'Anjo da guarda': João Bosco, o projecionista do histórico Cinema São Luiz
Para chegar até João Bosco Ferreira da Silva, 59, é preciso subir 82 degraus e seis lances de escada. Não há elevador funcionando nesse bloco do Edifício Duarte Coelho, uma construção dos anos 1950 à margem do Rio Capibaribe. Conversar com ele — todos dizem — não é fácil. João prefere, em geral, o anonimato de quem passou a vida no escurinho de uma das salas de projeção mais antigas do país, o Cinema São Luiz, no centro do Recife.
Em "Retratos Fantasmas", novo filme do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho, o projecionista paraibano, que nasceu em Piancó e trabalha há 41 anos no São Luiz, faz uma "ponta" exercendo seu ofício. Mas tampouco conta sua história no documentário cujo mote é a memória da cidade, narrada a partir dos seus cinemas de rua. "Eu soube que apareço no filme, mas ainda não assisti. Acho que só vou ver depois, quando passar aqui no São Luiz", comenta. O longa estreou este ano nos festivais de Cannes, na França, e de Gramado (RS), e acaba de entrar em cartaz nas salas brasileiras.
Na cabine do cinema onde ele trabalha desde os 18 anos de idade, situada no terceiro andar do prédio, há dois projetores: um de película 35 mm — o mesmo há 70 anos, só mudou "dentro da lanterna", que era de carvão — e um digital (Barco 23B 4K, com capacidade de projetar filmes em 3D).
Nessas mais de quatro décadas, João fez o trajeto até o último pavimento do cinema incontáveis vezes por dia. Agora que acompanha as reformas do equipamento gerido pela Secretaria de Cultura e pela Fundarpe (Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco), a rotina não mudou. Mesmo com o cinema fechado, não falta serviço para ele.
"O São Luiz é como se fosse um filho pra João", diz o jornalista e programador Luiz Joaquim, que trabalhou um ano no espaço como gestor de programação, até o atual governo assumir. "Ele é uma espécie de anjo da guarda do cinema." Antes, o decano da função era Geraldo Pinho, falecido em novembro de 2021.
"João Bosco é aquele cara mal-humorado, mas só da boca pra fora", brinca Joaquim, que coordena atualmente o Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, outra sala pública do Recife.
Patrimônio vivo
Apesar da fama de fechadão, João Bosco é um homem de amizades. Foi isso que o levou até o São Luiz e é isso que também o mantém de pé, desde 1982, no sobe-e-desce do prédio septuagenário. Mesmo aposentado, o projecionista faz questão de lá estar, pegando todos os dias um metrô de sua casa, na Região Metropolitana do Recife, até o centro, o que dá cerca de 15 km.
"Como vim parar aqui? Ah, foi uma historiazinha até interessante?", concorda ele em contar. "Eu ia fazer 18 anos, ia pro quartel, tinha uma namorada e ela ficou gestante de mim. Eu desempregado. Aí fui morar numa casa lá em Tejipió [bairro do Recife]. Junto dessa casa, um vizinho que tinha uns conhecimentos me disse: 'Vou arrumar um emprego pra você no Cinema São Luiz'. Aí eu vim, fiz um teste e passei."
Mas não foi pela cabine de projeção que aquele jovem começou sua história no São Luiz, mas como técnico de refrigeração. Quando abriu suas portas em 6 de setembro de 1952, o monumental cinema, com 1.340 poltronas e dois vitrais ladeando a tela sob pesadas cortinas de veludo vermelho, já possuía um potente ar-condicionado, que demandava constante manutenção.
A sala, aliás, que segue suas características originais, mantinha até pouco tempo atrás o mesmo equipamento de climatização. Sua troca é um dos itens da reforma feita pelo governo de Pernambuco, que fechou a sala em maio de 2022 — até meados de 2024, se tudo correr como previsto.
"João Bosco é um nome muito associado ao São Luiz, porque ele trabalhou anos para [o grupo] Severiano Ribeiro e depois que o cinema deixou de ser comercial e foi adquirido pelo poder público (2007), voltou a trabalhar lá", conta ao TAB o cineasta Kléber Mendonça Filho. "João conhece todos os segredos do cinema, os segredos técnicos, a parte de eletricidade, de equipamento. Ele vem de um período pré-digital, então trabalhou muitos anos com projeção 35 mm."
Campanha de Kléber
"Inicialmente João estava na lista de funcionários que perderiam o emprego, em janeiro deste ano, por causa de uma decisão do governo de Pernambuco, o que me levou a escrever uma carta aberta", acrescenta o diretor de longas como "Bacurau" (em parceria com Juliano Dornelles, de 2019), "Aquarius" (2016) e "O som ao redor" (2012).
"O post dele foi num domingo", lembra Luiz Joaquim, em referência ao movimento iniciado pelo cineasta. "No dia seguinte, estavam reunidos no São Luiz Silvério Pessoa [ex-secretário de cultura do Estado] e mais dois funcionários da Fundarpe. Eles chamaram João para a reunião e ele foi readmitido, como outras pessoas, só que como terceirizado. A minha impressão é a de que o governo estava adormecido sobre o valor monumental do São Luiz", conclui o programador.
O documentário "Retratos Fantasmas" registra a importância dos cinemas de rua para a memória de uma cidade que, como outras, assistiu a um movimento de fechamento das salas de bairro entre as décadas de 1980 e 1990. Mais tarde, a proliferação dos cinemas de shopping e a popularização do formato digital viriam também a aposentar a maior parte dos projetores 35 mm - o que faz João e o templo onde trabalha serem patrimônios culturais em vias de extinção.
"No Recife, frequentei os cinemas de rua de seu [Luiz Severiano] Ribeiro, como o Albatroz, Eldorado, Moderno, Veneza. Era onde a gente ficava mais à vontade", defende.
Filas de volta
Antes mesmo da reforma, em 2006, o São Luiz esteve prestes a seguir o destino dos seus "pares" e fechou as portas. O então mecânico de refrigeração foi parar no Shopping Boa Vista, onde acabou indo trabalhar na cabine e aprendeu a montar e projetar filmes em película. Em 2007, a Fundarpe chamou João Bosco de volta. No ano seguinte, uma articulação da classe audiovisual pernambucana junto ao poder público conseguiu o tombamento do São Luiz.
O cinema passou a sediar em 2010 o festival Janela Internacional de Cinema do Recife, organizado por Kleber e a produtora Emilie Lesclaux. O festival alavancou a importância da sala, com uma programação de estreias e sessões de filmes clássicos que fizeram a cidade reviver filas ao redor do quarteirão do Edifício Duarte Coelho.
Ao longo de sua trajetória, o projecionista testemunhou essas e outras cenas memoráveis, como a apoteótica sessão de "Titanic", em 1998, quando o público amontoado na entrada quase fez quebrar as portas de vidro do cinema e teve que ser contido com andaimes colocados emergencialmente como barricadas.
"Assisti vários filmes aqui. Um dos que mais me emocionou [e que ele viu da poltrona] foi um em que Madonna aparece vestida de vermelho. Eu nunca tinha visto aquela beleza, ela está muito linda nesse filme", suspira João, referindo-se à sessão de "Quem é essa garota?", de 1987. "Outro que me marcou foi 'Por um punhado de dólares' [1964], com Clint Eastwood. Eu montei os rolos e assisti aqui da cabine."
'Pessoa falada'
Embora jamais imaginasse que um dia se tornaria um símbolo do cinema pernambucano, João Bosco lembra com nitidez a ocasião em que, ainda criança, morando em João Pessoa, foi ver um filme numa modesta sala de bairro. "O nome era 'A fera mais sanguinária do mundo'. Inventei de assistir, mas era muito violento. E depois pra voltar com medo? Já era quase 11h da noite, desci as escadas e tome pé", ri João.
Hoje, depois que se tornou o responsável por materializar risos e medos na sala escura, ele confessa não ter o hábito de ir ao cinema em seu tempo de lazer. Prefere ver filmes em casa. Ainda assim, defende com orgulho a tradição de seu ofício. "O verdadeiro projecionista é o que trabalha com película e sabe montar um filme. A película supera o digital em qualidade, é uma imagem pura."
Em 2023, quando já existem salas de exibição totalmente automatizadas, sem projecionistas, João Bosco resume com singeleza o trabalho a que pretende se dedicar até quando for possível. "Um bom projecionista sabe exercer a função dele com sabedoria. Porque é uma pessoa que fica falada pelo público."
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