Entre dores e silêncio sobre Rita, Sergio Dias segue como 'o único mutante'
A certa altura do show, o guitarrista apresenta a banda à sua volta. Com a cabeça mais branca que as dos companheiros de palco, ele aponta para si: "Meu nome é Sergio Dias, nós somos Os Mutantes e vamos tocar até cair".
Pode-se questionar se eles são realmente Os Mutantes — banda seminal criada por ele, seu irmão Arnaldo Baptista e Rita Lee, nos anos 1960 —, mas é só ouvir o solo límpido e perfeito que Sergio tira do instrumento, sentado no centro do palco com uma expressão de dor e gozo, que se sente parte da antiga mágica.
Com casaco brilhante e cachecol enrolado no pescoço, Sergio Dias esteve de volta a São Paulo, sua cidade natal, pela primeira vez em seis anos. Antes de pisar no Cine Joia, em show único na capital paulista na última quinta (1º), ele esteve com sua banda em mais uma turnê internacional, com shows no México e nos Estados Unidos, país que adota como lar desde 2008.
Um dia antes, instalado num apart-hotel, ele aparece com o rosto cansado, efeito, segundo ele, do "jet lag". "Chegamos aqui tortos, não tinha cadeira de rodas no aeroporto pra mim. Quase morri de dor por ter de andar, porque chegou atrasado o avião. Nossa Senhora, foi um inferno."
Aos 72 anos, o guitarrista conta que sofre com as dores de uma "vértebra estragada". Na verdade, consequência da espondilolistese, quando há o escorregamento de uma vértebra sobre a outra. Sentiu a dor pela primeira vez ainda na década de 1980. "Fui abaixar para pegar algo e do jeito que eu abaixei eu fiquei. Desde então, foi piorando. Agora tenho que tocar sentado, é uma merda."
As dores, diárias, são intensificadas pelos longos voos. "Eu não tenho mais esse disco [na coluna], é osso com osso", conta, mostrando pomadas, anti-inflamatórios e uma caixa organizadora de comprimidos, com os dias da semana escritos em inglês.
Quando recebeu o diagnóstico, chegou a cogitar a aposentadoria dos palcos, como fizera Rita Lee, sua antiga companheira de banda, ao completar 64 anos. "Mas, se eu parar, eu paro por dentro. Não tenho vergonha de entrar no palco e ficar sentado o show inteiro. Então, foda-se, é o que eu tenho pra dar e vou continuar dando."
O que o motiva a carregar solitariamente a bagagem musical dos Mutantes, acompanhado de músicos de outras gerações, é a empolgação com que ele narra as apresentações da banda, em especial nos Estados Unidos e na Europa, onde ele ainda enfileira shows esgotados, às vezes fazendo 29 apresentações em um mês. "É maravilhoso. Eu não sei como agradecer. Eu continuo principalmente pelas crianças, os fãs garotos."
É a "tour de force" do último Mutante na estrada. "Eu me chamaria de 'primeiro mutante'. Talvez eu seja o único", rebate.
Um guarda-chuva mágico
Peça fundamental na Tropicália e em todo o rock brasileiro, a herança d'Os Mutantes ganhou outra proporção nos anos 1990, com fãs declarados como David Byrne, Kurt Cobain, Sean Lennon e Beck, e o fascínio de uma geração mais nova que chapava com o som imprevisível e debochado, criado entre a psicodelia e a música brasileira.
Àquela altura, nenhum dos remanescentes vislumbrava uma volta da banda. Ao contrário, a história do fim dos Mutantes sempre esteve cercada de brigas, mágoas e troca de farpas. "Sempre os procurei para manter contato. Nunca entendi esse afastamento que nos foi atingindo", afirma Sergio.
Tudo mudou em 2006. Na ocasião de um grande evento sobre a Tropicália no Barbican Centre, em Londres, o rumor de que a banda pudesse voltar deixou os fãs em polvorosa. "Isso aconteceu por causa de um erro da imprensa, mas foi um erro fortuito", diz.
Sergio, que vivia entre o Brasil e oos EUA tocando seu projeto solo e colaborando com outros artistas, foi surpreendido com a história, mas aproveitou para sondar os antigos companheiros, incluindo o baterista Dinho Leme e o baixista Liminha.
Rita Lee foi a única a não topar a nova mutação — ela diria, mais tarde, que aquilo era um revival de "velhinhos espertos querendo juntar dinheiro para pagar seus geriatras". Sergio chamou a cantora Zélia Duncan para os vocais e outros instrumentistas para uma série de shows, tocando até em Singapura. Foi uma faísca que atiçou o fogo antigo e jovial. "Quando fomos ao Barbican, esperava encontrar gente da minha idade e só tinha moleque, todo mundo cantando. Quebramos a barreira da língua", lembra.
A formação durou até setembro de 2007, quando Zélia comunicou sua saída do grupo, acompanhada de Arnaldo Baptista. Na época, o empresário da banda chegou a vaticinar o novo fim, mas quebrar a magia era algo inconcebível para o guitarrista. "Quem é aquela besta pra chegar pra mim pra dizer que Os Mutantes acabaram? Vá à merda, coitado", diz, ao relembrar do episódio.
Ele manteve os shows marcados, puxou a cantora Esméria Bulgari, que fazia backing vocal, para o microfone principal, e o segundo tecladista para assumir o baixo. Seguiu na estrada para se esbaldar na ovação e reconhecimento inéditos.
"O Brasil tem uma crueldade com seus ídolos. Quando a gente resolveu se juntar, todo mundo caiu malhando aqui, dizendo que ia ser uma merda. Nós calamos a boca de todo mundo. Fomos a primeira página da 'New York Magazine', fui chamado de guitar hero, colocado no mesmo nível de Eric Clapton e Santana", ele defende.
"O poder dessa música é incomensurável. Esse enorme guarda-chuva mágico que cobre os Mutantes é a nossa honra. Eu sei que nada disso me pertence. Sou só um tradutor, mas tenho essa responsabilidade, jamais vou deixar alguém encostar a mão no que a gente significa e no que a gente faz ou fez."
Uma responsabilidade que ele só aceitaria dividir novamente com Arnaldo. "Ele estava crescendo magnificamente quando estava junto com a banda, em todos os sentidos", diz. Sem contato com o irmão, aproveita para mandar um recado: "A porta está aberta, viu, Arnaldo."
Amor e reticências
Sergio se descreve como um cara que fala tudo na lata. Na pandemia, disse ter ficado depressivo, sem contato direto com outros músicos — uma das motivações para mantê-lo na estrada. "Odiava fazer live, achava ridículo, uma coisa deprimente." O papo cai nas notícias que ele via à distância sobre a condução do então presidente Jair Bolsonaro, a quem ele chama de "besta quadrada". "Esse cara tinha que ser esquartejado", diz, e se emenda depois. "Desculpa, é que eu fico com raiva."
Ele só costuma pegar leve quando fala dos ex-companheiros. Na ocasião da morte de Rita Lee, semanas antes da entrevista, escreveu um texto cheio de reticências, repetindo a palavra "amor" — em claro contraste com o texto seco e impessoal divulgado por Arnaldo, com quem Rita foi casada na fase áurea dos Mutantes.
Diferentemente do que se acredita, Sergio e Rita fizeram colaborações esporádicas, um com o outro, após o Mutantes. Ele está na gravações de um dos maiores sucessos da cantora, "Mania de Você", e participou de alguns shows dela nos anos 1990.
O espírito musical de Rita também flutua em quase todo o show. Desde a abertura, com "Fuga N. II", uma das poucas cantadas inteiramente por ela, e em "2001", de autoria de Rita e Tom Zé. Apesar disso, esse era um assunto proibido na entrevista. Segundo a produtora da banda, Sergio ainda não estava bem em relação ao assunto.
"O [jornalista] anterior começou a falar de Rita e eu disse: 'Olha, vou desligar'. Já deixei avisado, não vou falar de algo que me pertence e que não é de mais ninguém. Não tenho que botar isso na imprensa, em livro, em porra nenhuma. Isso é meu e dela", avisa ao TAB.
Pontuo que os shows d'Os Mutantes em São Paulo aconteceria poucas semanas após a morte de Rita (a banda tocou também no Festival João Rock, em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, no último fim de semana), e que naturalmente ela poderia ser aclamada pela plateia. "Ficaria muito feliz se eles fizessem", respondeu. "Para mim acho que [a morte de Rita] nem bateu. É muito privado. É como perguntar a cor da calcinha da minha mulher. Não, tem limite. Isso é entre eu e ela. Quando você for lá para cima, e eu e ela já estivermos lá, a gente conversa."
No fim do show, após "Panis et Circenses", um coro de "Rita! Rita!" ecoou na plateia. Sergio sorriu, pôs a mão no peito e olhou para o alto.
Uma pessoa só
Desde 2008, Sergio Dias mora em Las Vegas com a mulher Maria de Lourdes e uma gata chamada Bebê. O restante da banda não mora lá. "Eles marcaram touca", considera ele, citando as benesses de se viver nos Estados Unidos. "Essa história do Brasil de você sair sem saber se vai voltar é muito barra. Não quero uma vida assim. Las Vegas é um sonho, uma cidade maravilhosa. É limpa, não tem grafite, não tem sujeira. As montanhas mudam de cor, parece que você está em Marte. E as pessoas são muito legais."
Sem residência fixa no Brasil (sua casa com estúdio na Granja Viana está alugada), as vindas ao país não incluem muita programação fora as apresentações. "Fico pouco tempo, quase não encontro ninguém." Ele lista o pessoal "da pesada" com quem andava e se relacionava, ainda menor de idade: Elis Regina, Dorival Caymmi, Angela Maria, Jair Rodrigues, Caetano Veloso e Gilberto Gil. "Tive a melhor adolescência do universo", diz. "E ainda era virgem."
Lembranças daquela época tomam sua cabeça, mesmo, na hora do palco. "Durante o show eu me lembro da gente compondo, tudo isso. É uma puta viagem, não tem preço."
Às vezes, ele admite, manter a chama mutante viva é um fardo pesado. Ele narra o esforço em tom bélico. "Imagina, você está lá com o [presidente da Ucrânia Volodymyr] Zelensky e o [presidente da Rússia, Vladimir] Putin bombardeia você, o que você faz? Um companheiro seu morre e cai, você joga as armas fora e vai embora? É uma questão de responsabilidade, amor à pátria."
Mas, tal qual na hora de seus solos de guitarra, o que fala mais alto é o deleite de quem não tombou na batalha. Sem tomar ácido há dez anos, o barato ainda bate na hora em que ele toca o instrumento. "É só pegar a guitarra que eu já estou em alfa. Posso me transportar para o local onde todos somos um. É um regozijo. Sei que tenho uma especialidade, que o que eu vivi, e vivo, ninguém viveu. Comigo bateu e parou aí. Tomei muito ácido, agora I'm the experience."
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