Só para assinantesAssine UOL

Casa na praia e emprego no porto: a nova vida do ex-doleiro Alberto Youssef

Alberto Youssef, 55, dá expediente de segunda a sexta-feira num terminal de contêineres que presta serviços a empresas que movimentam cargas no Porto de Itapoá, em Santa Catarina. Lá, segundo informações que ele precisa passar periodicamente à Justiça, atua como uma espécie de gerente. Cuida de assuntos de recursos humanos, auxilia no departamento financeiro, acompanha a entrada e saída de mercadorias.

"O cara é um comerciante nato. Tem isso no sangue", elogia uma pessoa que conhece a rotina do ex-doleiro, pivô do escândalo da Lava Jato, lembrando que Youssef, filho de um imigrante libanês, começou a fazer negócios ainda criança vendendo salgados nas ruas de Londrina (PR), onde nasceu.

O atual emprego não tem nada a ver com suas condenações. Não é uma espécie de trabalho social ou voluntário.

Youssef mora numa casa de dois andares, de frente para a praia de Itapoá. De sua varanda, é possível andar até a areia sem sequer ter que atravessar uma rua. No condomínio em que fica o imóvel há piscina, quadra de bocha e churrasqueira. Casas vizinhas à de Youssef são alugadas para temporada por diárias de até R$ 1.900. O porteiro do condomínio disse à polícia que o ex-doleiro sai de casa todo dia por volta das 7h30 e só volta às 18h. Usa, no percurso, uma Mercedes-Benz azul antiga.

Parece uma rotina razoável para alguém tão encrencado com a Justiça. Youssef, porém, está zangado. Depois de ter passado quase 20 anos colaborando em grandes investigações sobre corrupção, acha injusto ainda ter que usar tornozeleira eletrônica onde quer que vá.

Ele, que já aparecia nos esquemas revelados pelo Caso Banestado, em 2003, e na Lava Jato, iniciada em 2014, cumpriu pena de três anos em regime fechado até março de 2017. Passou dois anos e oito meses na carceragem da Polícia Federal em Curitiba e mais quatro meses preso em seu apartamento, na Vila Nova Conceição, bairro nobre da zona sul de São Paulo. Agora solto, tem cumprido à risca, afirmam seus advogados, os termos de seu último acordo de delação premiada, fechado há nove anos e que previu 30 anos de punições.

Não sai de casa de noite aos finais de semanas e feriados, presta contas sobre sua rotina semestralmente às autoridades e não se conforma com o fato de que, sempre que pediu dispensa do uso da tornozeleira, isso lhe foi negado.

Youssef deixa a sede da Justiça Federal em Curitiba após colocar a tornozeleira eletrônica, em novembro de 2016, para cumprir prisão domiciliar
Youssef deixa a sede da Justiça Federal em Curitiba após colocar a tornozeleira eletrônica, em novembro de 2016, para cumprir prisão domiciliar Imagem: Paulo Lisboa/Folhapress

Rigores da lei?

Na cabeça de Youssef, nenhum outro réu da Lava Jato recebe tratamento tão duro. Outros personagens da operação, como o executivo Marcelo Odebrecht, já estão em liberdade. Luiz Inácio Lula da Silva (PT) teve suas condenações anuladas e voltou à Presidência. Até o ex-juiz Sergio Moro e o ex-procurador Deltan Dallagnol viraram a página e assumiram-se políticos.

Continua após a publicidade

Por isso, há cerca de um ano, pediu para falar com o advogado Luís Gustavo Flores, que trabalha para ele desde o Caso Banestado — e atuou no acordo de delação fechado com a Lava Jato. Flores é sócio de Antônio Figueiredo Basto, um dos criminalistas mais renomados de Curitiba.

O ex-doleiro decidiu que era hora de partir para a briga contra a Justiça.

E determinou que os advogados voltassem a buscar informações sobre a escuta encontrada numa cela em que ele ficou preso preventivamente, no prédio da superintendência da PF em Curitiba, em 2014. Para Youssef, o caso pode anular decisões que até hoje lhe impõem restrições de liberdade.

Para seus advogados, pode implodir também o que ainda resta da Lava Jato.

Em março de 2014, preso pela Lava Jato, o doleiro encontrou uma escuta acoplada à lâmpada de sua cela
Em março de 2014, preso pela Lava Jato, o doleiro encontrou uma escuta acoplada à lâmpada de sua cela Imagem: Reprodução

A escuta clandestina

Em 28 de março de 2014, passavam-se só 11 dias da deflagração da primeira fase da Lava Jato e Youssef tinha sido um dos alvos da recém-criada operação. Estava preso para evitar que continuasse cometendo crimes e atrapalhasse o prosseguimento de investigações que, mais tarde, levariam parte da cúpula do empresariado e da política brasileira à cadeia.

Continua após a publicidade

Youssef tinha achado a lâmpada de sua cela estranha. Resolveu observá-la mais de perto. E encontrou acoplados a ela equipamentos eletrônicos que ele imediatamente suspeitou se tratarem de uma escuta. Quando Flores foi visitá-lo naquele dia, Youssef mostrou os equipamentos ao advogado através da janela de vidro que os separava. Flores tirou fotos para registrar tudo. Viu ali um indício de arbitrariedade.

O advogado levou a foto para um perito para atestar sua veracidade e confirmar que o objeto fotografado era uma escuta. Com base nisso, pediu uma investigação sobre o caso — que não deu em nada. Na época, a PF alegou que a escuta estava desativada, e que era da época em que o traficante Fernandinho Beira-Mar havia passado pela carceragem da PF em Curitiba.

O então juiz Moro e o procurador Dallagnol acataram tal conclusão. Youssef continuou preso. Foi processado e resolveu fazer um acordo de delação.

Ele, entretanto, nunca engoliu a explicação da PF.

Youssef escalou Antônio Figueiredo Basto, um dos criminalistas mais renomados de Curitiba, para tentar reabrir o caso da escuta
Youssef escalou Antônio Figueiredo Basto, um dos criminalistas mais renomados de Curitiba, para tentar reabrir o caso da escuta Imagem: Suellen Lima/Framephoto

'Árvore envenenada'

"Ele foi grampeado. Houve uma investigação ilegal", afirma Flores, em entrevista ao TAB. "Ele acabou coagido a assinar o acordo de delação. Sem espontaneidade e voluntariedade para colaborar, o acordo é nulo."

Continua após a publicidade

Flores ainda busca informações complementares para questionar formalmente o acordo de delação de Youssef com a Lava Jato. Ele passaria a ser um homem livre se o termo fosse mesmo anulado, afirma o advogado. E poderia enfim tirar a tornozeleira que ainda o incomoda.

É a tal teoria jurídica do fruto da árvore envenenada. Se uma prova é obtida ilegalmente e, portanto, é nula, todas as outras provas obtidas com base nela também são nulas.

Sabendo da existência da segunda sindicância da PF, os advogados de Youssef resolveram pedir ao juiz da 13ª Vara Criminal de Curitiba o acesso total e irrestrito a tudo que diz respeito à escuta na cela do seu cliente, inclusive áudios captados nela. Perceberam que o cenário político havia pendido para o lado dos investigados pela operação após a divulgação dos diálogos da Vaza Jato e das eleições de 2022. E que essas chances teriam aumentado muito depois que o juiz Eduardo Appio assumiu os processos da Lava Jato, prometendo rever eventuais arbitrariedades da operação.

Parecia que a sorte tinha se voltado para o ex-doleiro. Na tarde do dia 10 de março, porém, Youssef percebeu que não era bem assim.

O famigerado Posto da Torre, com lava a jato, no Setor Hoteleiro Sul de Brasília, que funcionou como casa de câmbio e deu nome à operação da PF
O famigerado Posto da Torre, com lava a jato, no Setor Hoteleiro Sul de Brasília, que funcionou como casa de câmbio e deu nome à operação da PF Imagem: Sergio Lima/Folhapress

Ascensão e queda de Appio

O porteiro do condomínio em que Youssef mora em Itapoá ligou para ele informando que policiais federais o esperavam em frente à guarita. Ele saiu da empresa na qual trabalha e se apresentou às autoridades. Foi preso por determinação de Appio. Estava inconformado, segundo policiais.

Continua após a publicidade

O juiz havia encontrado indícios de que o ex-doleiro não estaria cumprindo seu acordo de delação. Não teria devolvido recursos prometidos, estaria morando na praia e vivendo numa "situação muito privilegiada", "incompatível com todas suas condenações".

Os advogados de Youssef recorreram. Alegaram que o delator cumpria rigorosamente as obrigações impostas. O pedido de prisão foi revogado no TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região). Appio chegou a determinar outra prisão em seguida. Mas ela também foi revogada no TRF-4.

Youssef permaneceu solto - mas de tornozeleira. Em meio a toda essa discussão sobre prisão e soltura, seus advogados despacharam com Appio. Argumentaram que Youssef não se via como um privilegiado, mas sim um perseguido. Tanto é assim que já tinham pedido à vara de Appio mais documentos sobre a escuta em sua cela, vislumbrando a anulação do seu acordo de delação premiada.

Em 22 de maio, Appio chegou a pedir à PF a abertura de um novo inquérito sobre a escuta. Naquele dia, ele concedeu entrevista à GloboNews, dizendo ser hora "de passar a limpo" a Lava Jato. "Se ocorreram ilegalidades, elas vão ser processadas e julgadas no tempo e modo devido", disse.

Pouco mais tarde, contudo, Appio foi afastado da 13ª Vara por decisão do TRF-4, por suspeita de intimidar o filho de um desembargador do órgão. Ele está recorrendo do afastamento, mas segue impedido de despachar.

Procurado pelo TAB, Appio não quis dar entrevista. E o juiz designado para ocupar a vaga de Appio, Fábio Nunes de Martino, até agora não tomou decisões sobre Youssef.

Continua após a publicidade

Um dia após o outro

Enquanto aguarda os desdobramentos de seu caso, Youssef segue trabalhando no terminal de contêiners. Nem ele, nem a empresa em que trabalha desde 2020 gostam de expor a relação publicamente: a fama do ex-doleiro poderia atrapalhar os negócios e pôr em risco seu emprego.

Vive bem, é verdade, conforme apontou Appio. Oficialmente, está sozinho. É separado há anos da mãe de suas filhas, mas mantém contato com ela. Quando estava sendo preso pela última vez, telefonou para ela e a avisou da situação. Há anos também, não fala com Nelma Kodama, ré da Lava Jato da qual já foi namorado.

Youssef é hoje réu num processo aberto pela administradora do condomínio onde mora. A empresa alega que ele não arca com as taxas de manutenção das áreas comuns. Procurada pelo TAB, ela não quis dar detalhes sobre o caso. A defesa do ex-doleiro contesta tal cobrança. Informa que os pagamentos não foram feitos já que a administradora não concluiu o processo de regularização burocrática do imóvel.

Youssef informou ao juiz Appio, em sua audiência de custódia, que a tal casa está "totalmente encrencada com IPTU e com uma série de pendências". Por isso, ela não foi transferida à União no acordo de delação premiada fechado com a Lava Jato.

Na época da Lava Jato, a então esposa de Youssef e suas filhas chegaram a ter seus sigilos quebrados a pedido da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Petrobras. Suspeitas contra elas nunca prosperaram. Uma filha de Youssef é psicóloga. Outra trabalha na área financeira de uma construtora em São Paulo.

Continua após a publicidade

Depois da Lava Jato, Youssef resolveu fixar-se em Itapoá justamente por causa da sua casa e em busca de sossego. "Ele está mais velho. Mudou seu jeitão, né?", acrescentou a fonte, dando a entender que o ex-doleiro quer distância de encrencas e de holofotes.

Por causa da condenação, aos finais de semana ele precisa estar em casa. Oficialmente, tem duas residências. Na maior parte das vezes, ele fica em Itapoá. Mas às vezes passa finais de semana no seu apartamento em São Paulo — o mesmo em que esteve preso.

Trajetória tumultuada

Em 2004, quando fechou o acordo de delação premiada homologado por Moro no caso Banestado, Youssef tinha 36 anos. Pouco depois, voltou a delinquir, tanto é que foi investigado, preso e condenado novamente na Lava Jato. Mas bem antes disso já havia ganhado fama em Londrina por envolvimento com contrabando de produtos do Paraguai.

Chegou a ser preso cinco vezes nos anos 1980 e 1990 por esse tipo de atividade. Pagou multas e se livrou de períodos mais longos de detenção.

Já rico, aproximou-se de políticos. Emprestou jatinhos para campanhas eleitorais e para viagens a passeio de parlamentares. De espectros políticos bastante variados: um empréstimo está registrado nas contas da campanha de 1998 do hoje ex-senador Alvaro Dias (Podemos-PR); outro, foi publicamente admitido pelo então vice-presidente da Câmara, ex-deputado André Vargas (então filiado ao PT), que acabou tendo seu mandato cassado e também foi condenado na Lava Jato.

Continua após a publicidade

Procurada pelo TAB para comentar a escuta na cela de Youssef, a PF não quis se manifestar. Em julho, a corporação manifestou ser contra a recomendação de Appio para a reabertura de um inquérito sobre a escuta.

"Não foi possível identificar nenhuma nova circunstância que fosse apta a reabrir os procedimentos criminais findos ou até mesmo legitimar a instauração de novo inquérito policial", justificou o delegado Álex Levi Bersan de Rezende, coordenador-geral de Assuntos Internos da corporação.

Questionada três vezes em dez dias pela reportagem, a Justiça Federal de Curitiba não prestou informações sobre o andamento dos processos de Youssef. A reportagem também pediu, sem sucesso, entrevista a ele.

Deixe seu comentário

Só para assinantes