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Curso de deputado bolsonarista recruta 'soldados' para guerra nas redes

O deputado federal Gustavo Gayer, em aula de seu curso "Influenciador da Verdade" - Reprodução
O deputado federal Gustavo Gayer, em aula de seu curso 'Influenciador da Verdade' Imagem: Reprodução

Do TAB, em Valinhos (SP)

29/05/2023 04h01

Como ser um influenciador conservador. É o que o deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO) promete ensinar aos alunos que se inscreverem em um curso ministrado por ele em uma plataforma online especializada em conteúdo cristão.

Quem cai em tentação não demora a descobrir que, durante as aulas, divididas em dez módulos, pouco se fala em Cristo, mas muito sobre o "diabo" — no caso, a esquerda e todas as suas agremiações. Os alunos, antes de tudo, são soldados de uma guerra ideológica contra a subversão que controla nossas mentes através do teatro, da literatura, do cinema, da educação e do jornalismo.

A intenção ali é simples e um tanto pretensiosa: salvar o Brasil. "Um soldado de verdade, assim como um soldado em uma guerra, corre riscos. Mas não participar é um risco maior ainda", diz o professor, que recentemente virou notícia ao usar suas redes para constranger uma professora, cujo crime foi usar uma camiseta com a famosa obra de arte de Hélio Oiticica: "Seja Marginal, Seja Herói". Ela foi demitida da escola devido à pressão nas redes sociais.

Fiz minha matrícula no fim de abril no curso "Influenciador da Verdade" e me mantive firme no propósito de assistir ao menos uma aula, de até 16 minutos em vídeo, por dia. Posso reivindicar meu diploma assim que ele colocar no ar os dois últimos módulos, sobre como construir renda no digital e as considerações finais.

Carro vira estúdio

O curso é uma espécie de recrutamento de gente disposta a fazer um trabalho de formiga: atacar e desmentir notícias publicadas na "extrema imprensa" e conquistar a hegemonia da verdade — ao menos o que o mentor diz ser "a verdade".

Professor de inglês e administrador de canais no YouTube como Papo Conservador, Gayer se tornou deputado por causa de sua atuação intensa nas redes sociais. Também virou alvo das autoridades por ter publicado uma série de conteúdos falsos sobre covid-19, urnas eletrônicas e outros campos de batalha do bolsonarismo.

Em um grupo de Telegram, por onde divulga notícias contra o PT e o governo Lula, a equipe de Gayer dialoga quase diariamente com 981 "soldados". Todos, em algum momento, se dispuseram a pagar quase R$ 400 para aprender lições sobre as ferramentas de comunicação online e outras nem tanto sobre como viver num mundo assombrado por inimigos imaginários.

Algumas lições foram surpreendentemente úteis. Numa dessas aulas, por exemplo, aprendi por que tem tanto postulante a youtuber gravando vídeos dentro do carro no começo da carreira. Com um celular, explica o mentor, é possível gravar vídeos de qualidade, mas o áudio pode ser prejudicado de acordo com o ambiente.

Um quarto sem microfone e muitas paredes, por exemplo, produz eco. No carro, os estofados das almofadas servem como "estúdio" improvisado. E um som de qualidade, mais até que a imagem, é determinante para prender a atenção da audiência, diz.

O cenário é também importante. Nada pode chamar mais atenção do que o soldado, ensina ele, que mantém em uma estante ao fundo luminárias acesas, uma máscara do Deadpool e um boneco de Jair Bolsonaro com a faixa presidencial.

Ao longo do curso, Gayer mostra para os alunos/espectadores quais aparelhos considera ideais para começar a gravar e sair por aí guerreando. Dá também dicas de marcas e preços. O mais importante, repete, é vencer a timidez e a insegurança.

"Grave vídeos que não serão postados. Vai chegar um momento em que você vai gravar e achar que ficou bom", diz. "Precisamos de pessoas corajosas capazes de superar bloqueios psicológicos, sem medo de serem atacados. Eu também superei a timidez e olha o tanto de pessoas que conseguimos resgatar."

Em cada rede tem um peixe

Um dos módulos é dedicado às especificidades de cada rede social. O Facebook, por exemplo, é subestimado pela direita, embora ainda alcance muita gente, sobretudo nas classes mais baixas. Foi lá que André Janones ("um jumento retardado que fez campanha para o Lula", nas palavras de Gayer) formou um público, alerta ele. A rede de Mark Zuckerberg também é a ideal para compactar vídeos que serão distribuídos em aplicativos de mensagens instantâneas, como o WhatsApp, sem perder a qualidade da imagem.

O Twitter é o lugar onde estão as notícias. E é bom, por exemplo, saber o que os inimigos estão postando, mas é bom ter cuidado: "Não dá para seguir Anitta ou Guga Noblat".

O YouTube, por sua vez, é uma das plataformas mais importantes porque nela os vídeos têm vida longa.

Já o TikTok é "muito mais histérico no que diz respeito a derrubar canais que falem mal do Lula" — na verdade, a rede chinesa faz de tudo para não abrigar conteúdo político em sua plataforma. "Parece até que toda equipe do TikTok é (composta por) feminazi psicótica", diz.

Bibliografia básica

Gayer indica também o que os guerreiros precisam ler para vencer o que chama de "hegemonia esquerdista". Segundo ele, poucas fontes de informação não se curvaram à cartilha do "jornazismo brasileiro" — e a Jovem Pan, pasmem, não é uma delas, pois precisou colocar "gente de esquerda lá para não ser totalmente destruída".

Os quatro sites indicados pelo professor são desavergonhadamente alinhados ao bolsonarismo, entre eles um portal acusado de lucrar com anúncios ao publicar desinformação na pandemia. O próprio Gayer foi condenado a postar retratações após postagens fake sobre a covid-19.

A orientação do influenciador é que as pessoas sigam as mesmas 400 pessoas que ele segue no Twitter.

O deputado federal Gustavo Gayer, em aula de seu curso 'Influenciador da Verdade' - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

'Militância jurídica'

Verdade seja dita, Gayer consegue prender o espectador com uma conversa informal, curta e direta, sem muita delonga. Oratória, segundo ele, é uma habilidade, e exige eliminar manias, cacoetes, repetições e "fillers" (aqueles "é?", "né?", "hum?" e outras interjeições prorrogadas para ganhar tempo entre uma frase e outra). "Isso demonstra insegurança", explica.

"Mas não espere sua oratória estar 100% para começar a postar seu conteúdo", avisa. A ideia, afirma, é acelerar a aprendizagem do aluno e mostrar em poucas aulas o que ele demorou anos a aprender como youtuber conservador.

Ele alerta que, quando um influencer atinge certo alcance, fatalmente entrará na mira de profissionais que estudam direito e se formam em "militância jurídica", segundo ele. "Eles acham brechas para nos destruir e nos calar", instrui.

Por isso é preciso tomar cuidados. "Nunca faça acusações, e sim suposições. Diga 'de acordo com', 'parece que', 'suspeita-se'. Tem que escolher as palavras." "É isso o que fazem na imprensa para se blindarem de processos."

A tática funcionou em um ataque recente contra Felipe Neto, que processou o deputado após um tuíte em que, ao comentar a participação do youtuber em um grupo do governo de combate à desinformação, escreveu: "Próximo passo será colocar Marcola na luta contra as drogas e os Nardonis no ministério da família". Felipe Neto processou o deputado, mas a vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo, não viu crime na declaração "infeliz".

Apesar de se dizer alvo de perseguição, Gayer foi um dos youtubers que publicaram e incitaram ataques recentes contra o jornalista Guilherme Felitti, que monitorou e divulgou uma "limpeza" feita por bolsonaristas em conteúdos sobre o Supremo Tribunal Federal e a Justiça Eleitoral, entre eles o atual deputado. Felitti chegou a ser ameaçado de morte e foi processado pelo deputado por difamação.

Gayer faz alertas também diante da possibilidade dos alunos passarem vergonha. Pede que, antes de repercutir alguma notícia, sempre confiram no Google se existem links das chamadas que recebem como print. Pode ser fake news. Também orienta os alunos a evitarem "palavras feias" ou subir o tom de voz — numa versão 3.0 das orientações de Olavo de Carvalho, astrólogo que formou alunos e militantes de direita entre conceitos confusos de filosofia, chiliques e xingamentos.

Além das aulas, os alunos podem participar também de uma série de lives promovidas pelo deputado. Na primeira delas, gravada em 15 de dezembro, ele pede desculpas pelo sumiço. Estava ocupado demais "esperando que um milagre aconteça e que aquele criminoso?" (Nesse momento, ele para de falar, respira fundo e diz que o "Brasil está uma loucura").

No mesmo encontro, ele orienta os alunos a darem like e comentarem as postagens dos colegas. E mostra como troféu o trabalho de um pupilo que em pouco tempo conseguiu mais de 600 visualizações com apenas uma postagem.

Em outra live, após mostrar uma suposta contradição entre duas notícias sobre a pobreza (uma sobre a miséria, e outra sobre insegurança alimentar, com dados de diferentes institutos de pesquisa sobre coisas diferentes), ele sentencia: "É contra a imprensa que temos que lutar".

"As pessoas precisam pensar por conta própria e saber que estão sendo enganadas. Quando perceberem, naturalmente virão para a direita."

Errata: este conteúdo foi atualizado
A versão original deste texto dizia que Olavo de Carvalho era astrônomo; na verdade, ele foi astrólogo. A informação foi corrigida.