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Aos 81, Benedita da Silva volta para liderar Bancada Feminina na Câmara

Coordenadora-geral da Bancada Feminina, Benedita da Silva volta aos holofotes na Câmara dos Deputados aos 81 anos - Mauro Pimentel/AFP
Coordenadora-geral da Bancada Feminina, Benedita da Silva volta aos holofotes na Câmara dos Deputados aos 81 anos Imagem: Mauro Pimentel/AFP

André Borges

Colaboração para o TAB, de Brasília

08/06/2023 04h01

Quando Benedita da Silva pisou no carpete da Câmara dos Deputados pela primeira vez, em 1986, não existia banheiro feminino no plenário. Ela olhou para um lado e para o outro. Procurou um rosto parecido com o seu. Nada viu.

O ambiente inóspito às parlamentares revelava-se ainda mais hostil para uma mulher negra e favelada, como ela própria se intitulava, num país transfigurado pela ditadura militar e em plena transição democrática.

Na ocasião, a deputada eleita aos 44 anos caminhou até a tribuna e discursou: "Queremos proclamar a nossa abolição. Não é ódio, nem rancor. É apenas um grito de liberdade."

Quase 40 anos depois, o eco das palavras de Benedita pôde ser ouvido novamente no Salão Nobre da Câmara. Aos 81 anos, ela assumiu a coordenação geral da Secretaria da Mulher na casa. Cercada por dezenas de deputadas, agradeceu o apoio e lembrou dos tempos em que não encontrava "ninguém parecida" com ela nos corredores.

Perfil Benedita da Silva - André Borges/UOL - André Borges/UOL
Na posse como coordenadora da Bancada Feminina, com a bebê de Talíria Petrone (PSOL-RJ) no colo
Imagem: André Borges/UOL

'Isso não foi feito pra nós'

"A verdade é que isso aqui não foi feito pra nós. Nós é que insistimos, resistimos e vencemos", resumiu. Tem sido assim, desde os tempos em que a menina Bené caminhava pelas vielas dos morros do Rio.

Benedita Souza da Silva Sampaio nasceu na favela da Praia do Pinto — que ficava no Leblon e não existe mais —, em 26 de abril de 1942, quando o plano de construção de Brasília não passava de um amontoado de papéis.

Filha da lavadeira Maria da Conceição Sousa da Silva e do pedreiro José Tobias da Silva, cresceu no Morro do Chapéu Mangueira, no Leme. A pobreza extrema a empurrou cedo para o trabalho. Vendia limão e amendoim nas ruas para ajudar a família. Aos 7, foi estuprada por um amigo dos pais. Guardaria esse segredo por décadas. Evangélica desde o fim dos anos 1960, apegou-se à religiosidade para lidar com a violência sofrida e só revelou o crime após a morte dos pais.

Benedita foi mãe de quatro filhos, mas perdeu dois ao nascer. Aos 21, decidiu fazer um aborto, assustada pela fome e pelo desemprego que vivia.

Perfil Benedita da Silva - Marlene Bergamo/Folhapress - Marlene Bergamo/Folhapress
Orando ao lado de Lula e Marina Silva, em ato de campanha com evangélicos no ano passado
Imagem: Marlene Bergamo/Folhapress

Encontro com Lula

De trabalhadora doméstica a vendedora ambulante, Bené passou a se envolver com a organização de mutirões para calçamento, esgoto e iluminação. Logo, passou a atuar como professora voluntária, mesmo sem formação, alfabetizando jovens e adultos pelo método do educador Paulo Freire.

Líder comunitária, apresentava-se com o slogan "mulher, negra e favelada", fez curso de auxiliar de enfermagem e graduação em assistência social. No fim dos anos 1970, ouviu falar do metalúrgico que puxava o movimento de trabalhadores em São Paulo: Luiz Inácio Lula da Silva.

O nome dela também chegara aos ouvidos de Lula, que quis conhecê-la. A criação do Partido dos Trabalhadores aconteceu em 10 de fevereiro de 1980. Dois anos depois, Bené tornava-se a primeira mulher negra eleita vereadora no Rio pelo PT.

Lobby do batom

Os quatro anos na Câmara Municipal do Rio projetaram seu nome para o cargo de deputada federal constituinte em 1986. Naquele ano, apenas 26 mulheres compunham a Câmara, com suas 513 cadeiras. Elas decidiram somar esforços numa aliança de vários partidos.

Conhecido como "lobby do batom", o bloco garantiu avanços para as mulheres na nova Constituição, como licença-maternidade de 120 dias e medidas contra a violência doméstica.

Eleita em 1986 com Benedita, a deputada Lídice da Mata (PSB-BA) relembra: "Ela sempre teve uma atuação firme em defesa das mulheres, sobretudo as mulheres negras e trabalhadoras domésticas. Não perdeu sua essência, mas acumulou muita experiência, sobretudo neste período dos governos Temer e Bolsonaro, em que travamos juntas diversas lutas contra retiradas de direitos."

O desempenho de Benedita lhe rendeu a reeleição em 1991 e pavimentou seu caminho para o Senado. Em 1994, tornou-se a primeira senadora negra da história. Sua popularidade e trajetória viraram até tema de samba-enredo de Carnaval. "Quem tem magia no pé, é Pelé. Quem vem na força da fé, é Mandela. E a voz que veio de lá, da favela, é da guerreira Bené, salve ela", cantou a Caprichosos de Pilares em 1998.

Perfil Benedita da Silva - Carolina Fernandes/Folha Imagem - Carolina Fernandes/Folha Imagem
Fazendo as pazes com a então governadora Rosinha Matheus no Palácio da Guanabara em 2003
Imagem: Carolina Fernandes/Folha Imagem

De passagem pelo Guanabara

O mandato de senadora não chegaria ao fim. Em 1998, ela voltava ao Rio para assumir, como vice-governadora, a chapa com Anthony Garotinho (PDT). A relação entre os dois, que têm formação evangélica, foi cordial só no início. O PT acabou por romper com o então governador, que decidiu concorrer à Presidência contra Lula. Em abril de 2002, Garotinho passou o bastão para Benedita, que governou o Rio por nove meses.

A ex-senadora assumiu o posto, queixando-se de não ter tido acesso à real situação das contas públicas. O ex-governador a chamou de "covarde" e agiu para minar qualquer plano para a sucessão dela no estado.

Quem venceu a eleição seguinte foi Rosinha Garotinho, esposa do ex-governador, com 51,3% dos votos válidos. Benedita ficou em segundo, com 24,45%. O casal Garotinho acabaria preso em 2019, acusado de participação em esquemas de superfaturamento.

Perfil Benedita da Silva - Bruno Stuckert/Folha Imagem - Bruno Stuckert/Folha Imagem
Ao lado do colega de Esplanada, ministro Gilberto Gil, durante o primeiro mandato de Lula
Imagem: Bruno Stuckert/Folha Imagem

De volta à Esplanada

A vitória de Lula em 2002 como presidente trouxe Benedita de volta a Brasília. Em 2003, ela assumiu o Ministério do Desenvolvimento Social. Deixou o posto um ano depois, fustigada pela denúncia de que teria utilizado recursos da União para participar de um evento religioso na Argentina.

Só retornaria ao Congresso em 2010, novamente como deputada federal — reeleita em 2014, 2018 e 2022 — somando cinco mandatos. O histórico como parlamentar foi marcado pelo projeto que instituiu a Lei das Domésticas, que passou a garantir direitos trabalhistas para as trabalhadoras do lar.

Sua trajetória, porém, não deixou de esbarrar em acusações de irregularidades. Em 2015, Benedita foi acusada de improbidade administrativa pelo MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro). A denúncia apontou supostas fraudes em convênios com ONGs e fundações, quando ela comandava a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio, entre 2007 e 2010. Benedita ocupou o cargo no primeiro mandato do governador Sérgio Cabral, que seria preso.

Até 2022, acusações do MP ainda não tinham sido julgadas pelo Tribunal de Justiça do Rio, por isso Benedita pôde se candidatar.

Sua família também foi alvo de investigações. Em 2014, o MP mirou os dois filhos da deputada, Pedro Paulo, morto em abril do ano passado aos 58 anos, e Nilcea da Silva, 58. Os dois foram acusados de constarem numa lista de funcionários fantasmas da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Em 2021, eles foram obrigados a devolver salários e pagar multas, além de terem direitos políticos suspensos por oito anos.

A morte de Pedro Paulo, que tratava de um câncer havia dois anos, é descrita por pessoas próximas de Benedita como um dos momentos mais difíceis de sua vida.

Perfil Benedita da Silva - Claudia Martini/AM Press & Images/Folhapress - Claudia Martini/AM Press & Images/Folhapress
Em manifestação pelo Dia Internacional da Mulher na Cinelândia, Rio
Imagem: Claudia Martini/AM Press & Images/Folhapress

Mediação com os evangélicos

Ao lado de Lula e do PT, Benedita sempre teve papel central na articulação do partido com o eleitorado evangélico. Fequentadora da Igreja Presbiteriana Betânia, Benedita teve suas digitais nas "cartas aos evangélicos" divulgadas por Lula em suas campanhas eleitorais.

Coube a Benedita reunir-se com a cúpula do partido e redigir o documento em 2022. "Essa relação do PT com o eleitor evangélico é sempre construtiva e necessária", contemporiza ela ao TAB. A deputada rechaça a ideia de que sua base eleitoral esteja atrelada apenas ao universo religioso. "Devo minha eleição à minha trajetória e capilaridade política, com o apoio de várias camadas da sociedade do Rio, do jovem ao idoso, do morador de comunidade ao morador de classe média", ressalta.

Benedita enumera medidas aprovadas pelas gestões petistas, como a Marcha para Jesus — que acontece nesta quinta-feira (8), em São Paulo, e o Dia do Pastor. "Lideranças de algumas igrejas resolveram fazer política mesmo sem estarem filiadas, colocando seus representantes em todos os partidos. Estão transformando o púlpito em palanque. Isso não é bom para ninguém."

Perfil Benedita da Silva - Sergio Lima/Folhapress - Sergio Lima/Folhapress
Em 2013, no Senado Federal, comemorando a aprovação da PEC das Domésticas
Imagem: Sergio Lima/Folhapress

Rostos como o dela

Na tarde de terça-feira (23), enquanto aguardava o momento de discursar na cerimônia de posse da coordenação-geral da Bancada Feminina, Benedita da Silva segurava no colo o bebê da recém-eleita Talíria Petrone (PSOL-RJ). Diferentemente de 37 anos atrás, quando pisou no Congresso pela primeira vez, Benedita olhou para o lado e viu outros rostos parecidos com o dela.

"Ela é uma referência. Sem Benedita, o Congresso seria um lugar ainda mais hostil ao nosso corpo e à nossa luta", diz Talíria. Para Dandara Tonantzin (PT-MG), a veterana parlamentar "representa, para nós, mulheres negras, nos espaços de poder, a certeza de que nossos passos vêm de longe e que, se temos cada vez mais espaço no Legislativo e no Executivo, é porque muitas mulheres dedicaram as suas vidas a abrir caminhos".

Apesar dos avanços da representatividade na política, persistem no Congresso os reflexos do racismo estrutural que atravessa a história do país.

Perfil Benedita da Silva - AgNews - AgNews
Entre a enteada Camila Pitanga e o marido Antônio Pitanga, no show de Teresa Cristina em 2022
Imagem: AgNews

Misoginia parlamentar

Em dezembro de 2014, o então deputado do baixo clero Jair Bolsonaro afirmou, na tribuna da Câmara, que a deputada Maria do Rosário (PT-RS), que hoje compõe o comando da Bancada Feminina ao lado de Benedita, não merecia ser estuprada. Disse que a considerava "muito feia" e que não fazia seu "tipo".

Bolsonaro foi condenado ao pagamento de R$ 10 mil de indenização por danos morais.

A Lei de Crime Racial é de 1989, mas sua aplicação nem sempre é observada na casa. "Já teve segurança que me barrou e me impediu de entrar numa comissão", conta Dandara. "Outro dia cheguei no restaurante do plenário e não fui atendida pelo garçom. A justificativa foi: 'Não tem deputado sentado nessa mesa'."

A deputada petista considera que, "se em pleno século 21 eu passo por isso, imagina o que Benedita sofreu?"

Há quem veja com desconfiança, porém, a escolha de Benedita para a Bancada Feminina. Perguntada, a bolsonarista Júlia Zanatta (PL-SC) ironizou: "Desde que ela me considere mulher...". E emendou: "Nunca falei com ela, mas a gente, mulher de direita, tem muita dificuldade. Espero que ela deixe as divergências de lado para lutar pelo que é interesse de todas as mulheres, sejam de direita, esquerda ou centro."

A deputada Gleisi Hoffmann, presidente do PT, rebate dizendo que seu partido elegeu a maior bancada e que Benedita nunca excluiu qualquer sigla. "O estímulo ao preconceito é um instrumento da extrema direita. Temos que enfrentar isso. A Bené simboliza essa resistência."

A bancada de mulheres em 2022, a maior da história da Câmara dos Deputados, tem 91 parlamentares, o que representa 17% do total de vagas da casa. Entre as deputadas negras, o número saltou de 13 para 29, mas significa apenas 6% das 513 cadeiras.

"Se colocássemos todas as eleitas desde 1932 até hoje, teríamos 329 nomes. Não encheríamos o Plenário da Câmara", lamenta Benedita. "Precisamos mudar essa realidade e garantir que as mulheres, que são mais de 50% da população, estejam representadas nos espaços eletivos, de poder e decisão."

Para ela, uma das prioridades hoje é assumir pautas de maior relevância. "Queremos garantir que possamos ser relatoras do que eles chamam de grandes projetos, das principais pautas. Não se explica por que esses projetos não chegam à Bancada Feminina", questiona.

Ao fim de sua posse, Benedita não gritou por liberdade como há quase 40 anos. Em vez disso, recorreu aos versos de Edson Conceição e Aloísio Silva: "Quando eu não puder pisar mais na avenida,/ quando as minhas pernas não puderem aguentar,/ levar meu corpo junto com meu samba,/ o meu anel de bamba,/ entrego a quem mereça usar", cantou ela, para a nova geração de parlamentares.