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'Eu tinha preconceito': como viver a evangélica Marlene mudou Elisa Lucinda

Desde que recebeu o convite para fazer o teste de Marlene, personagem da novela "Vai na Fé", fenômeno de audiência que terminou no último dia 11, a atriz Elisa Lucinda se transformou. Ela conta que, na ocasião, estava com o cabelo trançado e chegou a perguntar ao diretor Paulo Silvestrini se isso não seria um problema — por se tratar de uma personagem evangélica. Logo percebeu que esse tipo de estereótipo não estava no script. E aceitou o desafio de viver a mãe da protagonista da novela que virou hit.

Elisa credita o sucesso da produção ao texto da autora, Rosane Svartman, "antenado ao agora". E confessa ter sentido certa preguiça quando leu a palavra "misericórdia" nos primeiros diálogos que recebeu. Imaginou que encarnaria mais uma evangélica "chata" — para descobrir, mais uma vez, que a coisa seria diferente. Marlene não era, palavras dela, "uma fundamentalista religiosa", e tinha um arco narrativo rico na trama.

"Eu tinha preconceito", admite com todas as letras a atriz capixaba de 65 anos. "Se era evangélico, era como se fosse ser tudo de ruim. 'Evangélico é racista, homofóbico'. Eu achava que todos eram assim. Até que me deparei com [a personagem] Marlene. E aí fui para um outro lugar."

Um dos caminhos para construir a personagem Elisa encontrou bem ao seu lado, naquela que chama de "braço-direito": Sarah dos Anjos, sua secretária. Preta e evangélica, Sarah frequenta a Nossa Igreja Brasileira, denominação Batista de vertente progressista no Rio de Janeiro. E também o animado circuito do samba da cidade. Elisa viu então na personagem Marlene uma oportunidade de dialogar com uma parte imensa da sociedade brasileira.

Sarah dos Anjos, secretária de Elisa, evangélica, progressista e frequentadora de samba: fora dos estereótipos
Sarah dos Anjos, secretária de Elisa, evangélica, progressista e frequentadora de samba: fora dos estereótipos Imagem: Arquivo pessoal

Laboratório afetivo

"Parte do processo de construção da personagem como essa mulher evangélica que é tradicional, religiosa, porém amorosa, veio das entrevistas que a Elisa fez com a minha mãe", entrega Sarah, que, prova da boa convivência entre as duas, trabalha num escritório montado na sala da atriz, onde Elisa mantém um gongá, altar dos orixás de sua devoção.

A escolha de não visitar templos ("para não pirar também. A gente se apoia na realidade, mas é novela"), mas de conversar com pessoas para construir a personagem se revelou acertada. Não somente com com Sarah e sua mãe, Ilka Duarte, mas também com o pai da secretária, o pastor Aécio Duarte.

"Querendo ou não, meu modo de viver pode ser considerado incomum para uma mulher evangélica. Mas minha fé é plena no Jesus Cristo de Nazaré", explica Sarah.

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Na sala onde as duas amigas trabalham, o gongá, altar dos orixás de devoção de Elisa: respeito e liberdade religiosa
Na sala onde as duas amigas trabalham, o gongá, altar dos orixás de devoção de Elisa: respeito e liberdade religiosa Imagem: Zô Guimarães/UOL

Encontros e desencontros

O desencontro entre atriz e personagem acabou sendo menor do que Elisa imaginava. Mesmo o fato de a atriz ser adepta do candomblé, religião de matriz africana que sofre perseguições racistas e de outros grupos religiosos, deixou de ser - ela apenas diz exigir o mesmo respeito com que trata os fiéis de outras crenças. Conta ter resolvido a o problema fazendo a personagem com todo amor que podia. E chegou a ouvir na rua que Marlene era "uma fofa", adjetivo que nunca tinha imaginado para ela.

No momento, Elisa exercita o afastamento de quem já se despediu da personagem. "Eu tenho meus divãs, e desde que descobri quem sou eu de verdade, entendi que tinha pra onde voltar quando acaba um personagem", diz.

Ao mesmo tempo, depois de ter encarnado mais de 20 papéis na televisão, confessa nunca ter vivido algo tão intenso ali. Comparável apenas à sua longa experiência no teatro, na qual celebra também agora os vinte anos em cartaz da peça "Parem de falar mal da rotina", que reeditou em formato de livro, pela Editora Record.

Elisa não para e, enquanto fala, emenda uma atividade à outra - encontrando como denominador comum entre elas a sua vocação para a poesia.

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Com 80% do elenco negro, a novela 'Vai na Fé' entusiasmou Elisa, ativa em sua militância antirracista
Com 80% do elenco negro, a novela 'Vai na Fé' entusiasmou Elisa, ativa em sua militância antirracista Imagem: João Miguel Júnior/Globo

Militância artística e política

Na casa de Elisa Lucinda cartazes das inúmeras peças que montou convivem com seus livros de poesia, fotografias, troféus e um reluzente Kikito ao lado de um porta-retrato com a fotografia do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A atriz não esconde sua militância política, que conta exercer desde os tempos de faculdade, quando fazia parte da chamada "esquerda festiva".

Juntou-se ao repositório de lembranças uma pilha de 179 capítulos encadernados da novela, que ela conta ter lido como se fosse um livro. Sarah, que cuida de sua agenda tanto particular como profissional, é quem se equilibra para organizar a demanda "depois da novela".

Elas mantêm um grupo no WhatsApp, só com as duas como integrantes, onde trocam o tempo todo sobre a agenda mas também ideias. Elisa tem o costume de mandar ali poemas que nascem ou, como ela diz de forma apaixonada, "fotografias de momentos" e entendimentos que saem em forma de palavras. Depois, Sarah os transcreve.

'Estou num momento feliz, de colheita pelo audiovisual, principalmente por a gente estar sendo olhado', diz a atriz
'Estou num momento feliz, de colheita pelo audiovisual, principalmente por a gente estar sendo olhado', diz a atriz Imagem: Zô Guimarães/UOL
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Com 80% do elenco negro, a novela "Vai na Fé" entusiasmou Elisa, ativa em sua militância antirracista, também nesse sentido. "Todo mundo fala que a comida de uma mulher preta é uma delícia. No entanto, não tem uma mulher negra comandando um programa de culinária na TV brasileira", nota ela. "Pelo mesmo motivo que o nome daquela farinha é Dona Benta e não Tia Anastácia."

Apesar das dificuldades de abertura de espaço, a atriz comemora o fato de que "tudo mudou e tudo está mudando". Ainda vê com horror o genocídio de jovens negros nos morros cariocas e em todo o Brasil: "Só vou ficar mesmo sossegada quando pararem de nos matar. Aí vai ser a glória." Mas registra: "Estou num momento muito feliz, de colheita pelo audiovisual, principalmente por a gente estar sendo olhado."

A atriz tem manifestado suas opiniões políticas numa série de vídeos no Instagram. Nas postagenes com o sugestivo título "Quadrilha branca assalta joias do povo", ela comenta os desdobramentos das investigações que rondam o ex-presidente Jair Bolsonaro.

Quando pequeno, Lázaro Ramos viu com sua avó a peça 'O Semelhante', de Elisa Lucinda, em Salvador. Decidiu ali pela profissão de ator
Quando pequeno, Lázaro Ramos viu com sua avó a peça 'O Semelhante', de Elisa Lucinda, em Salvador. Decidiu ali pela profissão de ator Imagem: Zô Guimarães/UOL

Diva anti-diva

O assédio da imprensa e do público não a incomodam. Ao contrário, Elisa comemora o fato de que, como diz, "preto está na moda". Ao mesmo tempo, se diz "anti-estrelismo e anti-diva". Tira foto com quem pede, mas costuma perguntar, se a abordam: "Você sabe meu nome? Não sou Dona Marlene."

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Diante da reportagem do TAB, a atriz abre o celular para tocar um áudio do ator Lázaro Ramos. No ano passado, Elisa viveu Gladys, personagem mãe do ator no filme "Papai é pop". A voz de Lázaro ecoa na sala. "Eu sinto saudade de você o tempo todo, eu tenho inveja quando vejo outros atores e atrizes com você na internet", declara-se ele, que contou, em certa ocasião, ter se inspirado nela.

Lázaro fora assistir com a avó a uma apresentação da peça "O Semelhante" em Salvador. A avó e ele gostaram tanto do que viram, que ele diz ter sido determinante na sua escolha pela profissão de ator.

Em determinado momento, Sarah interrompe a entrevista: Elisa precisa trocar de roupa e ir ao Projac gravar uma participação no programa "Domingão com Huck": uma homenagem a Lea Garcia. A atriz negra carioca, uma das pioneiras no audiovisual brasileiro, morreu dia 15 de agosto, data em que receberia uma homenagem no Festival de Gamado.

"Morreu no tapete vermelho. Chiquérrimo", resume Elisa, como quem declama um poema.

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