Escola de GO que demitiu professora tem Hélio Oiticica no material didático
"Seja marginal, seja herói." Por essa frase, o artista plástico Hélio Oiticica, em 1968, foi acusado de fazer apologia ao crime e ganhou importância no debate cultural brasileiro. Eram os anos de chumbo da ditadura.
Quase 60 anos depois, em Aparecida de Goiânia (GO), uma professora de história da arte foi demitida de uma escola particular por utilizar uma camiseta estampada com o slogan e a obra de arte de Oiticica. O material didático do Colégio Expressão, entretanto, traz material sobre o artista plástico e sua importância para o país. A informação foi confirmada ao TAB por WhatsApp pelo próprio diretor do colégio, Rafael Spindola.
A demissão aconteceu porque o deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO), que se vende em suas redes sociais como um influenciador conservador, republicou a foto da professora com a camiseta nos Stories do Instagram — a imagem estava no perfil pessoal da docente.
"Eu não sei nem o que falar sobre isso. Professora ensinando que 'ser marginal' é a mesma coisa que ser herói", escreveu Gayer na imagem. Em uma semana, o parlamentar fez pelo menos oito postagens sobre a camiseta da professora, marcando a escola em algumas delas.
Dias depois de ser chamada para conversar pelos gestores do Colégio Expressão, a professora foi demitida. "Tivemos que desligá-la porque a escola está sofrendo ataques descabidos e desleais em várias redes sociais por uma interpretação errada de um deputado que atacou a escola sem sequer nos ouvir. Ele estigmatizou nossa escola como se fôssemos doutrinadores, parciais contra os valores de família, colocou em xeque uma história de 23 anos de uma escola que sempre foi democrática e nunca assumiu nenhuma bandeira política", afirmou Rafael Spindola ao TAB.
Roteiro de uma demissão
A foto em que a professora aparecia numa sala de aula, vestindo a camiseta, foi postada em 2 de maio. Na mesma data, Gayer fez a primeira postagem, criticando a mensagem estampada.
No dia seguinte, a educadora foi conversar com os gestores da escola. Na ocasião, a instituição assegurou que nada aconteceria, apesar da pressão exercida por Gayer e por usuários de redes sociais que acharam o uso da roupa inadequado. "Disseram que eu deveria ter mais cuidado com o que faço, porque estava usando roupas polêmicas", relatou a professora ao TAB.
Tudo, contudo, parecia ter voltado ao normal, até que, na sexta-feira (5), a panela de pressão estourou: enquanto lecionava noutra escola particular da cidade, a professora recebeu a ligação de um dos sócios do colégio, demitindo-a, porque a escola estava "perdendo muitas matrículas".
A professora ficou sem entender. Além de Oiticica ser tema de estudo em sala de aula, o colégio parecia ter gostado de sua ideia de apresentar, aos alunos da escola, um material especial sobre o que a obra provocou na época. "Me dispus a escrever uma nota informativa, explicando tudo sobre a obra. Na sexta-feira, destrambelhou tudo", explicou ela. A educadora não quis se identificar, embora seu nome já tenha sido exposto pela própria Anpuh (Associação Nacional de História) de Goiás, numa nota que a defende.
O posicionamento oficial do Colégio Expressão foi publicado no mesmo dia 5, no perfil de Instagram da instituição. Na nota, a escola reforçava o compromisso de oferecer educação de "qualidade, pautada pela ética, respeito e diversidade", mas destacava que a escola não é lugar de propagar "ideologias políticas, religiosas ou preconceituosas". "Nossa missão é formar cidadãos conscientes e éticos, capazes de compreender e respeitar as diferenças culturais e ideológicas."
Questionado por TAB se a demissão era justificada por tocar em "ideologias politicas", o diretor da escola disse: "De forma nenhuma. A escola foi vítima dessa guerra política que está destruindo o Brasil." Ele não confirmou haver pais tirando filhos da escola, e disse que ainda estão avaliando se vão tomar medidas jurídicas "contra tudo que está sendo veiculado" — sem citar Gustavo Gayer.
'Não quero minha filha alienada'
A servidora pública Kelbia Manzan, 44, é mãe de uma aluna do 3º ano do ensino médio do Colégio Expressão e contou ao TAB que ficou surpresa com a decisão da escola. "Sugeri à minha filha fazer um protesto silencioso, mas os colegas dela não aceitaram."
A decisão, segundo Kelbia, a fez repensar a matrícula da filha na instituição. "Quero minha filha numa escola que a ensine a pensar. A demissão da professora levanta a questão: será que essa escola é de qualidade?", acrescentou. "Acho muito irônico o Colégio Expressão não permitir que seus professores se expressem."
'Nossos filhos'
Gustavo Gayer criou o "Instituto Nossos Filhos", página de internet cuja única função é receber denúncias sobre "doutrinação". Com base nos relatos, apontados como sendo de pais ou responsáveis, o deputado federal divulga as histórias.
Em um vídeo postado em seu Instagram na terça-feira (9), Gayer afirma haver "violência psicológica" contra os alunos dentro do sistema de ensino. "Professores que não aceitam se render ao pensamento progressista são escrachados", argumenta.
No site, há uma seleção com nomes de escolas da Região Metropolitana de Goiânia. Além da página inicial, que possui apenas um vídeo do deputado comentando o projeto, um botão para iniciar a denúncia e uma série de relatos supostamente publicados por pais denunciantes, há também a aba para que o internauta se cadastre na plataforma, que solicita apenas e-mail e senha.
Resposta: receita de bolo
A professora afirmou ao TAB que acionou a Justiça contra o deputado federal e fará o mesmo contra a escola. A historiadora, contudo, não tem se mobilizado sozinha. Ao seu lado, estão instituições como o Sindicato dos Professores no Estado de Goiás, que indicou um advogado para acompanhar seu caso.
Até o momento, foram ajuizadas duas ações, ambas contra o deputado federal. Uma ação individual pede a exclusão de todos os vídeos relacionados ao caso dela, além da proibição de novos vídeos sobre o tema e pagamento de indenização por danos morais. Outra ação pede a suspensão das contas de Gustavo Gayer no Twitter, Instagram, Facebook e YouTube. O Ministério Público do Trabalho também deve acompanhar o caso.
Em vídeo publicado na noite de terça-feira (9), Gustavo Gayer diz que sofre "perseguição", está com o "mandato em risco". Disse ainda que não pediu a demissão da professora, apenas "demonstrou sua indignação" — para ele, a camiseta endossava a "defesa a um bandido".
O TAB questionou o deputado federal sobre o caso e, como resposta, por e-mail, recebeu uma receita de bolo, prática comum do parlamentar, que responde assim aos pedidos da imprensa desde o final de 2022.
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