Secretária da Mulher nomeada por Tarcísio esteve em ato antiaborto
Em março de 2022, um grupo de religiosos passou a se revezar diariamente, por 40 dias, na porta do antigo prédio do hospital Pérola Byington, em São Paulo, numa vigília contra o aborto. A razão: a unidade ligada à Secretaria de Saúde do estado é referência no atendimento a vítimas de abuso sexual e no serviço de interrupção da gravidez nos casos permitidos por lei — quando a mulher foi vítima de estupro, corre risco de morte ou em quadros de anencefalia fetal.
Chamado de "40 Dias Pela Vida", o protesto é organizado há três anos por cristãos. O grupo combate, com orações, o que considera "a maldição do mundo". Embora reúna pessoas católicas, mais recentemente o movimento despertou o interesse de evangélicos, sobretudo bolsonaristas — entre eles, a então vereadora de São Paulo Sonaira Fernandes (Republicanos), agora secretária de Políticas para Mulheres do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos).
Sonaira participou da vigília em frente ao hospital no dia 8 de março, quando acompanhou a oração e conversou com manifestantes. Naquela semana, a parlamentar postou um vídeo acusando uma funcionária do hospital de constranger os religiosos — as imagens mostravam uma mulher filmando o grupo à distância, da porta do hospital.
Antes mesmo de se eleger, Sonaira já se colocava contra os serviços do hospital. "Não sabemos se qualquer profissional do referido hospital, que é referência em aborto no Brasil, tem a preocupação de buscar identificar supostos agressores sexuais dos casos relatados por quem busca o procedimento aborto na instituição", escreveu no Facebook, em novembro de 2020. A então candidata disse que "com o mandato em mãos", ia acionar todos os meios necessários "para ter amplo acesso às informações sobre os procedimentos abortivos do Pérola" e "verificar in loco a realidade do Pérola Byington".
Baiana de Riachão do Jacuípe, cidade a quase 220 km de Salvador, a nova secretária é cria do bolsonarismo raiz. Entre 2014 e 2018, integrou a equipe do deputado federal Eduardo Bolsonaro (à época, no PSC), em Brasília, e, em 2019, migrou para o gabinete do deputado estadual Gil Diniz (então PSL), em São Paulo. No ano seguinte, candidatou-se pela primeira vez na capital paulista com o apoio do ex-presidente Jair Bolsonaro, sendo eleita com 17.881 votos.
Não à toa, ela se autointitula "a vereadora da família Bolsonaro em São Paulo" na biografia publicada no site da Câmara Municipal, e defende pautas "das famílias, da liberdade individual, da fé e dos princípios cristãos".
Sonaira Fernandes já chegou a dizer que o feminismo é "o grande genocida do nosso tempo" e "mata mais que guerras e doenças". Por essa postura, a nomeação dela para a pasta das Mulheres em São Paulo tem sido questionada por juristas e movimentos da sociedade civil. Ela deve ocupar a ala ideológica do governo Tarcísio, com discursos semelhantes aos da senadora Damares Alves (Republicanos/DF), ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Assessora oculta
Além de participar do protesto antiaborto na porta do hospital, Sonaira Fernandes destacou sua equipe para apoiar os manifestantes. "Meu gabinete esteve à disposição durante esses 40 dias, e não mediremos esforços para que o povo de São Paulo se livre dessa chaga, que é o aborto", escreveu, em 10 de abril, no Instagram.
Um mês antes, o TAB havia identificado uma integrante do gabinete de Sonaira participando da vigília. Naquela quarta-feira, 16 de março, das 10h às 14h, a reportagem acompanhou uma manhã de manifestações. Quatro pessoas (entre elas, um padre), rezavam em latim o rosário, embaixo de uma tenda armada na praça. Próximo a eles, mas longe da oração, uma mulher e dois homens acompanhavam o grupo.
A mulher, que se negou em mais de uma vez a dar entrevistas, gravou parte do diálogo entre a reportagem e o coordenador da campanha "40 Dias Pela Vida", Liham Oliveira, 23. Ao ser perguntado seu nome e sua relação com a vigília, ela respondeu que se chamava "Gloria, só Gloria", evitando dizer o sobrenome. "Só vim assistir [à vigília], não quero me envolver; quero ficar neutra, por favor."
Maria da Gloria Rios Oliveira, entretanto, é assessora especial de apoio parlamentar no gabinete de Sonaira Fernandes, na Câmara de São Paulo. Ela foi nomeada para o cargo pela primeira vez em 17 de março de 2021 e exonerada três meses depois, em 16 de junho. Em 10 de dezembro de 2021, voltou à mesma função, de acordo com o Diário Oficial.
Em publicações nas redes sociais, Gloria Rios aparece diversas vezes acompanhada da vereadora Sonaira Fernandes e da equipe de gabinete.
Gloria justificou que é evangélica ("sou da Igreja Batista", a mesma frequentada por Sonaira) e, por isso, não rezava o terço. "A minha parte eu faço, oro pelas mãezinhas, não concordo com o que este hospital faz." Ela ainda afirmou que não era a primeira vez que participava do ato.
Antes do final da entrevista, a servidora se aproximou novamente da reportagem para explicar que trabalhava em um hotel, organizando reservas de hóspedes. Disse que conheceu o protesto antiaborto através da internet e que simpatizava com a militância por experiência pessoal.
Em seguida, mesmo sem ser questionada, negou que tivesse um cargo. "Pensei que você estava pensando que eu era alguma coisa de política, [mas] sou não", reiterou.
'Princípio da moralidade'
Para o advogado Dinovan Dumas, especialista em direito administrativo, Gloria Rios "feriu o princípio da moralidade" ao esconder o cargo de assessora parlamentar enquanto acompanhava a vigília.
"O servidor público tem o direito de exercer os direitos que a Constituição Federal concede a todo e qualquer cidadão, incluindo-se aí o de livre manifestação do pensamento", explica. "De toda forma, não é preciso muito esforço interpretativo para concluir ou considerar que ele não pode deixar de exercer suas atribuições para participar de manifestações, protestos."
O mesmo defende o advogado Breno Zanoni Cortella. "Ela tem que prestar contas à sociedade, e penso que deveria, sim, se identificar, dizer o que estava fazendo ali, dialogando com a comunidade", analisa. Para ele, o comportamento de esconder ou omitir seu cargo "causa estranhamento e pode até ser [classificado como] improbidade ou infração disciplinar".
Para o professor da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie Alessandro Soares, nenhum assessor parlamentar é impedido de representar o gabinete em manifestação. "Ele pode ser enviado para monitorar juridicamente, por exemplo", explica. No entanto, destaca Soares, dizer que não tem relação política e "tentar se desvincular" da função pública é algo a ser questionado.
Marcos Perez, professor de direito da USP (Universidade de São Paulo), afirma que a atitude da assessora de Sonaira Fernandes, mais do que uma discussão sobre improbidade, sugere uma "postura política antidemocrática". Segundo ele, a mulher atentou contra a liberdade de imprensa, ao gravar parte da entrevista com o coordenador da vigília de maneira impositiva.
"A postura dela é claramente no sentido de dizer: 'Olha, estou aqui te patrulhando, quero ver o que você vai perguntar, quero gravar, controlar sua liberdade de imprensa de cobrir aquele evento'. E ela mente sobre sua função [de assessora parlamentar] para proteger a vereadora", diz.
Posicionamento
O TAB procurou Sonaira Fernandes para explicar a relação dela e da sua equipe com a vigília antiaborto. Em nota, a assessoria de imprensa da secretária afirmou que "nunca houve apoio financeiro por parte do mandato à Vigília pela Vida" e que os manifestantes "são apenas senhoras e jovens católicos que se reúnem para rezar pela vida, o que dispensa qualquer tipo de subsídio financeiro".
A equipe confirma a participação de Gloria Rios no ato em frente ao Pérola Byington. No entanto, contradiz as informações da própria assessora parlamentar, ao explicar que ela "é católica e conhece algumas pessoas do grupo". "Ela lá esteve em seu horário de almoço. Foi uma participação voluntária e individual", diz a nota.
O gabinete de Sonaira não soube informar qual a função de Gloria Rios na vigília nem a razão de ela gravar a entrevista. Além disso, justificou que a assessora optou por não se identificar à reportagem porque "poderia haver o tipo de distorção que talvez esteja ocorrendo agora". "Ela não é obrigada por qualquer tipo de lei a se identificar para jornalistas."
"A vereadora apoia o direito que as pessoas têm à privacidade e também de fazer uso de seus celulares da mesma maneira que os jornalistas que as abordam", defendeu.
Questionada se frequentará e apoiará vigília antiaborto, mesmo ocupando o cargo de Secretária da Mulher, Sonaira respondeu que "não é possível definir, com tamanha antecedência, a agenda que será cumprida em 2023". "Só é possível dizer que o foco da pasta será o trabalho técnico e o atendimento inclusivo da mulher em suas mais diversas demandas."
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