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Sob Bolsonaro, Cultura destinou R$ 30 mi para bicentenário que já passou

Campanha oficial do governo Jair Bolsonaro para o bicentenário da Independência do Brasil - Reprodução/YouTube
Campanha oficial do governo Jair Bolsonaro para o bicentenário da Independência do Brasil Imagem: Reprodução/YouTube
Juliana Sayuri e Helena Aragão

Do TAB, em São Paulo e no Rio

01/03/2023 04h00

Mais de um mês após o 7 de Setembro que marcou o bicentenário da Independência, a Secretaria do Audiovisual e a Ancine (Agência Nacional do Cinema) publicaram um edital que concederia R$ 30 milhões para produções audiovisuais brasileiras independentes, intitulado "Independência 200 anos - 2022".

Datado de 4 de novembro de 2022, quando as luzes do governo de Jair Bolsonaro (PL) já estavam se apagando, após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o documento abria inscrições para o financiamento de minisséries e telefilmes de ficção, animação ou documentário. Os órgãos receberiam projetos entre 8 de novembro e 23 de dezembro de 2022.

Após a transição, o TAB pediu informações sobre o andamento do edital via Lei de Acesso à Informação: o comitê julgador ainda não foi definido e os projetos inscritos não foram avaliados, "em virtude dos trâmites relativos à mudança de governo", informou a atual Secretaria do Audiovisual. "O lançamento do edital aconteceu posteriormente à celebração do bicentenário, portanto, ainda não houve produção ou lançamento das obras."

Editais relacionados a datas comemorativas costumam ser publicados bem antes — e não depois da efeméride, diz a advogada Cecília Rabêlo, 34, presidente do IBDCult (Instituto Brasileiro de Direitos Culturais). Não que haja obrigatoriedade legal, pondera. "Só fica meio esquisito e talvez pouco efetivo, já que perde o 'calor' do momento."

"O bicentenário da Independência deveria ser um projeto prioritário. Num governo normal, seria um grande evento. Mas o foco do 7 de Setembro [no governo Bolsonaro] era outro, a obsessão era mostrar força", conta Mauricio Noblat Waissman, 45, que foi secretário de Desenvolvimento Cultural entre agosto de 2020 e agosto de 2021. Segundo ele, a Secult (Secretaria Especial de Cultura) atuava apenas como "máquina de propaganda para o público interno deles".

"Eventualmente eles criavam na Secult um 'pseudoassunto', como esse edital do bicentenário. Mas nada do que eles anunciavam era realizável, era inércia total."

Passou 2021

Timing não foi o forte do antigo governo nas celebrações da efeméride. No Twitter, Josias Teófilo, diretor do documentário "O jardim das aflições", sobre o finado guru bolsonarista Olavo de Carvalho, cobrou, em julho de 2021: "Nada foi divulgado até agora, e não existe nem tempo hábil para lançar um edital. Bolsonaro foi eleito para combater o socialismo internacionalista. Aí vem o bicentenário da Independência, a data mais importante dos últimos anos para o Brasil, e eles não fazem nada?".

À frente da Secult, Mário Frias (PL) anunciou em agosto de 2021, após o fogo amigo, a abertura de uma linha de crédito de R$ 600 milhões para festejar o bicentenário: "Acabou a bagunça na Ancine", Frias declarou em uma live de Bolsonaro, mas não deu detalhes. Na página oficial do bicentenário, a secretaria anunciou um "edital comemorativo" de R$ 30 milhões para cerca de 20 projetos, julgados por servidores da Secult, da Ancine e por "profissionais do setor audiovisual de notório saber". "Lançamos um edital em comemoração aos 200 anos da Independência do Brasil, que selecionará projetos de obras audiovisuais brasileiras relacionadas ao tema", Frias disse, à época.

Entre fevereiro e março de 2022, o TAB pediu informações sobre a programação do bicentenário da Independência à Secult — faltavam seis meses para a data. Informaram que o edital não tinha data para sair do papel. À época, foi divulgado apenas um vídeo de um minuto da campanha oficial, que ficou marcada pelo tom épico, além de símbolos cristãos, referências monarquistas e heróis brancos.

"O audiovisual no Brasil não ficará refém de palanque político-ideológico", postou André Porciúncula, ex-capitão da PM e número 2 de Frias, ex-galã de "Malhação" e atual deputado federal que também ficou famoso por andar armado na Secult — segundo relatos, instaurando um "clima de DOI-Codi", referência à repressão da ditadura militar (1964-1985). Frias foi exonerado do cargo, no fim de março de 2022.

Lançada naquele mês, a campanha oficial do bicentenário foi alvo de críticas de historiadores pela inclinação monarquista, com símbolos das cruzadas cristãs, um herói idealizado (o jovem príncipe, D. Pedro 1º), e um discurso ultrapassado, ufanista e historicamente incorreto do que foi a Independência — o "Memorial da Soberania", uma página da campanha, por exemplo, retratou o encontro entre indígenas e portugueses como "amigável".

À época, também se criticou a ausência de uma agenda federal com congressos, editais e exposições sobre o marco de 1822. No fim, no calendário oficial, a efeméride estrelou poucos projetos e acabou sendo lembrada no laurel ao coração de D. Pedro 1º (que cruzou o Atlântico para se abrigar no Itamaraty, onde foi visto por apenas 7.570 visitantes) e no coro "imbrochável" que Bolsonaro puxou para se referir a si próprio, no desfile de 7 de Setembro.

Procurado, Porciúncula afirmou que "o lançamento do edital foi pensando para reforçar o imaginário popular sobre os valores da independência do país". "O edital não visava produções audiovisuais feitas e finalizadas na comemoração da independência do ano passado, usamos o ano do bicentenário para lançarmos o edital inédito, valorizando o tema, não foi para apresentar um projeto visual no mesmo ano, o que seria impossível", acrescentou. Frias não se manifestou.

Campanha oficial do governo Jair Bolsonaro para o bicentenário da Independência do Brasil - Reprodução - Reprodução
Campanha oficial do governo Jair Bolsonaro para o bicentenário da Independência do Brasil
Imagem: Reprodução

Passou 2022

Passados o bicentenário, a campanha oficial para a data e o prazo para inscrições do edital, fica a cargo do governo Lula a decisão sobre o destino dos R$ 30 milhões para produções audiovisuais relacionadas à Independência do Brasil.

A produtora Ana Rosa Tendler, 42, inscreveu no prazo um projeto de documentário em longa-metragem, a ser dirigido pelo cineasta Silvio Tendler. O sistema confirma a inscrição, mas não tem mais atualização. Com 20 anos de experiência na área, ela conta que já viu acontecer em outras ocasiões um edital acabar sendo herdado pelo governo seguinte (e, felizmente, ser honrado).

"Ninguém entendeu o edital depois da efeméride, no apagar das luzes do governo. Foi uma incompetência brutal", diz um historiador que inscreveu um projeto de minissérie, mas preferiu não se identificar. "Agora vamos ver como a Ancine vai fazer para organizar e dar celeridade ao processo."

O mais comum, observa o cineasta Douglas Duarte, 46, é "cada administração correr para fazer acontecer e ficar com os louros". O timing perdido indica "um quadro geral de incompetência", considera ele, que é conselheiro do Sudeste da Associação de Produtores Independentes de Audiovisual. "E também mostra a distância entre o discurso patriótico do governo Bolsonaro e suas práticas."

Para um edital dessa dimensão, "o ideal seria ter um ano de antecipação, às vezes até mais, já vislumbrando a divulgação na efeméride, não depois dela", acrescenta a historiadora Giane Souza, 48, que pesquisa políticas culturais há décadas.

"Se a antiga Secult estivesse aberta à participação de instituições históricas e culturais e da sociedade civil, esse descompasso não teria acontecido. Indica o desmonte de políticas culturais no governo Bolsonaro", critica. No governo Bolsonaro, o Ministério da Cultura foi rebaixado a secretaria, sob o guarda-chuva do Ministério do Turismo. Ao assumir, Lula devolveu o status de ministério à área.

"O edital ficar para 2023 pode ser um presente para o governo Lula: sai o discurso monarquista e o viés conservador que estava marcando o bicentenário, e pode abrir caminho para agora se discutir o que foi, de fato, a Independência do Brasil."