Topo

A 6 meses da data, bicentenário da Independência não tem programa oficial

Reprodução/YouTube
Imagem: Reprodução/YouTube

Helena Aragão

Colaboração para o TAB, do Rio de Janeiro

21/03/2022 04h01

O vídeo é um sobrevoo em Brasília. A câmera acoplada a um drone mostra a Esplanada dos Ministérios. Logo aparece um título: Memorial da Soberania. Na panorâmica, a Catedral de Brasília aparece ao fundo e ganha um brilho especial. A música épica dá ares de solenidade aos imensos cartazes que vestem os prédios do governo.

Em evidência, datas marcantes da história brasileira, começando pelo "descobrimento", passando pela divisão em capitanias hereditárias e chegando ao grito do Ipiranga de D. Pedro 1º, sempre acompanhadas da logomarca — um close na mão segurando a espada — e da Cruz da Ordem de Cristo, a marca do expansionismo português.

Símbolos cristãos. Heróis brancos (quase sempre). Batalhas épicas. Publicado nas redes da secretaria especial da Cultura, o vídeo de um minuto é um resumo do tom que o governo quer dar a suas ações pelo bicentenário de Independência do Brasil. Se o investimento na peça institucional parece dar início a uma temporada de celebrações grandiosas, o que se sabe até agora é muito pouco.

Desde o início de 2022, uma série de postagens publicadas nas páginas de Instagram, Facebook e Twitter da pasta, responsável pela "Comissão Interministerial Brasil 200 anos", apresenta imagens semelhantes às do vídeo e traz textos edificantes para narrar os principais acontecimentos que, na visão oficial, desaguaram na Independência.

Além dessas ações, o governo lançou em fevereiro um site sobre o bicentenário da Independência — em que, como observado em reportagem da Folha de S. Paulo, chama atenção a versão histórica equivocada de que portugueses e indígenas travaram um "encontro pacífico".

E o que mais? Há seminários e lançamentos de livros promovidos por órgãos como a Biblioteca Nacional e a Fundação Alexandre de Gusmão, mas a menos de seis meses do 7 de Setembro, não há uma programação oficial.

Desde fevereiro, a reportagem vem procurando a pasta vinculada ao Ministério do Turismo para obter mais informações, sem sucesso — o único esclarecimento dado foi que o edital audiovisual de R$ 30 milhões voltado para produções sobre a independência, anunciado em agosto de 2021, não tem data para sair do papel.

Na segunda-feira passada (14), o subsecretário de fomento, André Porciúncula, fez uma postagem sobre o edital no Twitter, dizendo que o objetivo do mecanismo "é estimular o resgate do imaginário público dessa parte fundamental da história da nossa nação. O audiovisual no Brasil não ficará refém de palanque político-ideológico". E, em 15 de março, o site do governo federal publicou uma notícia sobre o bicentenário, citando sobretudo a movimentação do Ministério de Relações Exteriores na articulação de exposições e livros a serem lançados, ainda sem dar maiores detalhes.

Prestes a deixar o governo para sair candidato ao Legislativo, Mario Frias pouco trata do tema em suas redes sociais, e quando o faz concentra energia na disputa política com o governador de São Paulo, João Doria, pela restauração do Museu do Ipiranga. Houve menções rápidas também a uma história em quadrinhos em produção e um calendário sobre a Independência.

A aparente falta de prioridade contrasta com a atenção que a data recebeu em anos anteriores. Em 1922, os 100 anos da Independência do Brasil foram comemorados com uma exposição internacional de fôlego, da qual participaram, ao longo de seis meses, 14 países de três continentes. 50 anos depois, o regime militar deu uma demonstração de força simbólica: recebeu os restos mortais de D. Pedro 1º do Estado português, e os abrigou no Monumento do Ipiranga, em São Paulo.

"O governo federal já perdeu o timing, a não ser que esteja escondendo alguma coisa. Fico consternado, pois é uma data importante", observa o deputado Enrico Misasi (PV-SP), presidente da Comissão da Câmara que desde 2019 está dedicada ao bicentenário. "Para um governo que se autointitula conservador é até incoerente, porque a valorização das tradições brasileiras deveria ser pauta prioritária."

A Câmara lançou livros e exposições sobre a imprensa da época e sobre a Revolução do Porto, um dos marcos da história portuguesa que influenciaram nossa independência. Em junho, fará uma série de seminários. O Senado também conta com uma comissão, presidida por Randolfe Rodrigues (Rede/AP). Em acordo com a Universidade de Washington, trouxe de volta ao Brasil os arquivos de Oliveira Lima, com panfletos da Independência, agora publicados em livro. Em setembro, vai convidar o presidente português para sessão solene no Congresso. Randolfe faz coro com Misasi e há pelo menos dois anos se queixa de que o governo federal não está dando a devida atenção à efeméride.

"Realmente constrange o silêncio do governo federal. E constrange mais ainda por colocar essa celebração na mão de Mario Frias", resume o senador.

Passado de glória

Um documento com diretrizes de comunicação sobre o bicentenário distribuído aos órgãos ligados à secretaria de Cultura e obtido pelo TAB fala em "eventos variados", sem detalhamento. Mas chama atenção o discurso unindo entregas atuais do governo com o passado "de glórias" da nação.

"Sugerimos que os órgãos insiram os conceitos de Soberania, Liberdade e Independência desde já em suas ações cotidianas", diz um trecho da apresentação. Há dicas de postagens para áreas como educação, meio ambiente e economia. Para segurança, por exemplo, propõem a frase "A guerra ao tráfico liberta os brasileiros de bem, resguarda nossa soberania e oferece independência a esta Nação."

Bicentenário - diretrizes de comunicação - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

"Se a grande ação for associar eventos históricos com os do presente, vai sair uma obra de ficção da pior qualidade", diz Randolfe Rodrigues. Para o deputado Misasi, a ideia de usar a efeméride para tratar de ações do governo "faz perdermos a oportunidade de comemorar o que está acima de nossas divergências".

Bicentenário -- diretrizes de comunicação - Reprodução  - Reprodução
Imagem: Reprodução

"Os 200 anos da Independência devem ser momento de unidade nacional, de lembrar que apesar de nossas diferenças temos uma trajetória em comum", pondera o deputado, dizendo ter ainda alguma esperança de que o historiador Rafael Nogueira, que deixou a presidência da Biblioteca Nacional para assumir a Secretaria de Economia Criativa, "salve a efeméride".

Em um vídeo de fevereiro, Frias apresentou Nogueira, que afirmou ter como "prioridade zero fortalecer os nossos planos para o Bicentenário da Independência". Procurado, ele não respondeu aos pedidos de entrevista.

Bicentenário - 1549 - Reprodução/Instragram - Reprodução/Instragram
Imagem: Reprodução/Instragram

Silêncio sobre a escravidão

Sem programação clara à vista, resta se ater ao conteúdo publicado no site e nas redes sociais. Para João Paulo Pimenta, historiador e autor do recém-lançado "Independência do Brasil" (editora Contexto), é natural que a hstória esteja sujeita a reinterpretações. Ele lembra que o presidente Bolsonaro associa os valores de Igreja, Cruzadas e da "Independência heroica" em sua revisão histórica — inclusive em sua recorrente defesa da ditadura militar. No caso das postagens sobre o bicentenário, vê uma "narrativa excludente".

"Por ela, o Brasil foi salvo do paganismo dos indígenas, a matriz é toda portuguesa e cristã. A civilização desta terra bárbara levou à Independência, numa trajetória divinamente traçada. Há um silêncio enorme sobre o caráter de dominação e sobre a violência do processo colonizador", diz ele.

"Veja a postagem sobre 1549: aí diz que o marco é a chegada dos jesuítas. Sabe quem também chegou naquele ano? Os escravizados africanos. Que são ignorados nessa narrativa."