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'Curam doença na porrada': clínica de SP é investigada por tortura e mortes

Onezio Ribeiro Pereira Júnior, 38, morreu em 25 de setembro de 2023, horas após dar entrada em uma clínica de recuperação de dependentes químicos da rede Kairós, em Embu-Guaçu, região metropolitana de São Paulo. O corpo tinha marcas de espancamento e estrangulamento.

A morte de Onezio não foi um caso isolado. A Kairós já era investigada por homicídio desde março, quando um interno de 27 anos morreu com marcas no pescoço.

Outras clínicas da rede são alvos de denúncias e estão sendo investigadas pela Polícia Civil por suspeitas de tortura, lesão corporal, desaparecimento e pelo menos mais duas mortes.

Ueder Santos de Melo, proprietário da Kairós, foi preso no mês passado, na investigação sobre as mortes. O UOL entrou em contato com seu advogado Jean Braz: ele confirmou que representa Ueder nas investigações, disse que enviaria uma resposta, mas não o fez até a publicação dessa reportagem.

O UOL teve acesso às investigações e entrevistou ex-internos e familiares. Os relatos constroem um cenário de terror nas unidades da Kairós, com internações involuntárias, espancamentos e dopagem de internos.

"Fui espancado, torturado duas vezes. Era ateu, mas comecei a rezar para um dia sair dali", disse ao UOL um ex-paciente de 35 anos, que pediu anonimato.

Vídeo obtido pela reportagem (assista abaixo) mostra o momento em que um ex-interno é retirado de uma ambulância e agredido com chutes e um pedaço de madeira por outras cinco pessoas.

O contrato de prestação de serviços da Kairós diz que, "em caso de óbito (...) do acolhido, o contrato deixa de ter validade em todos os aspectos, isentando ambas as partes de quaisquer responsabilidades".

A Kairós se apresenta como uma comunidade terapêutica. As comunidades terapêuticas são entidades privadas que se espalharam pelo país nos últimos 20 anos, destinadas ao acolhimento de pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas.

A rede opera por meio de seis CNPJs diferentes e tem unidades em Juquitiba, Embu-Guaçu, Itapecerica da Serra e São Lourenço da Serra, todas em São Paulo.

Ueder Santos de Melo fundou a primeira unidade da Kairós em 2017. Três anos antes havia sido condenado por assalto a mão armada no Paraná e cumpria pena em regime aberto. Em outubro, foi preso novamente, agora na investigação sobre a morte de Onezio.

Outros oito funcionários da clínica também estão presos temporariamente.

Depoimentos de ex-internos, colhidos pelo UOL, colocam Ueder no centro das violências cometidas nas clínicas. Todas as fontes ouvidas pela reportagem descrevem visitas do proprietário às várias unidades - por vezes armado - e participação ordenando agressões e punições de internos.

Ele também participaria das chamadas "remoções", operações para resgatar pessoas em suas casas para internação involuntária. A própria clínica fornece um laudo médico justificando a internação.

Pela legislação brasileira, a autorização de um familiar imediato acompanhada de laudo médico é suficiente para internação involuntária de dependentes químicos. As clínicas, porém, são obrigadas a notificar o Ministério Público, justificando a internação, em até 72h.

O UOL questiona desde 18 de outubro o órgão sobre notificações de internações recebidas da Kairós, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem. A reportagem também tentou entrar em contato nos telefones das clínicas Kairós por diversas vezes, mas não foi atendida.

Surras e 'rotina de prisão'

Em 14 de maio de 2022, um sábado, o fotógrafo Paulino D'Oliveira, 51, ouviu o barulho da porta da frente de casa sendo destrancada. Era sua mãe, acompanhada de dois homens desconhecidos e de um chaveiro.

Paulino foi imobilizado à força, colocado em um veículo que parecia uma ambulância e levado aos gritos para a unidade da Kairós em Juquitiba.

Estouraram a minha porta, me amarraram. Cheguei lá sangrando, com os pulsos sangrando. A recepção foi com três 'gogós', e tive que tomar o que eles chamam de 'danoninho'

"Gogó" e "danoninho" são termos que se repetem em todos os relatos ouvidos pela reportagem. O primeiro refere-se a uma técnica de enforcamento usada contra os internos; o segundo, a um coquetel de sedativos em forma de líquido cor de rosa. "Dormi três dias e fiz as necessidades na cama, porque não conseguia acordar."

Na Kairós, Paulino encontrou hierarquia similar à de uma prisão, com supervisão e rotina a cargo de outros internos com mais tempo de clínica, remunerados com pequenos privilégios como acesso a cigarros, isenção de tarefas de limpeza e horários flexíveis. Eram chamados GAPs - abreviação para grupo de apoio ao paciente.

As agressões, segundo o fotógrafo, eram praticamente semanais.

"Se falasse um 'a', era 'cala a boca, que não mandei falar'. O diretor da clínica um dia me bateu porque pedi a lista do que a minha família tinha mandado. Me deu um 'gogó' e joelhadas no estômago. Fingi que desmaiei para escapar", conta.

Localização das clínicas da rede Kairós
Localização das clínicas da rede Kairós Imagem: Arte/UOL

"Se você afronta alguém da equipe, leva uma surra. Depois dizem: 'a gente trata vocês desse jeito porque aqui tem muito traficante e ex-presidiário. Se não tratar assim, perde o controle."

A unidade Kairós Prime, onde Onézio foi morto, tinha mais de 90 internos. Na matriz de Juquitiba, onde Paulino foi internado, o número era similar: ele contou 98 pessoas, boa parte dormindo no chão.

Misturavam-se na Kairós dependentes químicos, idosos abandonados pelas famílias e pacientes psiquiátricos.

As mensalidades custavam de R$ 800 a R$ 1.500, com valores adicionais para o recolhimento de pacientes em domicílio.

Os contratos eram de pelo menos seis meses e previam pagamento do valor integral como multa em caso de saída antes da hora.

Paulino passou seis meses na Kairós, e saiu em novembro de 2022. No período, afirma que foi agredido fisicamente diversas vezes. Por ter HIV, precisava utilizar com frequência um colírio. "Eles não me davam sempre que eu pedia, e acabei não usando. Por causa disso, estou com problemas sérios na visão."

Comunicação monitorada e cura 'na porrada'

Silvia* aceitou internar o filho Marcelo* em julho de 2022 - ele estava consumindo álcool e cocaína.

No estado dela, que será omitido na reportagem para preservar sua identidade, não encontrou alternativas. Pesquisou no Google por uma clínica que fizesse o serviço de busca em domicílio e encontrou a Kairós entre os primeiros resultados.

O "resgate", em uma operação interestadual numa madrugada de julho, custou R$ 2.700 - isso além da mensalidade. Marcelo foi levado para a unidade de Juquitiba, a mesma que alojou Paulino.

Pela política da clínica, internos não podem manter contato com a família no primeiro mês.

A primeira visita aconteceu na segunda semana de agosto, cerca de 35 dias após a internação. Antes de conversar com Marcelo, Silvia foi abordada por Ueder, que avisou: "Seu filho vai tentar mentir, vai te manipular. É tudo mentira, ele quer sair daqui para usar droga".

Quando vi meu filho já vi medo nos olhos, tinha algo estranho. Quando todo mundo saiu de perto, ele começou a contar: 'Espancam as pessoas aqui dentro'

"Tomei um susto", lembra Marcelo. "Desde o primeiro momento que pisei lá só vi agressão, xingamento, pessoas com problemas psiquiátricos, nada a ver com drogas. O diretor tinha o apelido de curandeiro; curava todas as doenças com porrada."

Um episódio específico marcou Marcelo. "Um rapaz fugiu. Pegaram, nunca vi alguém apanhar tanto. Do Ueder, o dono da clínica, do Rafael e dos próprios internos", conta. "O Ueder chegava muitas vezes portando uma pistola. Nesse dia, mandou abrir o portão, pegou a pistola e falou que podia dar cinco metros, pra ele tentar fugir. Ele desistiu e apanhou de caibro, de taco de sinuca."

Quando foi preso no último dia 19, Ueder portava várias armas de fogo não registradas.

A comunicação entre internos e famílias era monitorada pela clínica. Como último recurso, Marcelo tentou combinar com a mãe um sinal: no dia em que não aparecesse nas fotos semanais enviadas pelo WhatsApp, era porque ela precisava tirá-lo de lá imediatamente.

Um dia, Marcelo não apareceu. Silvia passou a pressionar a Kairós, que respondia que seu filho estava descansando. Ela exigiu uma foto. Quando a clínica finalmente enviou, percebeu nos olhos do filho que ele estava dopado.Uma semana depois, pagou uma multa contratual de R$ 2.000 e conseguiu retirar Marcelo.

"Agradeço muito a Deus que não mataram o meu filho, acho que foi porque eu fiquei em cima."

Ao deixar a Kairós, Silvia ouviu de um funcionário: "Seu filho vai morrer drogado".

Cerca de 11 meses depois, Marcelo diz estar livre das drogas e com emprego formal. "Foi a pior época da minha vida. Eu não posso, nunca mais, voltar para um lugar desses."

Internação voluntária virou involuntária

Iranildo* sofreu uma tentativa de sequestro em São Paulo em outubro de 2022. Traumatizado, passou a beber e migrou para drogas mais pesadas. Após alguns meses, internou-se voluntariamente para tratar a dependência em uma unidade da Kairós.

"Entreguei a vida nas mãos deles, cheguei como voluntário, me tornei involuntário. Tinha muitos pacientes psiquiátricos, idosos esquecidos pelas famílias, que tinham cartão de crédito que ficava em posse da clínica."

Um dia, Iranildo foi acusado de descumprir regras da clínica.

Fui espancado por seis caras na frente do refeitório. Nunca apanhei tanto na vida. Fiquei seis dias sem socorro, dois sem comida.

Segundo Iranildo, um dos agressores era o próprio diretor da clínica, Diego Leonardo Rosa Novak. Ele é alvo de um inquérito policial por torturas cometidas na Kairós, instaurado em 28 de setembro na delegacia da Polícia Civil de Juquitiba, e aparece no vídeo do espancamento de um interno que acompanha essa reportagem.

O UOL entrou em contato com ele, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem.

Onezio Pereira Junior, morto em setembro, na clínica Kairós. Corpo tinha sinais de estrangulamento
Onezio Pereira Junior, morto em setembro, na clínica Kairós. Corpo tinha sinais de estrangulamento Imagem: Reprodução/TV Globo

Iranildo foi transferido para outra unidade, a Kairós Prime. Ali, diz ter sido submetido a uma segunda sessão de tortura. "Fui espancado outra vez, e colocado em um quarto só com pacientes esquizofrênicos. Diziam que iam me matar e colocar a culpa nos esquizofrênicos."

O ex-paciente afirma que queria comunicar os abusos à sua família, mas era vigiado. "Tem olheiros, são chamados de 'língua negra'." Quando finalmente conseguiu sair, precisou arcar com a multa por interromper o contrato antes de seis meses de internação.

"Eu acho que na verdade eu morri lá dentro. Ressuscitei quando Deus me tirou."

Uma indústria milionária e não regulada

Sócio principal da Kairós, Ueder Santos de Melo tem como sócios minoritários nas clínicas o ex-policial civil Alexandre Granados Dourado e Pamela Matos.

Ueder e Alexandre têm laços com o poder público em Juquitiba. Ambos integraram em 2017 e 2021 um conselho municipal que define a política em relação a drogas - e a destinação de recursos para isso - ligado à prefeitura local.

A reportagem questionou a Prefeitura de Juquitiba sobre o vínculo e sobre a situação legal da Kairós, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem. O secretário de Saúde do município, Iovan Freire, admitiu, no entanto, que a região "tem sofrido com a proliferação de comunidades terapêuticas que cometem irregularidades".

Estima-se que 80 mil pessoas estejam internadas nas chamadas comunidades terapêuticas. Os dados são de levantamento de 2022 feito pelo Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e pela ONG Conectas Direitos Humanos. Cerca de 10 mil dessas pessoas são alocadas em vagas conveniadas com o poder público. Nesses casos, é o Estado quem paga pela internação.

Segundo o psicólogo Bruno Logan, especialista em políticas de redução de danos e ex-membro do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas do Estado de São Paulo, as comunidades terapêuticas são frequentemente palco de violência e tratamento sem fundamentação cientifica para os dependente químicos. As mortes na Kairós, diz ele, não seriam as primeiras.

As comunidades terapêuticas começaram a ganhar poder político, conseguiram grandes financiamentos públicos e agora elas viraram uma hidra. É a nossa política de cuidado aos usuários de drogas

Atualmente, o Ministério da Cidadania disponibiliza um mapa com as comunidades terapêuticas conveniadas com o Governo Federal. Nele, há 481 instituições espalhadas por todas as regiões do Brasil. Há ainda convênios estaduais e municipais espalhados pelo país.

"Conselhos estaduais e municipais de políticas sobre drogas no país inteiro têm donos de comunidades terapêuticas", afirma Logan. "A maioria dessas instituições não aplica metodologia científica, e sim uma terapia de conversão religiosa, além de todas as violações de direitos humanos", diz o psicólogo, que orienta o SUS como caminho alternativo.

* Os nomes de alguns dos entrevistados foram trocados a pedidos para proteger suas identidades

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