'SP é a ovelha negra do Brasil': o real último show de Rita, 10 anos atrás
"Uma das paulistanas mais roqueiras e ilustres, Rita Lee 'se comportou' durante o encerramento do show de aniversário de São Paulo, na noite de sexta (25), e nem de longe lembrou a cantora que já abaixou a calça no palco e foi detida após uma apresentação."
Este parágrafo abria meu primeiro texto publicado no UOL. Eu era um jornalista vindo da editoria de política e me aventurava pela primeira vez na música, minha verdadeira paixão.
Mal tinha chegado à redação e a chefia me mandou cobrir o show da Rita — quase como um teste final. Na época, as coberturas de shows eram feitas a quente e o relato tinha de estar no ar exatamente quando o show terminava.
Foi meu primeiro texto de show, mas o que eu e as mais de 35 mil pessoas ali não sabiam é que assistíamos à verdadeira última apresentação de uma das artistas brasileiras mais brilhantes da história.
Diferentemente do que se conta, Rita Lee não encerrou sua jornada nos palcos em 2012, no famigerado show de Aracaju, quando deixou o palco detida por policiais.
É verdade que naquele momento, aquela apresentação foi anunciada como sendo sua derradeira, mas Rita, talvez tocada pelo gesto rebelde aos 65 anos, resolveu estender as datas de comemoração dos 50 anos de carreira, chegando até àquela noite de 25 de janeiro, aniversário da sua cidade.
"Eu acho que São Paulo é a ovelha negra do Brasil", disse, no palco montado no Vale do Anhangabaú, cartão postal da velha São Paulo conhecida de Rita.
"Quando eu era pequena, vinha muito para esses lados. Hoje a cidade está abandonada, suja, violenta. Entra governo, sai governo", disse.
"Já fiz tanto por São Paulo. Já ameacei até me mudar. Mas São Paulo não para. É isso que é do caralho, não paramos. Na boa, se não fosse São Paulo, o Brasil seria menos. Daqui não saio, daqui ninguém me tira."
A cantora e compositora morreu na noite de segunda-feira (8), aos 75 anos, na capital paulista. Seja no mato ou no asfalto, São Paulo foi sua cidade até o fim.
O canto do cisne na pauliceia desvairada começou com atraso e uma chuva fina tipicamente paulistana. Rita subiu ao palco passando das 22h, estendendo a bandeira da cidade. Vestia um terno preto e, por baixo, uma roupa branca com babados.
Foi 1h30 de hits que embalaram o país nas cinco décadas de carreira — e que fez de Rita uma das mulheres que mais venderam discos no país. O repertório foi de Mutantes, com "Ando Meio Desligado", até "Reza", seu último single de sucesso.
No meio do caminho, uivou em "Doce Vampiro", e passou o pedestal por entre as pernas antes de cantar "Lança Perfume". "Até agora eu não fiz nada, estou comportadinha. Senão, não me pagam o cachê", disse.
Ela lembrava, num misto de orgulho e ironia, quando um ano antes havia xingado policiais à beira do palco em Aracaju. Tudo começou quando ela flagrou os agentes de segurança revistando e dando uma dura nos fãs, no gargarejo. Conforme constou em nota da Secretaria de Segurança Pública de Sergipe, a PM abordou as pessoas que pareciam estar fumando maconha na plateia. Rita não deixou barato:
"Olha, se a polícia bater, eu vou falar para o Brasil inteiro, denuncio e processo. Isso é força brutal. Vocês não têm o direito de usar a força na 'meninada' que não está fazendo nada. Cadê o responsável? Eu quero falar, tenho o direito. Esse show é meu, não é de vocês. Esse show é minha despedida do palco e vocês continuam tendo que guardar as pessoas, não agredir. Seus cachorros, cafajestes. Vocês estão fazendo de propósito. Eu sou do tempo da ditadura. Vocês pensam que eu tenho medo?", disparou.
As falas da cantora geraram comoção em parte da plateia, que começou a reagir à revista policial. Por um tempo, houve uma bagunça generalizada, mas logo normalizou. Ao final do show, a cantora foi encaminhada à delegacia da região e enquadrada no crime de "desacato e apologia ao crime ou ao criminoso".
Em abril de 2013, três meses depois do show em São Paulo, Rita foi condenada a pagar R$ 5.000 por danos morais causados a dois policiais envolvidos na confusão. Ela já estava devidamente aposentada.
No show de despedida, em São Paulo, pediu: "Por favor, deem o testemunho para a polícia, estou uma santa", ironizou.
Pouco envolvida com política, abriu ainda uma exceção ao parabenizar o então novo prefeito, Fernando Haddad (PT), mesmo sob vaias do público. "Aliás, é um prefeito jovem, bonito, gostosinho até. Eu posso falar isso porque eu tenho 67 anos. Ele faz aniversário também, então, parabéns aos dois", disse, antes de tocar e desejar "Saúde" à cidade. "Ei, Haddad, cuide bem da nossa cidade!".
No bis, ela apareceu com um boneco de cobra na cabeça para cantar "Erva Venenosa" e foi acompanhada pelo coro do público, entre eles Emerson Delgado, fã de longa data, à época com 40 anos.
Ele contabilizava ter visto vinte shows de sua artista favorita e me disse que queria aproveitar "mais um último show dela" para apresentar a "ídola" à afilhada Nicole, de apenas 3. "Ela anunciou que ia parar, mas eu tenho certeza que ela vai sentir falta também do calor desse público. E não dá para passar o aniversário de São Paulo sem ela."
Em seu livro "Uma Autobiografia", Rita Lee revelou que, em vez do confronto que marcou o show em Aracaju — muito menos a detenção covarde —, ela queria mesmo era o som da ovação como último registro:
"Eu queria mesmo era dançar o último tango da minha vida em São Paulo, cidade onde nasci, de onde nunca saí, onde meus pais escolheram como terra prometida, onde fui muito amada e odiada, onde meu mundindo na música começou. Dia 25 de janeiro de 2013, no aniversário de 459 anos da cidade, eu entrei no palco do Anhangabaú enrolada na bandeira paulistana e durante toda a apresentação a santa de casa fez, enfim, o milagre de ser ovacionada. Missão cumprida
au grand complet [por completo]. O ritual da aposentadoria dos palcos, antes que meu corpo desmoronasse de vez e há muito desejada, finalmente se realizou. 'Rita, hoje é dia do seu definitivo bye-bye Brasil, tenha a humildade de reconhecer que seu tempo passou e tenha o orgulho de sair de cabeça erguida por nunca ter vendido sua alma, que foi rock enquanto rollou, que você foi vencedora naquilo que escolheu seguir. Agradeça aos deuses da música e tira de uma vez seu time de campo, bonitona!'"No ombro do padrinho, Nicole aplaudia com os olhos vidrados na cobra de pano em cima da cabeça de Rita. Atenta à explosão de cores e sons do palco, a criança observou a artista, enfim, cumprir a promessa e se despedir, sorrindo diante da ovação, sem repetir as palavras "aposentadoria" ou "último show."
Melhor assim. Como a própria Rita cantava: "O adeus traz a esperança escondida, pra que sofrer com despedida?"
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