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Rádio Londres, o misterioso caso da editora cult que desapareceu em 2020

Livros editados pela Rádio Londres no Brasil - Daniel Lisboa/UOL
Livros editados pela Rádio Londres no Brasil
Imagem: Daniel Lisboa/UOL

Daniel Lisboa

Colaboração para o TAB, de São Paulo

05/03/2022 04h01

Em 2015, a Rádio Londres era apresentada como uma ousada editora independente que publicava autores estrangeiros inéditos no Brasil. Suas obras ganhavam resenhas elogiosas e reportagens louvavam a iniciativa.

Com belas edições, títulos aclamados pela crítica e poucas informações sobre quem estava por trás de suas operações, a editora sediada no Rio de Janeiro logo ganhou uma aura cult e algo misteriosa.

Hoje, tudo o que resta são livros em sebos, clientes lesados, ações na Justiça e admiradores se perguntando: o que, afinal, aconteceu com a Rádio Londres?

Editoras relevantes vão à falência, mas não desaparecem. Via de regra, mercado editorial e leitores são informados sobre o fim das atividades. Foi assim com a Cosac Naify, por exemplo. Seu fechamento em 2015 causou comoção e foi amplamente noticiado.

Mesmo no caso de uma editora menor e mais jovem, era esperado que o restrito mundo literário brasileiro tivesse ao menos um boato para compartilhar. Em outras palavras, que a rádio peão fornecesse alguma pista sobre a Rádio Londres.

Com site, redes sociais, telefones e endereços de e-mail fora do ar de uma hora para outra, nenhum comunicado oficial ou depoimento à imprensa, a outrora arrojada editora é hoje uma estante vazia e empoeirada na memória daqueles que a acompanhavam.

Para tentar entender o que aconteceu, a reportagem do TAB conversou com escritores, tradutores, revisores e jornalistas que conheceram ou trabalharam para a Rádio Londres.

Livros do catálogo da Rádio Londres - Daniel Lisboa/UOL - Daniel Lisboa/UOL
Imagem: Daniel Lisboa/UOL

Clima 'pé na porta'

Entre os autores mais badalados publicados pela editora estão o holandês Arnon Grunberg, os norte-americanos Ben Lerner, John Williams e Kent Haruf, a francesa Maylis de Kerangal e o colombiano Andrés Caicedo.

A respeito de "Tirza", livro de Grunberg sobre a relação doentia entre um pai de classe média e sua filha descolada, Joca Reiners Terron escreveu na Folha de S.Paulo que "por meio de hábil manejo do discurso indireto livre intercalado com diálogos brutais, Grunberg conduz o leitor a estados de ânimo díspares como em uma montanha-russa, com especial atenção ao sadismo do espectador".

Os lançamentos da Rádio Londres tinham, quase sempre, recepções favoráveis ou muito favoráveis, como a relatada acima. O escritor Antônio Xerxenesky escreveu em seu blog no IMS (Instituto Moreira Salles) sobre a chegada ao Brasil de "Estação Atocha", de Ben Lerner: "Trata-se de um dos romances mais interessantes que li deste novo século que vivemos".

Mas a editora não apostou só em grandes nomes da literatura contemporânea. Obras que estavam esquecidas, mas foram redescobertas pelos críticos, também entraram no catálogo. "Stoner", de John Williams, é outro livro da Rádio Londres que rendeu críticas entusiasmadas.

O livro foi classificado como "ótimo" por Joca Terron na Folha. A revista literária Quatro Cinco Um chamou Stoner de "obra-prima absoluta do gênero", enquanto o jornal norte-americano The New York Times afirmou que "Stoner é um romance mais raro que um grande romance, é um romance perfeito".

O escritor brasileiro Antônio Xerxenesky, durante Flip de 2012 - Zanone Fraissat/Folhapress - Zanone Fraissat/Folhapress
O escritor brasileiro Antônio Xerxenesky, durante a Flip de 2012
Imagem: Zanone Fraissat/Folhapress

Alienígena do mercado

"Zero ideia. É muito louco", diz Antônio Xerxenesky ao TAB quando perguntado sobre a Rádio Londres. Ele foi um dos primeiros a escrever sobre a editora, em março de 2015.

Joca Terron está na mesma situação. "Nunca soube muito dessa editora, não conheço o pessoal. Acho que [Rádio Londres] sempre foi meio alienígena no meio", afirma.

O escritor sugere que a reportagem fale com Paulo Werneck. Faz sentido: editor da Quatro Cinco Um, o jornalista é aquela fonte do tipo "se ele não sabe, ninguém mais sabe".

Mas ele não sabe. Diz que não tem notícias sobre a editora, tampouco conhecia sua equipe. Werneck se dispõe a perguntar a respeito em um grupo de WhatsApp com editores. De novo, ninguém faz a menor ideia.

Nathalia Pazini, assessora de imprensa da editora Todavia, também consultou a equipe sobre a Rádio Londres e teve a mesma resposta: ninguém sabe, ninguém viu.

Diferentemente do que acontece com nove a cada dez enigmas a serem decifrados, uma busca na internet também se mostra pouco frutífera. Há apenas links para sites e vídeos com pessoas perguntando a respeito da editora e 89 reclamações, no site Reclame Aqui, de consumidores que pagaram e não receberam seus livros.

E não foram apenas as páginas da Rádio Londres que sumiram das redes sociais. Não há um único vestígio sobre o paradeiro daquele que seria, de acordo com os registros do CNPJ da empresa, seu proprietário: o italiano Gianluca Giurlando.

Apesar das muitas reportagens a respeito da Rádio Londres e de seus livros, é difícil encontrar uma entrevista, declaração ou imagem de Gianluca. O dono da Rádio Londres praticamente inexiste no mundo virtual.

O escritor Arnon Grunberg - Ruud Hendrickx/ Wikimedia Commons - Ruud Hendrickx/ Wikimedia Commons
O escritor holandês Arnon Grunberg, em 2011
Imagem: Ruud Hendrickx/ Wikimedia Commons

Breves aparições

A jornalista Carol Almeida é uma das poucas que conversaram com o italiano. Sua reportagem "Nova editora de livros está dando o que falar", publicada pela Harper's Bazaar Brasil em julho de 2015, revela que Gianluca veio morar no Brasil em 2010, sem experiência como editor, após 14 anos morando em Londres. Lá, teria estudado filosofia e ciência política.

"Não acho que minha escolha seja exatamente corajosa. Estou convencido de que, se a qualidade dos livros é alta, vamos, sim, fazer sucesso", disse Gianluca à jornalista.

Outra rara reportagem com depoimento do italiano é da Revista Continente, publicada em abril de 2016. A jornalista Gianni de Melo escreve que Gianluca "interrompeu treze anos de trabalho no setor financeiro em Londres para se dedicar ao sonho de montar uma editora de ficção".

"Achei o mercado editorial brasileiro extremamente interessante, por causa da falta de editoras independentes de ficção internacional e da mescla de diferentes gerações de leitores", afirmou Gianluca à época.

A reportagem também entrou em contato com Carol e Gianni. Ambas não tinham mais notícias sobre a Rádio Londres ou qualquer outra informação a respeito de Gianluca. A confirmação de que o publisher de fato existe só veio quando TAB conversou com a tradutora Mariângela Guimarães.

Era bom, mas acabou

Mariângela traduziu três livros de Arnon Grunberg para a Rádio Londres ("Tirza", "O Homem sem Doença" e "Marcas de Nascença") e foi a primeira pessoa contatada pela reportagem que conheceu pessoalmente o dono da editora.

"Só encontrei com o Gianluca e a Evelin [Evelin Gonçalves, sócia de Gianluca] uma vez, em uma de minhas vindas ao Brasil", conta Mariângela. Ela morava na Holanda na época.

"Tomamos um café e conversamos sobre possíveis projetos. Comigo, eles sempre foram muito corretos", diz a tradutora. A relação com a editora, porém, foi subitamente interrompida. "Tínhamos combinado a tradução de mais um romance do Grunberg. Cheguei a começar, mas logo fiquei sabendo que seria adiado e depois disso a comunicação parou."

Para outra colaboradora, que preferiu não se identificar, o desaparecimento trouxe prejuízo. "Fizeram algumas propostas para parcelar a dívida, depois disseram que me pagariam quando conseguissem vender os livros, mas isso já tem quase um ano", afirma ao TAB.

Problemas na Justiça

Era Evelin Gonçalves quem costumava intermediar os trabalhos com colaboradores e atender à imprensa. Rastrear sua presença na internet, porém, é missão tão complicada quanto tentar achar Gianluca. A reportagem decidiu recorrer aos arquivos da Justiça, e só então o que ocorreu com a editora ficou mais claro.

Muitas cobranças mostram o péssimo estado financeiro da Rádio Londres. Em 2020, o proprietário do imóvel alugado à editora no Rio de Janeiro entrou na Justiça para cobrar Gianluca por dez aluguéis e taxas de condomínio em atraso. São quase R$ 20 mil em dívidas.

A editora também foi acionada judicialmente pelo banco Bradesco por uma dívida de R$ 372 mil relativos a um empréstimo bancário. De acordo com o processo, "várias tentativas, destinadas à cobrança, foram realizadas. Contudo, todas elas se mostraram infrutíferas por absoluto desinteresse dos executados, tornando impossível qualquer composição amigável para a quitação do débito."

A Luft Logistics, empresa de transportes e armazenagem, também moveu ação contra a Rádio Londres. Os documentos aos quais a reportagem teve acesso mostram os advogados da editora e da Luft negociando de que forma a dívida seria quitada. Em julho de 2021, porém, a Justiça intimou a editora a fazer o pagamento.

TAB entrou em contato com Diogo Gaspar, advogado da Rádio Londres. Ele confirmou o pedido de falência e, por WhatsApp, explicou o lado da cliente. "O mercado tem passado por crises que culminaram no encerramento de atividade e dificuldade de operação de gigantes do meio, e com a Rádio Londres não foi diferente. O volume de vendas caiu demasiadamente a partir de 2018, o público-alvo da editora também era um pouco mais restrito e, com a pandemia do coronavírus em 2020, a situação que já estava complicada financeiramente ficou totalmente inviável, acarretando no encerramento das operações."

Em busca de respostas

A tradutora e revisora Fernanda Drummond lembra da época em que a Rádio Londres era uma editora descolada e cheia de sonhos, não uma presa de credores. "Trabalhei três anos na editora e até tive carteira assinada por um período. Sempre foram muito corretos", afirma Fernanda. "Não tenho nada que os desabone. Sempre foi uma relação profissional muito correta."

Ela é a tradutora de "Em Busca do Barão Corvo", uma das obras mais peculiares publicadas pela Rádio Londres. Outro título até então inédito no Brasil, o livro de A.J.A. Symons é uma "biografia experimental".

Depois de ficar fascinado por uma obra emprestada de um amigo, Symons decide buscar quem era seu autor. Acontece que Frederick Rolfe, o tal "Barão Corvo", além de já estar morto, revela-se uma figura extremamente enigmática. Um gênio com acessos de grandeza e loucura que nunca teve o reconhecimento desejado e vagou pelas ruas de Veneza dependendo da caridade alheia. Tudo o que Symons tem à disposição para reconstruir o personagem são depoimentos e cartas de amigos e conhecidos e artigos de jornal.

"A existência errática tão abruptamente encerrada de Frederick Rolfe levanta questões às quais não é fácil responder", escreve Symons, ao final do livro.

Gianluca e Evelin não quiseram conversar com a reportagem.