'A gente errou depois de vencer': MPL repensa junho de 2013, 10 anos depois
Bombas de gás lacrimogênio, tiros de bala de borracha, correria, depredações. Em 13 de junho de 2013, manifestantes convocados pelo MPL (Movimento Passe Livre) foram duramente reprimidos pela Polícia Militar na esquina da rua da Consolação e da rua Maria Antonia, em São Paulo. O governo estadual, com Geraldo Alckmin (PSDB à época, hoje no PSB) à frente, e a administração municipal, que tinha Fernando Haddad (PT) como prefeito, encontravam-se numa encruzilhada: manter o aumento da tarifa dos transportes públicos de R$ 3 para R$ 3,20 ou ceder à insatisfação popular?
As manifestações de junho de 2013 completam uma década este mês. Elas marcaram profundamente a política e a sociedade brasileiras. Se por um lado a questão da mobilidade urbana e da valorização do espaço público se consolidaram no debate nacional, por outro as manifestações coloridas e plurais em seu início deram passagem ao nacionalismo verde e amarelo que levou a extrema direita ao poder no Brasil.
O TAB convidou quatro ex-integrantes do MPL a fazerem um balanço da experiência: Mayara Vivian, 33, hoje geógrafa e associada da Casa do Povo; Frederico Ravioli, 29, professor de artes e artista visual; Lucas Monteiro, 39, professor de história; e Caio Martins, 28, professor na educação básica.
Maturidade e erros
"Penso nisso [o que poderíamos ter feito diferente] todos os dias há dez anos", diz Caio Martins. "Se por um lado, poderia ter sido diferente, por outro alcançamos o que estávamos reivindicando [a revogação do aumento da tarifa]. A coisa ultrapassou o limite do próprio movimento, o protesto nas ruas continuava. Talvez fosse possível reivindicar alguma outra coisa? O caminho natural era se revoltar contra o governo", completa.
Se a maturidade daquele grupo formado por militantes bastante jovens trouxe divergências sobre o legado de 2013, outras coisas não mudaram. "Uma das coisas que continua a mesma é que não gostamos de personificar o movimento", afirma Mayara Vivian. "Isso é e sempre será uma determinação ideológica nossa", avalia ela, que fez parte do coletivo e hoje é apenas uma apoiadora.
"Pensando em retrospecto é fácil ver onde a gente errou: pra mim, foi depois que a gente venceu", considera Lucas Monteiro, que participou da histórica edição do Roda Viva com o MPL na TV Cultura e responde pelo apelido Legume. "Depois que a tarifa caiu, o MPL não soube fazer duas coisas. A primeira, uma proposta de continuidade clara das mobilizações. Devia ter chamado uma greve geral ou mobilização intensa pela tarifa zero. A segunda foi não se abrir para pessoas que queriam se incorporar e militar junto.".
O ex-militante, porém, tem críticas também aos setores afinados com a pauta popular que se encontravam no poder, como o PT, que além da prefeitura da maior cidade do país tinha no Planalto a presidenta Dilma Rousseff: "O erro da esquerda institucional foi tentar desqualificar as manifestações e reprimi-las."
Pequeno mas barulhento
Nascido em 2005, o Movimento Passe Livre se define como "um movimento social autônomo, apartidário, horizontal e independente, que luta por um transporte público de verdade, gratuito para o conjunto da população e fora da iniciativa privada". Em 2013, o coletivo não contava com muito mais de quarenta integrantes, sendo a maior parte estudantes universitários ou secundaristas.
De maneira geral, os integrantes do MPL avaliam de forma positiva o que fizeram dez anos atrás. "A gente foi muito coerente, ainda mais se pensarmos na nossa idade na época. Tínhamos 20, 20 e poucos anos, e se existem pequenas coisas que talvez eu tivesse feito diferente, no geral não mudaria nada", sustenta Mayara.
"Junho tem várias contradições", considera Frederico Ravioli. "Mas muitas oportunidades de luta se abriram e ganharam força [a partir dali]. A pauta do transporte ficou evidente, tanto é que a tarifa zero entrou na pauta, por exemplo. Mas é uma história em aberto."
"O que foi e ainda é lamentável é um movimento de rua não ter sido acolhido pelo campo democrático progressista. E pior: tachado e criminalizado pelo setor que estava no poder", reforça Mayara, que participou da reunião com Dilma no dia 24 de junho.
Embates com o PT
"Ela [Dilma] se mostrou bastante aberta e compreensiva. Mas foi numa reunião de portas fechadas. Nada foi feito de forma aberta", considera.
Mayara conta que foi difícil para os manifestantes compreenderem que uma política que havia sido torturada durante a ditadura militar pudesse lavar as mãos sobre o abuso da repressão pela polícia. E tenha justificado tal violência com o argumento de impedir ações dos chamados "blackblocs" manifestantes encapuzados que vandalizavam comércios e propriedades durante os atos.
Segundo dados da Article 19, organização que defende e monitora o direito à liberdade de expressão, em 2013 ocorreram 696 protestos pelo Brasil, com 2.608 pessoas detidas e 837 feridas (entre policiais e manifestantes). A ONG contabiliza 117 jornalistas agredidos na ocasião.
Um ponto particularmente sensível para o grupo é a discussão sobre se as manifestações convocadas pelo MPL deram passe livre à extrema direita. Os ex-integrantes ouvidos pela reportagem negam veementemente.
Ascensão da extrema direita
"Na verdade, o que produziu junho foi a insatisfação", argumenta Frederico. "O governo dizia 'vamos todos crescer' e os bancos têm lucro recorde?" O professor de artes devolve a provocação: "Quem enxergou melhor junho de 2013 foi a extrema direita, que soube ler esse espaço de insatisfação, que é real. A população não é burra e estupida e a extrema direita olhou para eles como agentes políticos, não como massa."
"Em 2013 a gente pensava a organização de forma horizontal e apartidária. Já as manifestações de direita são hierarquizadas e com apoio de partidos de direita", diferencia Lucas, para quem a esquerda tradicional não se atualizou: "A esquerda continua militando da mesma forma há 50 anos".
"É covarde cobrar apenas um pequeno grupo pela ascensão da extrema direita", reforça Caio. "Tem de cobrar de todos os movimentos sociais. Estávamos num momento de ruas lotadas. E onde é que estavam os grandes movimentos sociais nessa época? Defendendo o governo. É difícil fazer revolução com breque de mão puxado."
"Nenhum de nós saiu candidato, nem ganhou dinheiro da CIA", ironiza Mayara. "Eu só gastei dinheiro para imprimir panfleto e fazer vaquinha pra pagar fiança. E agora, dez anos depois, a pauta do transporte público gratuito está no Congresso e [apareceu] até no gabinete de transição. Não tem como falar que a gente não mandou bem."
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