Em SP, remoções psiquiátricas são feitas sem laudo médico nem fiscalização
Serviços particulares fazem remoção de pessoas para clínicas psiquiátricas sem exigir comprovação médica. A prática descumpre a lei 13.840, sancionada pelo governo Bolsonaro em 2019.
A reportagem de TAB entrou em contato com vários serviços de remoções e internações psiquiátricas. Encontrou seus números de telefone numa rápida busca na internet. Simulou situações fictícias ao se passar por clientes interessados em internar conhecidos e parentes. Profissionais com conhecimento mínimo em saúde e legislação deveriam questionar as histórias, criadas para simular uma situação de emergência. Não foi o que aconteceu em quase nenhum dos casos.
Vício em ópio
A empresa Reage Internações respondeu prontamente ao pedido da reportagem: buscar e internar um "parente próximo" de 50 anos de idade que enfrenta o vício em cocaína e ópio.
O atendente ofereceu seus serviços em menos de um minuto. Dizia que trabalhava em parceria com uma clínica em Mairiporã, na Grande São Paulo, e podia enviar fotos e valores para internação naquele mesmo instante.
A reportagem explicou, então, que precisava conversar com familiares antes de tomar a decisão. Perguntou ainda se não era necessário apresentar alguma documentação para o procedimento.
A pergunta confundiu o outro lado, que quis saber que documento seria esse. Uma vez esclarecida a questão, o atendente explicou que, para buscar alguém, bastava a autorização de um "responsável", sem laudo médico. Preço para internação por seis meses: R$ 10.500, divididos em sete parcelas. A remoção é cobrada à parte, de acordo com a distância.
Imobiliza, mas não agride
Derivada do ópio e muito consumida na Europa e nos EUA, a heroína é uma alienígena no mundo das drogas brasileiras e requer tratamento específico e complexo. A menção à droga não despertou particular interesse na Zelando por Vidas, que oferece remoção e internação involuntárias para diversas clínicas "em todo o território nacional".
Pelo WhatsApp, o interlocutor se apresentou como "terapeuta de plantão" e compartilhou valores, fotografias e serviços oferecidos nas comunidades. A reportagem dizia precisar internar uma prima de 19 anos viciada em heroína.
O plantonista esclareceu que apenas RG e CPF da paciente e do responsável por ela seriam necessários para realizar a remoção e a internação. Novamente, nada sobre laudo médico.
"A remoção é feita por socorristas especializados. Eles vão abordar a paciente, explicar que a família optou por interná-la porque ela está colocando em risco a própria vida. Caso reaja, a equipe entra em ação com técnicas de imobilização. Sem bater ou agredir", tranquilizou o terapeuta.
Desrespeito à legislação
A Lei 13.840, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em junho de 2019, facilita a internação involuntária, mas exige prévia decisão formal de um médico responsável. "Será indicada depois da avaliação sobre o tipo de droga utilizada, o padrão de uso e na hipótese comprovada da impossibilidade de utilização de outras alternativas terapêuticas previstas na rede de atenção à saúde", diz o texto, que determina ainda que "internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes".
Uma prática comum entre as comunidades terapêuticas é emitir laudo médico na chegada do paciente — geralmente, assinado por um médico contratado pela própria clínica. Foi o que ofereceram alguns serviços de remoção contatados pelo TAB. Uma prática, portanto, ilegal.
Internando um ícone
À reportagem, a empresa Reset Prime ofereceu soluções para um "sobrinho menor de idade que anda fumando maconha todo dia" e pediu o preenchimento de um formulário. A reportagem enviou-o de volta. Nome do paciente: "Austregésilo Carrano Bueno".
Ícone da luta antimanicomial, Carrano Bueno é autor de um livro autobiográfico sobre sua internação forçada nos anos 1970. A obra inspirou o filme "Bicho de Sete Cabeças", protagonizado por Rodrigo Santoro. A incrível coincidência passou despercebida pela Reset Prime, que em seguida enviou um folheto digital com fotos sobre internação de crianças e adolescentes.
Salvar, não sequestrar
O psicólogo Lucio Costa já liderou a Coordenação Geral de Direitos Humanos e Saúde Mental da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e atualmente é perito no MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura). Para ele, serviços de "resgate" nos moldes relatados, à luz da legislação, simplesmente não existem.
"Na prática, é sequestro. O artigo 148 do Código Penal estabelece os critérios para tipificar a privação de liberdade em instituição de saúde", diz Lúcio. "A finalidade da internação involuntária é salvar vidas. Se você sofre um acidente de trânsito e é resgatado pelo Samu, isso sim é internação involuntária. Não precisam da sua anuência para te levarem ao hospital", analisa o psicólogo.
Se o serviço for solicitado a alguém em surto ou violento, Lucio argumenta que é preciso usar um recurso da saúde pública. "O Samu tem a prerrogativa nesses casos", diz Lucio. "Mas o acesso à saúde é um direito, não um dever. Se, por exemplo, eu tenho câncer e não quero me tratar, não há no ordenamento jurídico brasileiro algo que me obrigue a fazê-lo."
Desde 2007 combatendo a violação de direitos humanos, a defensora pública Daniela Skromov também reforça a necessidade de apresentar o laudo médico antes de se fechar qualquer tratativa. "Muitas vezes, esse 'resgate' não é feito exatamente como resgate. Não tem equipe médica e usa um veículo descaracterizado", diz a defensora.
TAB voltou a procurar as clínicas e serviços de remoção citados anteriormente — desta vez, como reportagem, em busca de uma posição oficial. Reage não atendeu às ligações e não deu retorno pelo WhatsApp.
Zelando por Vidas não quis responder pelo telefone. Ficou de dar um retorno pelo WhatsApp e também não entrou mais em contato. Por aplicativo, a atendente da Reset Prime não soube responder perguntas básicas, como quais são os documentos necessários para uma remoção involuntária. Ficou de passar o contato de alguém que saberia fazê-lo, mas não o fez.
Cárcere privado e morte
Dois casos recentes chamaram atenção para o problema das remoções e internações. Em agosto, o Ministério Público de São Paulo interditou uma clínica para dependentes químicos de Pindamonhangaba (SP) após receber denúncias de internação forçada e tortura. No local, os agentes encontraram 46 pessoas em quartos trancados pelo lado de fora — entre elas, o ator Sérgio Hondjakoff, conhecido por interpretar Cabeção em "Malhação", da TV Globo.
Hondjakoff primeiro negou que estivesse ali, mas depois confirmou, em áudio enviado ao UOL.
Em novembro, o músico Roberto Padrenosso Filho, 47, de Jaú (SP), morreu a caminho de uma clínica em Valinhos (SP) depois que sua irmã negociou sua internação. As quatro pessoas que faziam o transporte falam em acidente, mas, após a investigação da Polícia Civil, o Ministério Público os denunciou por homicídio qualificado, sequestro e cárcere privado. Estão em prisão preventiva.
TAB entrou em contato com Patrícia Padrenosso, irmã de Roberto. Ela preferiu encaminhar o contato de sua advogada, Daniela Rodrigueiro. À reportagem, Daniela afirma que as conversas entre Patrícia e a clínica mostram que ela foi ludibriada. Fotografias de bancos de imagens teriam sido usadas em uma espécie de "catálogo fake" de clínicas para apresentá-las em condições muito melhores que as da realidade.
Em seu primeiro depoimento, Patrícia admitiu ser a responsável pela contratação. Ela argumentou que o irmão tinha problemas com drogas desde a juventude e, por sugestão de uma terapeuta, procurou a clínica CT Live.
Após negociação por WhatsApp e telefone, ficou acertado que a clínica "buscaria" e internaria Roberto por R$ 10 mil. Embora relutante, o músico aceitou ser levado.
Um homem que se apresenta como "representante legal da clínica" afirmou, em seu depoimento, que "nenhum documento foi celebrado visando a remoção da pessoa pretendida".
Em sua denúncia, o MP afirma que os responsáveis pela remoção retiraram Roberto à força "em situação típica de sequestro qualificado". A maneira com que a remoção foi feita surpreendeu Patrícia e teria levado o músico a reagir. A equipe, ainda segundo relato da advogada, chegou num carro descaracterizado às 6 da manhã (fora do horário combinado). "Foram entrando na casa, acordaram Roberto e o levaram. Foi tudo muito rápido, em poucos minutos já tinham ido embora."
Segundo a linha de investigação do Ministério Público, "os denunciados passaram a agredi-lo [Roberto] covardemente, inclusive na presença de populares. Desferiram-lhe violentos socos e chutes e ainda a imobilizaram com golpes do tipo 'gravata', provocando-lhe inúmeras lesões corporais, as quais foram a causa de sua morte".
TAB tentou entrar em contato com advogados dos acusados pelo sequestro e morte de Roberto Padrenosso, mas não teve retorno até a publicação desta reportagem.
Ninguém sabe nada
Segundo o Ministério da Cidadania, existem "mais de duas mil" comunidades terapêuticas em funcionamento no Brasil; 483 são credenciadas pelo governo federal. A pasta não forneceu, porém, nenhum dado sobre o número de internações involuntárias realizadas no país nos últimos anos.
O Ministério da Saúde, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) e a Secretaria da Saúde de São Paulo tampouco têm esses números.
A última vistoria realizada em comunidades terapêuticas ocorreu em 2017 e originou o Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, publicado no ano seguinte. Conduzida pelo Conselho Federal de Psicologia, pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, visitou 28 instituições de onze estados e do Distrito Federal.
A constatação: atuam, na realidade, como pequenos manicômios, mantendo pacientes presos e violando a Lei 10.216 de 2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica.
Embora importante, a vistoria não tem caráter de fiscalização.
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