Criador de Gretchen, Mister Sam quer volta das 'músicas alegres'
De uma caixa de som potente, plugada diretamente no computador, sai um som funkeado, hit do finalzinho dos anos 1970. Trata-se da música "Funkytown", da banda Lipps Inc. Os versos, no entanto, são cantados de forma distorcida, acelerada. Esganiçada, como um pato, a voz dá risada e pede: "Dance! Dance!"
Diante do computador está o dono da voz, conhecido até hoje como Mister Sam, 77. De cabelos lisos e grisalhos e sotaque argentino, ele é o criador de um dos muitos fenômenos da indústria musical nos anos 1980. Antes da era da Turma do Balão Mágico e do Trem da Alegria, eram Os Três Patinhos que faziam a cabeça das crianças.
Era uma banda virtual, representada pelo desenho de patos antropomórficos, bastante parecidos com os personagens do Tio Patinhas da Disney. Foi uma das primeiras experiências do gênero no mercado brasileiro.
Na época, as vozes dos patos eram criadas de forma manual. A voz de Sam era gravada em bases já existentes em ritmo muito lento e, depois, acelerada para chegar ao efeito desejado. O repertório ia de cantigas a versões de sucessos da época, algumas com letras de duplo sentido (como "Severina Xique-Xique", de Genival Lacerda). O que importava mesmo era a voz de pato no ritmo viciante da disco music, à época em franca expansão no Brasil.
"Foi uma máquina de fazer dinheiro", diz Mister Sam, que contabiliza 15 milhões de cópias dos cinco discos dos patinhos entre 1980 e 1985. "Mas eu não ganhava royalties, só era funcionário da gravadora."
Mister Sam foi um dos mais importantes DJs e produtores no Brasil nos anos 1970 e 1980. Criador de projetos mirabolantes, com foco nas paradas e grandes vendagens. Alguns naufragaram, é verdade, mas tantos outros mudaram para sempre o mercado pop — é de sua cabeça que surgiu Gretchen e toda a onda da chamada "bunda music". "Eu tinha 30 anos, queria farra, era divertido", resume.
Há exatos 50 anos no Brasil, o produtor, DJ e compositor argentino quer colocar suas ideias para rodar em pleno 2023. No seu apartamento em São Paulo, com cara de apart-hotel, ele passa a maior parte do tempo diante do computador, produzindo um novo disco de Os Três Patinhos. "Você não acha uma boa ideia?", pergunta, sem esperar resposta.
Ele mostra, no celular, uma conversa de WhatsApp com o diretor artístico de uma grande gravadora que, segundo ele, detém os direitos dos discos antigos da banda de patos. Pedia, numa mensagem: "Vocês não acham que deveriam relançar esse produto agora no Dia das Crianças? Eu autorizo."
Sucesso sem rosto
Santiago Malnati já era uma persona conhecida na indústria musical argentina quando veio ao Brasil. Foi DJ, engatou uma dupla de sucesso, Sam e Dan, e vingou um sucesso radiofônico que lhe dava, pela primeira vez, uma grana boa de direitos autorais. Era a música "Se Mete, Se Mete". "Tinha o mesmo sentido que aqui. Pornô. Duplo sentido", o autor explica.
Era 1973, e ele havia atendido ao chamado do amigo Roberto Levi, argentino que compôs para Julio Iglesias e lançou Sidney Magal. "Ele disse: 'Do jeito que você é, você vai arrasar no Brasil'", Sam lembra. "Eu só sabia do Brasil quando me davam um disco do Agnaldo Timóteo para tocar na pista. E Roberto Carlos."
Chegou aqui quando o mercado entrava numa fase de vendas massivas e fenômenos pop, como a banda Secos e Molhados, de cujo primeiro disco ele acompanhou as gravações, apenas para assinar as papeladas burocráticas das sessões.
"Foi um grande fenômeno boca a boca, sem jabá. Era uma mistura de hétero com gay e foi aceito pela população toda, as crianças dançavam", conta. Percebeu ali que o país tinha um campo todo a ser explorado. "Na Argentina tudo era muito burocrático."
Na gravadora Copacabana, fazia versões em português de sucessos em espanhol para Paulo Sergio e Gilberto Reis (na época, vendidos como os "novos Roberto Carlos"). Também trabalhava no departamento internacional, viabilizando lançamentos e shows do casting brasileiro, como Nelson Ned, mas Sam queria mesmo era criar um projeto só seu para embalar o brasileiro com um som dançante, debochado e divertido. "Eu tinha fama de doido", diz.
Em 1974, criou o trio As Exorcistas, pegando carona no extremo sucesso do terror de William Friedkin nos cinemas. Apesar do nome, as cantoras eram bonitas e cantavam covers de músicas como "Mrs. Vanderbilt", de Paul McCartney, com vozes angelicais. "Não deu certo, mas as meninas cantavam pra caralho, eram coristas."
Nessa época, a indústria despejava caminhões de versões na praça. A maior parte era gravada por artistas de nomes estrangeiros. Muitos sequer existiam. Eram criações de algumas gravadoras, como a própria Copacabana. No vinil, o registro ficava com o talento e o gogó de cantores anônimos brasileiros. Era uma maneira de fazer dinheiro com os grandes hits de fora, que demoravam a chegar por aqui, numa época sem internet e conexão global. "E ninguém ligava para pedir autorização, não existiam essas coisas", ele observa.
Sam explorou bem a brecha. Produziu muitos desses "personagens" — em inglês (como a dançante "Don't Push, Dance, Dance, Dance", do artista Baby Face, que depois se lançou com o nome verdadeiro, Nahim), mas também em português. Uma das séries de maior sucesso reunia covers de sambas, sob o genérico nome de "Samba, preferência popular" e imagens de mulheres seminuas na capa. "A Copacabana não tinha muito cantor de samba famoso. Até colocava uma música do Benito de Paula, mas e as outras 12? A gente inventava ou fazia cover."
Muitas dessas versões são verdadeiras joias encontradas apenas no YouTube, em vídeos que mostram os compactos, hoje raros, girando na vitrola de algum colecionador. Músicas que dificilmente serão redescobertas no streaming, onde os direitos autorais são mais controlados, embora o produtor gaste um tempo do seu trabalho hoje em busca dos originais.
Enquanto isso não acontece, ele segue trabalhando com as novas tecnologias — à sua maneira. No Spotify, ele mostra várias coletâneas temáticas, repletas de hits que produziu no passado (remixadas por DJs) e outras novas bandas virtuais, com nomes como HQC e Black Orchestra. "É um invento meu", ele diz, mostrando as músicas. "Faço isso para me manter ativo."
Dance, dance, dance
Foi no auge da febre da disco music que Mister Sam garantiu seu maior sucesso. Em 1978, ele conheceu Maria Odete, uma cantora aspirante, prestes a fazer 19 anos. Ela havia acabado de participar de um programa de calouros. "Ela cantava uma música sensual, dançava sensualmente na televisão, cantava bem, era tudo que eu queria."
Sam não sabia muito bem o que fazer com ela, mas pensou todo o personagem: ela seria alemã, não saberia nada de português. Seu nome? Gretchen. Criou um repertório com letras bem básicas. A nova artista "estrangeira" ia estrear num programa de TV, mas foi censurada pelo alto teor sensual.
A gravadora acabou deixando Gretchen de molho por três meses para que a censura esquecesse a cena em que a cantora rebolava com vestido curto de renda, mas Maria Odete não ficou sem trabalhar.
Antes mesmo de Os Três Patinhos, a gravadora Copacabana colhia lucros com uma banda virtual infantil, As Melindrosas, um estouro de vendas. De olho na repercussão, a TV Globo queria gravar uma apresentação com as integrantes — que não tinham rosto, nem nome. Começou uma corrida contra o tempo para encontrar jovens dançarinas para personificar a invenção musical.
"Eu via todo dia um entrar e sair de um monte de mulher na Copacabana, até mulheres que faziam filme pornô", relembra Sam. O produtor pensou na recém-contratada e sua família. "Não sei se cantam, mas são bonitas", apresentou à gravadora.
Ao lado das irmãs Yara e Sula Miranda (e a prima "distante" Paula), Gretchen estreou primeiro como integrante das Melindrosas, mas, em breve, deixaria os brasileiros de boca aberta, dando início à fase da bunda music.
Com a melodia irresistível entre a disco music e a música latina, Gretchen gemia nas gravações e rebolava em shows, sempre na base do playback. "Hoje a Anitta e a Ludmilla fazem a mesma coisa", ele garante. "Sabia que a Dua Lipa não canta ao vivo?".
Apesar de praticamente inventar Gretchen, ele diz que o rebolado nunca esteve nos planos originais. "Nunca falei pra ela fazer uma coreografia. Ela vinha com tudo pronto. Eu era o gênio no estúdio, e ela, a gênia no show. Até hoje todas as mulheres que dançam fazem aquela voltinha dela", explica. "Aí fiquei quieto e disse: 'Viva a bunda music!"
Nos anos 1980, Sam migrou para a TV, com o programa "Realce Baby", na TV Gazeta, onde apresentava shows e clipes, anos antes da MTV. "Fui para promover meus artistas. A gravadora Copacabana não tinha verba. O que eles davam de jabá era jogo de cozinha, colocava no fogo e derretia todo", conta.
Ele gestou a estreia musical de muitas figuras televisivas, como Wagner Montes, Fernanda Terremoto e Rita Cadillac — apresentada como concorrente de Gretchen. Contratou e produziu nomes quentes dos bailes blacks, como Miguel de Deus e Black Soul Brothers, e criou o grupo Black Junior's, expoente do rap nacional. Seguiu discotecando e lançando álbuns com seus sets. Em um deles, aparecia na capa como um mafioso italiano, cercado de belas garotas. "Nesse disco eu gravei 'Tarantella' em versão disco", ele diz, olhando a foto. "Putz, vendeu mais de 1 milhão."
Entrou nos anos 1990 com o mesmo faro popular e sensual. Produziu os grupos Banana Split e Dominó, artistas empresariados por Gugu Liberato (o próprio apresentador foi produzido por Sam, na música "Docinho Docinho" em 1984), além da cantora Lady Lu, com quem trabalha até hoje.
Ele mostra, animado, a parceria dela com a dupla Matogrosso e Mathias, recém-produzida por ele naquele mesmo computador. Ele reconhece a facilidade na hora da produção, comparada aos analógicos anos 1970 e 1980. O difícil mesmo, ele diz, é divulgar. "Era para ser um estouro, mas não tenho dinheiro pra pagar pra tocar", explica.
Seja com covers, artistas virtuais, bunda music ou a volta de Os Três Patinhos, para Mister Sam ainda há espaço para suas criações. "Esses sucessos são sinônimos de músicas alegres", diz. "E quem é que não gosta de música alegre?"
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