Sem mágoa da crítica, Michael Sullivan canta Xuxa e Tim Maia em festival
Em agosto, quando Michael Sullivan subir ao palco do festival Doce Maravilha, no Rio, provavelmente será o artista com a maior vendagem de discos entre as atrações. Em suas contas são mais de 80 milhões de álbuns, entre trabalhos solos e tantos outros produzidos por ele entre 1980 e 2000. "Os discos de ouro decoram todas as paredes da minha casa", o cantor diz, orgulhoso.
Sua presença ali será como uma subida ao Olimpo. Embora quase ninguém ocupe o lugar de Sullivan e seu parceiro Paulo Massadas na música brasileira, esta é a primeira vez que ele participa da nova onda de festivais de grande escala, voltados à música brasileira. Reconhecimento tardio que ele diz estar experimentando nos últimos anos.
Nos anos 1980, enquanto suas composições bombavam nas paradas, Sullivan era bombardeado em igual medida pela crítica, que chamava de "brega" e "popularesca" aquela música que grudava no ouvido do povão. Este é, inclusive, um período que ele não gosta muito de relembrar. "Ali houve um problema muito sério, briga de cachorro grande entre as gravadoras. A gente incomodava. Ficamos uma década em primeiro lugar."
Não importa quantos anos você tenha: se de alguma forma cruzou os anos 1980, certamente ouviu e consumiu muito da obra de Michael Sullivan. Suas músicas foram defendidas por Gal Costa, Tim Maia, Alcione, Fagner, Fafá de Belém, Roupa Nova e Roberto Carlos. É dele e de Massadas boa parte do cancioneiro para o público mirim como Xuxa e Trem da Alegria.
A obra de Sullivan embala, até hoje, festas nostálgicas, cerimônias de casamento e aniversários de criança. O show que fará no Doce Maravilha destaca a supremacia radiofônica: Michael Sullivan canta Tim Maia e Xuxa. "São os dois maiores momentos da minha história como produtor", ele reconhece hoje, aos 73 anos.
Tamanha vitrine, claro, influenciou uma geração de músicos. Nos últimos anos, gravou com Daniel Jobim, fez parceria com Arnaldo Antunes e foi resgatado por Alice Caymmi, que agora coproduz o último disco de Sullivan.
"Acho que o povo da cultura se acalmou. É tão forte a memória afetiva que eles vêm a força com que a música, sem explicação, entrou na vida das pessoas", diz. "Mas eu prefiro falar do futuro, não adianta falar de mágoas."
O compositor de nome gringo recorreu às origens e intitulou o trabalho mais recente, lançado no início de 2023, de "Ivanilton", seu nome de nascimento. "É quase uma homenagem. O Sullivan colocou tudo no ar, mas com a alma e a experiência do Ivanilton", explica. "Muita gente achava que eu era um norte-americano que morava no Brasil e falava bem português. Nunca fui brasileiro pra ninguém."
Ivanilton do Recife
Antes de se tornar Michael Sullivan, Ivanilton de Sousa Lima era uma revelação no Recife, em Pernambuco. Aos 15 anos, participava de concurso de calouros na rádio e na TV, até se tornar o cantor oficial de um programa musical na TV Jornal do Comércio, a maior emissora do Nordeste.
Toda semana, acompanhado de uma orquestra, ele defendia covers de músicas em inglês e italiano que faziam sucesso lá fora. O programa encerrava sempre com apresentações de artistas já populares, como Elis Regina, Roberto Carlos e Cauby Peixoto. "Um dia Cauby falou pra mim: 'garoto, pega um avião, um ônibus, um jumento e vai embora para o Sul que você vai ser um dos grandes nomes do país'", ele lembra.
Com a carteira da Ordem dos Músicos de Caruaru (PE) na mão, ele desembarcou no Rio de Janeiro aos 17. Chegou a morar alguns dias na rua, conheceu Tim Maia e Cassiano antes da fama e integrou bandas como Os Nucleares. Sullivan descreve Ivanilton na terceira pessoa: "Ele sempre foi um guerreiro, tomou porrada. Deus me colocou no meio dos maiores astros já consagrados ou que iriam se consagrar, eu só ficava calado e aprendia".
A faceta gringa de Michael Sullivan só surgiu em 1976, em plena onda de gravações em inglês, puxada pelo sucesso de "Feelings", de Morris Albert, nome artístico de Maurício Alberto, compositor de uma das canções mais regravadas do mundo.
A TV Globo pediu para Sullivan, na época integrante do Renato e Seus Blue Caps, algo na mesma linha. Ele compôs a balada "My Life", que virou trilha de novela e número 1 nas rádios. Para defender a persona que cantava em inglês, foi atrás de nomes e sobrenomes que soavam americanos. "Michael Sullivan nasceu das páginas de uma lista telefônica."
Michael Sullivan do Brasil
Sullivan entrou numa nova fase a partir de 1979, quando começou a compor com Paulo Massadas, músico que passou a acompanhá-lo nos shows solo. Juntos, compuseram para artistas como José Augusto ("Amar Você"), Fagner ("Deslizes") e Leonardo & Leonardo ("Talismã"), com especial foco no selo Jangada, da gravadora EMI, dedicado ao mercado consumidor no Nordeste e interior.
O boom mesmo aconteceu quando o antigo amigo Tim Maia pediu à dupla uma música. "Ele disse que queria algo meio Barry White, sussurrando no ouvido com algum dos meus refrões", conta Sullivan. Dias depois, "Me Dê Motivo" estava pronta.
Na sequência, a dupla investiu nas músicas infantis, com no disco "Clube da Criança", em 1984, revelando talentos que dominariam a década, como os cantores mirins Luciano Nassyn e Patrícia Marx (depois integrantes do Trem da Alegria).
O público infantil já estava rendido pela Turma do Balão Mágico e os sucessos instantâneos do trio As Melindrosas, embalados por versões de músicas do mercado internacional. "A gente queria músicas inéditas, brasileiras, e foi uma explosão, porque entrou a Xuxa junto", disse.
Xuxa é uma das recordistas de vendas de discos no Brasil, ultrapassando a marca de 50 milhões de cópias entre os anos 1980 e 1990 — todos os álbuns desse período foram feitos sob supervisão, produção e muitas composições de Sullivan e Massadas.
"Imagina, o Trem da Alegria vendia 1 milhão de cópias e a Xuxa mais 6 milhões", ele conta. Eram as canções de amor, e outras tanto que falavam de chocolate, sonhos e brincadeiras de criança, que garantiam, nas contas do compositor, 10% do mercado nos anos 1980. Esse período de fenômenos infantis e grandes vendagens voltará com força no audiovisual nas próximas semanas, com a estreia de séries sobre Xuxa, A Turma do Balão Mágico e a própria parceria entre Sullivan com Massadas — este ainda sem data de lançamento.
Até mesmo quando se apresentava ao vivo à noite — com um repertório autoral que ia de "Whiskey a Go-a-Go" (Roupa Nova) a canções de suas bandas Renato e Seus Blue Caps e The Fevers —, era obrigado a tocar os sucessos para os pais dos "baixinhos". "Eles ficavam enlouquecidos quando tocava à meia-noite e não tinha criança por lá. Era uma explosão no baile", relembra. "Até hoje, em qualquer show, tenho que fazer um medley com essas músicas" — entre elas, "Carrossel de Emoções", "É de Chocolate" e "Lua de Cristal".
Sullivan poderia dizer que os filhos foram sua maior inspiração para as canções e, de certa forma, ele estaria certo. Afinal, as primeiras composições surgiram ao pé da cama, em versões bossa-nova. "Para mim, é a emoção da boca no microfone. Qualquer música que eu começo eu toco como bossa nova."
Foi uma fita cassete com a versão bossanovista de "É de Chocolate" que convenceu Xuxa a entrar de vez no mercado fonográfico. "A pessoa precisa de duas coisas para cantar: ouvir a melodia e aprender a cantar essa melodia, a ter ritmo. Ela conseguia fazer as duas coisas. A interpretação dela é natural, porque é da pessoa, tem emoção", avalia.
A reação a todo sucesso foi o que ele chama de "campanha orquestrada" da crítica e das gravadoras concorrentes. "Encontrei Tom Jobim num avião e ele falou: você sabe aquela frase que eu falei, né? Aqui sucesso demais é afronta pessoal."
Sullivan não sabe explicar o toque de Midas, mas avalia que o público na época queria mais leveza e diversão. "De vez em quando eu converso com o Massadas. A gente acha que estávamos entrando no processo democrático e a ditadura estava acabando. A música até então era muito pesada, mais política, mais densa e misteriosa. Nós falávamos de esperança e amor direto pro povo."
A receita, que o faz compor até hoje, em parcerias com Desmond Child, para o mercado latino, vêm dos tempos de calouro, quando ele ouvia, na mesma intensidade, Luiz Gonzaga, Ângela Maria, João Gilberto e Chuck Berry . "Sempre que eu vou compor chegam ao meu cérebro todas essas informações. É assim até hoje, nunca mais vai apagar. Só quando eu me for", observa.
"O Michael Sullivan ficou com vergonha disso tudo e está fazendo uma homenagem, reconhecendo que, sem ele, nada disso aconteceria". Ele, então, pede: "Toda a glória pro Ivanilton, que ele merece."
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