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Após dois séculos, rapé volta aos narizes urbanos e está até na Cracolândia

Rodrigo Bertolotto

Do TAB, em São Paulo

15/09/2021 17h47Atualizada em 10/12/2021 14h39

"A gente gosta mesmo de colocar umas coisas no nariz e ficar doidão, né? Mas vamos alterar a consciência sem precisar se destruir." Adriano de Camargo, 43, abre assim uma roda de rapé com 20 pessoas que tentam sair do lugar para onde o destino (ou o desatino) as levou: a Cracolândia, no centro de São Paulo.

Depois de passar pela prisão, a rua e o vício, Adriano achou sua salvação na chamada "medicina da floresta", por indicação de um amigo. Agora, guia outros com histórias parecidas com a sua. Na estratégia de redução de danos para dependentes químicos, troca-se o pó da cocaína pelo do rapé. A calçada dá lugar ao colchonete. Some o traficante e aparece um xamã.

No século 19, cheirar rapé era um hábito refinado entre damas e cavalheiros, que guardavam essa mistura de tabaco, cinzas, cascas e folhas em galantes estojos decorados com marfim e pedras incrustadas.

Logo as cafungadas entraram em desuso. Só continuaram em seu local originário (aldeias do Acre e Amazonas) e no campo, onde idosos preservam o costume para descongestionar as vias respiratórias e tratar sinusites e enxaquecas.

Nos últimos tempos, com a expansão de crenças xamânicas e terapias alternativas, esse pó voltou aos sistemas olfativos das grandes metrópoles, começando pelos hipsters, artistas e ativistas da causa indígena.

"De dez anos pra cá, mais que duplicaram as vendas. O público é formado por quem está buscando um caminho espiritual, seja por moda ou necessidade. E na pandemia aumentou também, porque as pessoas ficaram em casa, tinham mais tempo e usavam para se acalmar e se desligar do perigo que rondava", conta Sarita Moura, proprietária da loja Mukani Shop, que comercializa rapé em São Paulo.

Sai a mata, entra a moto

Trabalhando com dependentes há duas décadas, Adriano fundou o Instituto Nhanderu em 2018 junto com sua mulher, Tuca Fontes. A sede fica em um prediozinho no meio da "boca das motos", tradicional quadrilátero que reúne dezenas de lojas e oficinas de motocicletas, vizinho à Cracolândia.

Os atendidos, a maioria vinda de centros de acolhimento para pessoas em situação de rua, atravessam as fileiras motorizadas no meio-fio, chamam pelo interfone e ascendem pela escada até chegar ao terceiro andar e a outras atmosferas. Pela janela ainda se escuta um carro passando com um funk pornográfico com volume no talo. Mas, dentro em breve, a música de rezo vai tomar aquele espaço.

"Se chegar sob efeito de droga ou álcool, não participa de nosso ritual", avisa Adriano. Antes de entrar no salão principal, eles são incensados para uma "limpeza espiritual". Uns andam cabisbaixos, entre concentrados e envergonhados. Outros, mais expansivos, cumprimentam e brincam com Adriano, que se apresenta como educador social e psicanalista especializado em terapias psicodélicas e dependência química. "Um xamã nunca fala o que é: os outros o chamam assim", diz Tuca.

rapé - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
O sopro do rapé transmite energia e ajuda na cura espiritual, segundo seguidores do xamanismo
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Cada um segura uma garrafa de água, um maço de papel toalha e um pote com saco plástico. As reações corporais depois da inalação do rapé explicam tantos apetrechos: um coral de espirros, tosses e vômitos se mistura aos pássaros, grilos e riachos vindos da caixa de som. "São os expurgos. A gente precisa se livrar deles, assim como dos medos, das culpas e das sombras", explica Adriano.

A iluminação fica vermelha, e a música ganha um ritmo forte, repetitivo e hipnótico. O ambiente fica carregado. Alguns deitam em posição fetal e se contorcem. Quem perde o efeito recebe o sopro de uma segunda dose. "Pai Rapé está fazendo a cura", grita o xamã. E emenda: "Viva a força do Pai Rapé". Os presentes repetem a frase, reverenciando o espírito da floresta.

Então, os assistentes passam borrifando água de cheiro para elevar os ânimos. As luzes roxas são acesas, e a trilha fica mais lenta, alegre e melódica. É o que eles chamam de hora de "transmutação da energia". Uns choram, outros ficam em posição contemplativa. "O que eles trazem da vida é muita tragédia. Isso aflora no ritual."

O perigo nasal

Nas paredes e nos altares há imagens de Jesus, Buda, Ganesha, Iemanjá, Pachamama, Mestre Irineu do Santo Daime e várias divindades. "Para você se elevar, qualquer um deles serve. Ou nenhum. A conexão que faz sentido é aquela com você mesmo", diz para um seguidor.

O projeto na Cracolândia começou com quatro garotos, em abril de 2018, e já ajudou mais de 100 dependentes, mas teve de parar em março de 2020 com a chegada ao Brasil do vírus que entrava justamente pelo nariz.

Nesse período, eles distribuíram kuripis, canudos em "v" para a autoaplicação, e mensalmente davam um frasco de rapé por pessoa. "Não é a mesma coisa. Tinha gente que usava a cota mensal em três dias, depois voltava para o crack e entrava em depressão. Mesmo com o risco, tivemos que voltar. O dano maior para eles é não ter essa assistência", afirma Adriano. O rapé, por conter nicotina, pode causar dependência e, em excesso, provocar os mesmos males dos outros produtos tabagistas.

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Adriano de Camargo usa o kuripi, instrumento indígena em "v", para soprar rapé nas narinas
Imagem: Keiny Andrade/UOL

No final de 2020, retomaram as sessões com rapé, ayahuasca e psicoterapia. Ele diz que o sopro do xamã faz diferença. "É algo até metafísico. Tem muito da energia de quem sopra, de quem recebe e do local." Agora estão todos vacinados — população de rua e profissionais da saúde tiveram prioridade.

Para Adriano, os viciados em crack representam a versão extrema de uma sociedade ansiosa, deprimida e desligada da natureza e de si mesma. "Deu ruim pra vocês e pra mim também. A gente abusou, caiu, mas agora pode se levantar", discursa Adriano no final do ritual.

O trabalho deles e o nome também (Nhanderu é o deus dos guaranis) chamou a atenção de lideranças de aldeias no bairro de Parelheiros, zona sul de São Paulo, que enfrenta os mesmos problemas com entorpecentes entre seus jovens.

Os guaranis (Adriano é neto de indígenas dessa etnia) não usam tradicionalmente o rapé, mas adotaram recentemente o costume da Amazônia, onde cada tribo tem sua mistura. O do tipo mais caro, dos apurinãs, chega a custar R$ 1.500 o quilo, leva oito dias por trilhas e rios para chegar a Rio Branco (AC) e tem uma receita secreta para evitar a biopirataria. Nas cidades, o rapé acabou gourmetizado: hoje é possível comprar frascos com gengibre e manjericão.

Rapé na Cracolândia

Pó mágico

Até poucos anos, rapé era uma daquelas palavras em que se tropeçava em livros de Machado de Assis, Eça de Queiroz ou Charles Dickens e tinha-se que apelar para o dicionário atrás de seu significado.

Saído da América, o pozinho atravessou o Atlântico e ganhou notoriedade com Jean Nicot, embaixador francês em Portugal no século 16. Ele fez tanta propaganda das propriedades para aliviar a enxaqueca que seu nome apelidou o princípio ativo: a nicotina. Teve quatro séculos de fama. A elite acabou adotando o charuto como símbolo de status, no século 20.

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Adriano de Camargo faz reverência a altar antes de roda de rapé no Instituto Nhanderu, no centro de São Paulo
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Nos rituais xamânicos atuais, o rapé é combinado com outra tecnologia amazônica, a ayahuasca. Enquanto o líquido solta a mente pelo ar em projeções cósmicas, o pó é usado para aterrissar, mudar a percepção do real e facilitar a concentração.

Adriano é pioneiro no uso de rapé para diminuir o vício em cocaína ou crack — a ayahuasca é utilizada há mais de 20 anos por centros para dependentes químicos no Brasil e Peru. Segundo Luis Fernando Tófoli, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e coordenador do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos, ainda não há pesquisas acadêmicas sobre o rapé nessa função — diferentemente da ayahuasca, que parece ter propriedades "antiaditivas" (substância que combate o vício em entorpecentes), mas sobre o qual também faltam mais estudos.

Passado o efeito do rapé indígena, a percepção da realidade é sentida também na barriga. Tanto é assim que o ritual do Nhanderu, instituição que se banca com as vendas da loja e doações de alguns frequentadores, é seguido de um lanche. "Depois do rapé, nada melhor que um patê", brinca o adepto esfomeado.