Topo

Metroviário caiu no trilho, perdeu um braço e continua trabalhando no metrô

Paulo André na estação Clínicas do metrô de São Paulo - Mariana Pekin/UOL
Paulo André na estação Clínicas do metrô de São Paulo
Imagem: Mariana Pekin/UOL

Anahi Martinho

Colaboração para o TAB, de São Paulo

02/03/2023 04h01

Paulo André, 33, voltava de uma festa na rua Augusta, no centro de São Paulo, num sábado de junho de 2019. Era seu dia de folga: operador de transporte metroviário desde 2017, suas atribuições incluíam orientar os passageiros com regras de segurança, participar de resgates e impedir que alguém embarcasse alcoolizado. Naquela madrugada, porém, ele embarcou na estação Consolação e, de tão embriagado, não se lembra como foi parar na estação Clínicas.

Por volta das 8h, Paulo adormeceu sentado num banco, a 3,2 metros de distância do vão da plataforma. Quando ouviu o trem se aproximar, o rapaz de 1,75 m de altura acordou desorientado, levantou de supetão, cambaleou até a plataforma e se desequilibrou, caindo no trilho. Foi atropelado por uma composição.

"Fui resgatado debaixo do segundo carro", conta, usando o jargão dos metroviários. Ele fraturou os joelhos, cinco costelas, duas clavículas, uma escápula, sofreu rupturas musculares graves nas costas e teve o braço direito amputado.

"Pelo jeito como ficou, deduzo que não foi a roda que tirou meu braço, porque teria tirado inteiro. No laudo diz que tinha tendão, nervos e pele ligando o braço ao corpo. Aí tiveram que finalizar a amputação. Provavelmente ele ficou preso e foi arrancado", conta ele, que gesticula muito para detalhar o próprio acidente. "Fui completamente imprudente. É que a gente nunca acha que vai acontecer com a gente."

Excel de amigos

Naquela manhã de junho, quem dirigia o trem na linha verde sentido Vila Prudente era a maquinista Cíntia Adelaide. Ela e Paulo haviam se conhecido na festa de fim de ano do Metrô de São Paulo, dançaram juntos e tinham amigos em comum.

Estação Clínicas do metrô de São Paulo - Mariana Pekin/UOL - Mariana Pekin/UOL
Imagem: Mariana Pekin/UOL

Cíntia acionou a emergência imediatamente, mas a inércia e o peso do comboio não impediram a colisão. A maquinista ficou uns meses afastada do trabalho, fazendo acompanhamento psicológico.

"Ela me visitou no hospital", conta ele. "Aliás, recebi muitas visitas, muito carinho. Uma amiga teve que fazer uma planilha no Excel para organizar minhas visitas, com direito a suplente", diz.

Paulo ficou nove dias em coma, internado no Hospital das Clínicas. Quando acordou, soube pela mãe, Odeva, que tinha perdido o braço. "Ela me contou e começou a chorar. Eu não estava processando direito, mas meu reflexo na hora foi abraçá-la e dizer que ficaria tudo bem."

Paulo André na estação Clínicas do metrô de São Paulo - Mariana Pekin/UOL - Mariana Pekin/UOL
Imagem: Mariana Pekin/UOL

Encontrando o trem I07

Cerca de um ano após o acidente, Paulo fez questão de se reencontrar com a composição que o atropelou, a I07.

"Eu não queria ser refém desse episódio", diz. "Tinha medo de um dia estar com meus amigos, saindo, num momento que era para ser alegre, e passar o I07, e eu começar a chorar e estragar o rolê de todo mundo."

Para evitar ser pego de surpresa, ele decidiu embarcar no trem. Percorreu quase toda a linha verde do metrô, das Clínicas à Vila Prudente, ida e volta, mentalizando cada osso fraturado, cada parte do seu corpo que foi ferida. "Chorei muito, foi catártico. Foi o momento em que reconheci e enfrentei meu trauma."

Paulo é um jovem extrovertido e alto astral. Com ar de alívio, ele relembra os meses penosos da recuperação sempre com certo humor. "A terapia foi importante para entender que era um passo de cada vez. Um passo não, porque eu não andava [na época]. Um dia de cada vez", brinca.

Foram três meses intensos de fisioterapia e terapia ocupacional para voltar a andar, recuperar o equilíbrio e reaprender a fazer tudo com um braço só. "Hoje, estou completamente adaptado."

Paulo André na estação Clínicas do metrô de São Paulo - Mariana Pekin/UOL - Mariana Pekin/UOL
Imagem: Mariana Pekin/UOL

'Não padrão plus'

Atualmente, Paulo mora sozinho com seus dois gatos de estimação. A prótese, que teria função apenas estética, ele dispensa. "Ela serve na verdade às outras pessoas, para se chocarem menos ao me ver", reflete. "É desconfortável para mim, mas traz conforto aos outros. Injusto, né?"

Paulo André na estação Clínicas do metrô de São Paulo - Mariana Pekin/UOL - Mariana Pekin/UOL
Imagem: Mariana Pekin/UOL

A nova vida como pessoa com deficiência fez Paulo dar mais atenção a questões como mobilidade e acessibilidade. "Passei a olhar cada vez mais para isso, a falta de estrutura das ruas, calçadas, ônibus, edifícios, consultórios, condomínios. Se a pessoa não acessa os lugares, ela não é vista e não é normalizada. Por isso falamos tanto de visibilidade."

Outra transformação sentida por ele aconteceu no âmbito das relações afetivas. "Por ser gay, ouvia falas preconceituosas de que eu seria promíscuo. Depois, foi como se tivesse me tornado assexuado, como se a pessoa com deficiência não transasse, não tivesse desejo."

Segundo ele, ser PcD lhe distanciou mais de um corpo padrão. "Sempre fui gordo, sempre fui preto, elementos fora do padrão. Mas a pessoa com deficiência está num outro grau de não padrão. É como se fosse um não padrão plus", diz.

Há um ano, Paulo foi liberado pelo INSS para voltar a trabalhar. Foi realocado para a equipe de comunicação interna do metrô — conta que nunca cogitou deixar a empresa: "Apesar de ter sido o cenário do meu trauma, o metrô é um lugar de conforto emocional para mim".

Paulo André na estação Clínicas do metrô de São Paulo - Mariana Pekin/UOL - Mariana Pekin/UOL
Imagem: Mariana Pekin/UOL