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'Trauma': paratleta é preso mesmo com autorização para cultivo de cannabis

O cadeirante H. M. S. tinha autorização judicial para cultivar cannabis e tratar das sequelas de um acidente de moto. Mesmo assim, foi levado preso - Fernando Moraes/UOL
O cadeirante H. M. S. tinha autorização judicial para cultivar cannabis e tratar das sequelas de um acidente de moto. Mesmo assim, foi levado preso Imagem: Fernando Moraes/UOL

Danila Moura

Colaboração para o TAB, de Santos (SP)

04/03/2023 04h01

No relógio, são 6h da manhã quando o paratleta H. M. S. levanta da cama, sobe em sua cadeira de rodas e dá uma volta com o cachorro antes de tomar seu banho. Estava tranquilo embaixo do chuveiro em sua cadeira de rodas adaptada, quando a brisa boa da manhã se transformou em pesadelo.

"Agentes policiais entraram sem avisar pela porta da minha casa", conta ele, que mora na região da Baixada Santista, no litoral paulista. "Mexeram em tudo até encontrar a cannabis que eu armazenava congelada para utilizar como extrato. As plantas, todas em estado vegetativo, foram arrancadas e colocadas em sacos."

A simples presença desse material em casa não configurava crime, no entanto. "Mostrei o documento do habeas corpus [que permitia a ele o plantio para uso medicinal], mas sequer me deram atenção. Fui tratado como vagabundo", relembra o paciente canábico, um homem negro de 39 anos, ex-campeão da São Silvestre e da Meia Maratona de Miami na categoria cadeirante, que passou sete dias preso após uma denúncia anônima por tráfico de drogas.

O paratleta também teve que lidar com uma acusação de corrupção de menores, por supostamente consumir drogas e realizar atividade criminosa em frente ao filho de 5 anos — antes de ser libertado pelo TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo).

Paratleta preso com HC de cultivo de cannabis - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
'Fui tratado como vagabundo', afirma o paratleta negro, de 39 anos, ex-campeão da São Silvestre
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Dentro da lei

A primeira providência que H. M. S. (que prefere não se identificar com receio de represálias) antes de começar o tratamento com cannabis foi se certificar de que estaria dentro da lei. Com fortes dores na coluna devido às sequelas de um acidente de moto que o fez perder os movimentos — e direcionar sua paixão por artes marciais ao paratletismo —, ele procurou um advogado para obter um salvo-conduto permitindo a importação de sementes e cultivo próprio para fins medicinais.

"Minha mãe escondeu por um tempo que eu não poderia voltar a andar", lembra ele. "Até eu conseguir o laudo, aceitar a realidade e mudá-la."

Após estudar mais sobre o assunto, o paratleta recorreu à Accura, uma associação paulistana especializada em apoio jurídico e orientação para quem deseja se tratar com cannabis. Foi lá que fez um curso de extração certificado e obteve direcionamento para o salvo-conduto.

Com o documento em mãos, desde o ano passado ele fazia sua própria extração de óleo canábico em casa. Até a apreensão pela polícia.

Paratleta preso com HC de cultivo de cannabis - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Ele argumenta que as plantas apreendidas são de cepas com predominância de CBD - típicas para uso medicinal
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Cepas de uso medicinal

O paratleta argumenta que as plantas apreendidas são de cepas com predominância de CBD e pouco THC — ou seja, do perfil mais típico para uso medicinal (embora a lei brasileira também autorize o uso medicinal de THC). E que os "indícios" de tráfico apontados pela Justiça — como a presença de uma balança de precisão e de saquinhos ziplock para armazenagem — são igualmente necessários ao uso medicinal.

Ele também se queixa que os insumos foram pesados congelados, fato capaz de aumentar o quilograma, na tentativa de configurar um suposto excesso de produção.

Ao chegar na delegacia em Santos para defender seu cliente, o advogado Felipe Souza, 30, especialista em Ciências Criminais pela FDRP-USP (Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo), insistiu, sem sucesso, no habeas corpus do salvo-conduto de autocultivo.

Antes da audiência de custódia, Souza requereu liberdade provisória citando a regularidade do cultivo e a necessidade de cuidados especiais de seu cliente devido à paraplegia.

"Apesar de H. M. S. necessitar comprovadamente de ajuda de terceiros para necessidades básicas, o pedido de soltura e prisão domiciliar foi negado", inconforma-se o advogado. "E o pior: converteram a prisão em flagrante em preventiva."

Devido ao acidente, H.S.M. não tem controle dos movimentos da bexiga e do intestino, por isso, precisa de cuidados especiais e sonda para ir ao banheiro. A falta de higiene adequada o expõe a um alto risco de infecções bacterianas graves. Ainda assim, o paratleta - que não tinha antecedentes criminais - permaneceu por sete dias encarcerado, dormindo no chão em uma cela superlotada até a decisão do desembargador Xisto Rangel, do TJ-SP, que o pôs em liberdade.

A experiência deixou traumas físicos e psicológicos no atleta, que tem dificuldades em voltar para casa e passa dias na casa da mãe. "Jamais imaginei que passaria por isso, fui tratado como bandido, fiquei ao lado de criminosos graves em uma situação degradante", diz o paratleta, que responde ao processo em liberdade.

Paratleta preso com HC para cultivo de cannabis - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
'Mesmo necessitando de ajuda de terceiros para necessidades, soltura foi negada', diz o advogado Felipe Souza
Imagem: Fernando Moraes/UOL

História de interdição

A situação vivida por H. M. S. tem raízes centenárias na sociedade brasileira. Em 1830, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro instaurou a primeira legislação no mundo que proíbe a maconha. Na época, a cidade tinha um dos maiores contingentes de escravizados do mundo, enquanto movimentos abolicionistas ganhavam força.

A lei não escondia o racismo ao mencionar o "pango", amplamente utilizado pelos africanos para aliviar as dores das violências sofridas. "É proibida a venda e o uso do 'Pito do Pango', bem como a conservação dele em casas públicas: os contraventores serão multados, a saber, o vendedor em 20$000, e os escravos, e mais pessoas que dele usarem, em três dias de cadeia".

Além de encarceramento, chicotadas estavam inclusas na penalidade.

Hoje, a Lei de Drogas 11.343 aplicada no país em 2006 cumpre papel semelhante ao incentivar o aprisionamento em massa da população negra, muitas vezes por crimes relacionados à maconha, droga considerada leve.

Conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os negros se tornaram 67% dos encarcerados após a promulgação da lei. Houve um aumento de 378% da população carcerária preta no país desde então.

Segundo os críticos da lei, a situação decorre da descrição subjetiva para diferenciar tráfico e uso próprio, baseada em critérios circunstanciais e não-objetivos.

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Traumatizado, ele teme voltar para casa e tem passado seus dias na casa da mãe
Imagem: Fernando Moraes/UOL

'Lei arbitrária'

Doutor em Direito pela USP (Universidade de São Paulo), Cristiano Maronna, autor do livro "Lei de Drogas interpretada na perspectiva da liberdade", acredita que o caso de H. S. M. é exemplar do atraso brasileiro nessa área. "A Lei de Drogas é ferramenta de opressão, racismo, preconceito, discriminação e mau exemplo de como uma lei é aplicada de forma arbitrária", afirma o jurista.

Entre as propostas de mudanças, Maronna acredita ser necessário estabelecer critérios objetivos para a qualificação do tráfico — como estipular quantidades e comprovar que houve comercialização.

Consultada pela reportagem do TAB, a Accura confirma que os itens apreendidos no caso do paratleta são básicos para uso medicinal: "A balança de precisão é tão importante quanto a planta em si, porque é necessária para pesar a quantidade de insumo e fazer as dosagens da extração medicinal. Quando as flores têm finalidade medicinal precisam estar em saquinhos em formato zip lock para serem vedadas de contaminação e oxidação, além de ser uma embalagem que possibilita armazenar em quantidades controladas para uso."

A reportagem tentou, sem sucesso, entrar em contato com a DISE (Delegacia de Investigação sobre Entorpecentes) de Itanhaém (SP). Consultado, o 1 Distrito Policial de Itanhaém afirmou não poder se pronunciar sobre o caso. Procurada para falar sobre os fundamentos da acusação ao paratleta, a assessoria de comunicação do MPSP (Ministério Público do Estado de São Paulo) disse que o processo está sob sigilo.