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'Estou um pouco exausto de falar sobre a série', diz criador de 'Os Outros'

Lucas Paraizo, roteirista da série da Globoplay "Os Outros" - Zô Guimarães/UOL
Lucas Paraizo, roteirista da série da Globoplay 'Os Outros'
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Guto Alves

Colaboração para o TAB, do Rio

17/07/2023 04h01

Quando morou no Leme, no Rio de Janeiro, o roteirista Lucas Paraizo, 45, foi o "chato" de um condomínio na rua Gustavo Sampaio. Ali viveu até ser, nas suas palavras, "expulso" pelas circunstâncias. O Leme é um bairro pequeno — de um lado, há o mar; de outro, nos fundos dos prédios, a mata e os morros.

Para Lucas, reuniões de condomínio eram fascinantes. "É como se ali fosse um espaço de você expurgar as suas insatisfações materializadas no convívio coletivo", define. E foi ali que ele se envolveu num confronto com o síndico, que cismou que queria retirar a área verde dos fundos do edifício, transformando-a num nada feito de concreto.

Lucas diz que diversas vezes conseguiu impedir o síndico. Há certa dramaturgia no que narra o roteirista, como se tivesse construído para si um conflito de partida para um novo projeto. Até que, um dia, voltando de viagem, viu o verde suprimido pelo cimento. Ficou furioso. Fez campanha entre vizinhos e tentou mobilizar um levante para a volta do verde. Os vizinhos não embarcaram na sua cruzada. "Virei o mala. Ficou insustentável. Acabei me expulsando do condomínio."

Na série "Os Outros" (Globoplay), o roteirista criou um condomínio caótico com arquétipos brasileiros em tensão social e sem disposição para o diálogo. Fora da ficção, a vida de Lucas é, na verdade, mais calma. Escolheu embrenhar-se no Jardim Botânico, num antigo prédio de três andares, que mais parece uma casa. Não tem porteiro, não tem elevador, não tem confusão. De seu apartamento, aberto e minimalista, só se vêem árvores e poucas janelas.

Lucas nasceu e cresceu no Jardim Botânico. Está a poucas quadras de onde viveu com a família — o pai foi assassinado num assalto; a mãe, gaúcha, agora mora no Sul, embora esteja passando um tempo na casa do filho para se recuperar de uma cirurgia.

"Minha rotina não tem nada de interessante, sou muito caseiro", diz o roteirista, que se revela um observador que quase não sai de casa: às vezes vai à Globo; e, três vezes por semana, à análise — ao divã, diz levar junto discussões sobre a personalidade dos personagens que criou para a ficção. Mas, na terça-feira (11), visitou o Ilha Pura, o gigante conjunto de condomínios na Barra da Tijuca onde gravaram "Os Outros", produção que hoje é a mais assistida da Globoplay. Foi lá que a diretora Luísa Lima encontrou um conjunto de torres totalmente desocupado para a série.

"Quantas histórias não estão por trás de cada sacada desses prédios? Quantos financiamentos? É um 'sonho' de endividamento", refletia ele, observando uma torre apinhada de corretores imobiliários, vitrines e um vazio imenso. Parecia inconformado com a suntuosidade do empreendimento, citando a triste ironia de ter tantas unidades desocupadas enquanto tanta gente não tem onde viver.

Lucas Paraizo no condomínio Ilha Pura, na Barra da Tijuca - Zô Guimarães/UOL - Zô Guimarães/UOL
O autor de 'Os Outros' no condomínio Ilha Pura, na Barra da Tijuca, onde foi gravada a série
Imagem: Zô Guimarães/UOL

Lugar de fuga

No trajeto do Jardim Botânico à Barra da Tijuca, uma viagem de Uber que durou quase uma hora num dia sem trânsito intenso, Lucas foi comentando contido, quase tímido, como é o ofício que escolheu, o de roteirista.

Lucas começou a trabalhar na Globo antes de mergulhar na ficção: até 2001 era o responsável por ler cartas endereçadas à produção do "Domingão do Faustão" e escolher entre as centenas delas as histórias que teriam vez na TV. "Uma infinidade de histórias, de realidades diferentes, isso é o que me fascina", diz, animado.

Escrever é o que considera a essência do ofício que exerce com olhar afiado, crítico e inevitavelmente político: "Sou um operário da dramaturgia". Uma vez por ano, Lucas viaja a Cuba para dar aulas na prestigiada Escola Internacional de Cinema e Televisão, onde se formou. Docente por mais de dez anos, leva ao trabalho, hoje quase todo online, um lado professor que busca ouvir e construir junto à equipe. "Tem que ter outro olhar", justifica.

Há tempos trabalha quase sempre com os mesmos profissionais que conheceu ao longo dos anos. É do tipo que direciona toda a narrativa, mas não é controlador, conta Flavio Araújo, 48, roteirista com quem Lucas colabora há cerca de dez anos. Também é meticuloso, metódico e quase que roteiriza a própria rotina, acrescenta. "Ao mesmo tempo que é uma pessoa sensível a tudo, é muito metódico. Adora uma planilha."

Lucas Paraizo, roteirista da série 'Os Outros' - Zô Guimarães/UOL - Zô Guimarães/UOL
'Uma infinidade de histórias, de realidades diferentes, isso é o que me fascina'
Imagem: Zô Guimarães/UOL

A atriz Marjorie Estiano, 41, também o acompanha desde que o conheceu, durante a série "Justiça" (Globo), de 2016. Uma das protagonistas de "Sob Pressão", outro sucesso do autor, tornou-se uma de suas melhores amigas. "Ele tem absoluto domínio técnico, muita habilidade, é agregador. Ele consegue administrar muitas coisas, o que tem um preço alto para aqueles que não deixam a sensibilidade de lado", diz. "Um cara extremamente humano, 'desglamourizado' e empático. Sinto Lucas comprometido com o exercício do ser humano, é o que mais admiro nele."

O preço alto que a atriz talvez esteja se referindo é uma certa clausura na qual vive o escritor. "Ouço tudo o tempo todo, sou muito observador", diz Lucas. "Sou obsessivo. Só entrego um texto quando está realmente bom." Passando os dias lendo e escrevendo dentro de casa, onde as prateleiras abrigam livros e, entre eles, troféus discretamente posicionados, louros que recebeu por suas histórias premiadas.

"Por que vou sair daqui?", indaga, andando no apartamento no terceiro andar que dá direito a um pequeno terraço — "é meu lugar de fuga".

Lucas Paraizo, roteirista da série da Globoplay 'Os Outros', em seu apartamento no Jardim Botânico, no Rio - Zô Guimarães/UOL - Zô Guimarães/UOL
'Ouço tudo o tempo todo, sou muito observador', diz o roteirista, na sua casa, no Rio
Imagem: Zô Guimarães/UOL

'Outra dimensão'

Tão habituado a ficar sozinho, às vezes fica com preguiça de receber os amigos. "Recebo menos do que deveria", confessa. O namoro, que era à distância, agora está em suspenso. "Então me deixem bonito, porque acho que estou solteiro", brinca, na hora de posar para a fotógrafa do TAB.

Entretanto, a vida pacata mudou bastante depois do lançamento de "Os Outros".

"É outra dimensão, o direcionamento a mim tem sido maior. Estou um pouco exausto de falar sobre a série. Outro dia fui a uma festa e voltei para casa correndo, todo mundo só falava disso. Cheguei, deitei e fiquei trancado três dias no meu quarto, olhando para o teto, tentando não pensar em nada."

A campainha tocou. Era a entrega de um buquê de flores. "Olha só, mais um" — ao seu redor já havia diversas orquídeas envasadas. Lucas abriu o envelope e logo brincou: "Não deve ser de nenhum admirador, tem essa etiqueta impressa".

As flores foram presente da Globoplay, seu maior relacionamento no momento. "Eles mandam direto", diz. O ego fica feliz, ele admite. Entretanto, o roteirista também teme o peso da responsabilidade de que o que ele escreve na solidão de sua sala vire um tipo de trending topic no país todo. "Outro dia, um amigo me contou uma história que me espantou: ele estava no supermercado e ouviu uma mulher dizer ao marido que não iria desistir de morar num condomínio por causa de uma série", cita.

Alguns telespectadores discutem em quem cada personagem teria votado nas últimas eleições, embora o tema não seja abordado diretamente na história. "Em tudo que eu fiz há essa dimensão [política], mas não queria criar um signo específico dessa polarização, de quem teria votado em quem. Até porque eu acho que todo mundo naquele condomínio votou na mesma pessoa, né?", diz, referindo-se a Jair Bolsonaro, para o desapontamento de parte da audiência.

Ao lado da porta de entrada de sua casa está pendurado um exemplar do presente que a Globoplay deu aos convidados da festa de lançamento da série: um espelho redondo. Os outros somos nós — este é o olhar do autor.

Lucas Paraizo, roteirista da série 'Os Outros' - Zô Guimarães/UOL - Zô Guimarães/UOL
Imagem: Zô Guimarães/UOL