acordavam de manhã e gritavam: vagabundo!", lembra. Decidiu então fazer o curso de Especialista em Petróleo pela Petrobras e foi trabalhar no campo de extração, em São Francisco do Conde. "Vivia sujo de petróleo. Eram quase 2 mil homens, muito bullying, mas eles não tinham coragem de dizer na cara, porque eu tinha uma posição acima."

Numa das folgas mensais a que tinha direito, acabou fugindo com o Circo Fekete, que excursionava pelo Norte e Nordeste. Ali, ele era "Edy, o Embaixador do Rock". Vestia malha de balé, lenço no pescoço, bengala, mocassim e cantava o sucesso do momento, "Broto Legal". Com uma fã de circo, teve seu primeiro filho, com quem se encontra regularmente. Já com a segunda filha, também fruto da estrada, perdeu contato — "mas não sou bi", faz questão de dizer.

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Imagem: Júlia Rodrigues/UOL

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Imagem: Júlia Rodrigues/UOL

Quando voltou do circo, passou a dividir a mesma banda de Raul Seixas nas chamadas "sessões de rock" que aconteciam mensalmente no Cine Roma. Conheciam-se desde crianças, por morarem próximos no bairro de Monte Serrat e dividirem as atividades do famoso fã-clube da cidade, o Elvis Rock Club.

Certa vez, os dois brigaram após uma apresentação. Raul teria ficado incomodado com a performance de Edy no palco — e com a reação efusiva da plateia, que parecia ofuscar sua apresentação. "Eu já entrava botando pra quebrar, querido", diz, com as mãos pra cima e as pulseiras a tilintar. "Eu viadérrimo, cantando 'La Bamba', descia na plateia. O Raul, por ciúmes ou não, achava uma afronta ter que acompanhar aquele viado."

O incômodo ficou evidente e Edy pregou uma peça. Ligou para Raul se passando por uma fã. Falou horrores de si mesmo e o amigo entrou na onda. Ele gargalha até lacrimejar ao relembrar. "Que coisa ridícula! Ficamos amicíssimos logo em seguida, até a morte."

Foi o único sinal de desconforto que sentiu com algum amigo. Com Roberto, ele conta, adorava fazer piada."Eu sacaneava: 'quero muito fazer aquilo que você faz com o Erasmo, um bunda lelê'. Ele dizia pra eu aproveitar, porque ele estava solteiro. Eu respondia: 'Outra vez, Roberto? Quero não, esse pau deve ser uma merda!", relembra. "O que eu posso fazer? Eles adoravam meu jeito."

Já no teatro, ele foi chamado pela censura algumas vezes. "Sempre por bobagem. Fazia um pot-pourri com músicas sobre peito e vinham me questionar. Eu dizia: 'Você quer que eu tire meu peito, meu senhor?'."

Seu visual andrógino e o jeito irreverente chamaram atenção da TV Globo na época. Chegou a ser contratado da emissora, mas diz que ficou na geladeira. "Nunca gravei um programa, não sei se por homofobia. Não faço a menor ideia."

Talvez por isso tenha desencanado de seguir a carreira fonográfica. Quando o disco solo saiu, em 1974, ele disse ter odiado. "Tinha também um ranço da Globo, porque quem fez a orquestração era o Guto Graça Melo, que cuidava da trilha das novelas", observa.

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Imagem: Júlia Rodrigues/UOL

De qualquer forma, Edy nunca revisita o trabalho musical, muito menos o baú que guarda em casa com manuscritos, fotos, cartas. Prefere fazer planos novos, como o projeto de gravar um álbum com "músicas gays internacionais". A primeira mostra saiu em single, junto com o livro. "¿A quién le importa?", hit oitentista da banda pop rock espanhola Alaska y Dinarama, se tornou um hino para a comunidade, principalmente depois de ser regravada por Thalía.

Irreverente, ele diz querer queimar todo seu arquivo antes de morrer. E sobe a voz para debochar do reconhecimento pós-mortem que costuma recair a tantos artistas malditos, como ele: "Depois que eu morrer, vai ganhar dinheiro fazendo biografia minha? Você tá doido! Grande artista o caralho. Morri, porra!"

O romantismo do crepúsculo da adolescência, cujo relatos ele diz ter revisitado apenas com o livro publicado, ele diz ainda estar afiado. "Não entro no Tinder. Pra conquistar, eu gosto de olho no olho. Em qualquer lugar que eu vou, eu já chego cantando os garçons. Pra mim isso é um exercício. Eu sei que não vai acontecer nada, mas é uma prática", diz, envaidecido. "Cavalo velho gosta de capim novo."