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Para entrar em clube de charuto é preciso indicação e taxa de até R$ 20 mil

Apesar de maioria masculina, clube de charuto Quay D`Orsay aumentou presença feminina entre seus associados  - Flávio Florido/UOL
Apesar de maioria masculina, clube de charuto Quay D`Orsay aumentou presença feminina entre seus associados Imagem: Flávio Florido/UOL

Rodrigo Bertolotto

Do TAB

03/09/2021 04h00

Uma lareira, várias poltronas de couro e muitas baforadas. Segregado pela legislação antitabaco, o mercado do charuto ressuscitou o "clube de cavalheiros", associação típica do século 19, quando o Império Britânico espalhava suas tropas e seus costumes pelo mundo. A ideia é similar: após uma indicação de outro membro e uma taxa de adesão, ganha-se acesso a salões privativos para congregar com seus iguais.

"Tem lugares caros para ver e ser visto. Aqui é o contrário: os associados pagam para ter privacidade de conversar com amigos e fechar negócios fazendo o que mais gosta. E ninguém por perto para ficar sabendo ou reclamar da fumaça", define André Riccieri, gerente comercial do Espaço Quai D'Orsay, que mantém um andar exclusivo para quem desembolsa R$ 750 na inscrição e mantém um gasto anual acima dos R$ 15 mil em tabaco, bebida e eventos no local.

Na fachada do local inaugurado em 2013, a palavra "tabacaria" foi substituída por "premium cigar lounge". "Tiramos faz dois anos, porque a moda do narguilé mudou o significado. Virou coisa de periferia. E, na pandemia, pior ainda, com tanta notícia de festas clandestinas e batidas policias", opina Riccieri.

Já no Caruso Lounge, há anuidades de R$ 3.850 até R$ 20 mil para frequentar suas salas envidraçadas — se a reunião é restrita, aperta-se um botão, e uma película deixa o vidro opaco, evitando os olhares da clientela comum que frequenta o saguão.

Pela taxa, o associado tem serviços de alfaiataria, barbearia, adega de vinhos e, claro, loja de charutos — com preços que chegam a R$ 485, como um torpedo Opus X, feito na República Dominicana. Além disso, cada afiliado pode guardar seus vícios em um paredão de cofres. Os treinados garçons conhecem todos pelo nome e correm com as chaves para abrir os tesouros particulares e depositá-los diante do gentil-homem que acaba de chegar.

A elite que adora Cuba

Não só espirais de vapor saem das bocas dali. "I don't care. Eu posso. Mas é osso: paguei 150 paus no Rolex e não tá fit. Quando eu coloco a bermuda, ele fica gigante no meu braço", se lamentava um mirrado associado em uma das mesas do Caruso Lounge. Perto dali, um conviva grisalho esbravejava: "Pra que eu quero um jatinho desses se ele não consegue pousar na pista da minha fazenda de Goiás?"

André Caruso, 37, é a quarta geração de um sobrenome com tradição tabagista centenária. Partiu dele a ideia de montar esse clube. "Meu bisavô veio da Itália, sabia enrolar fumo e montou uma tabacaria em 1885. Mas as finanças não estavam boas quando entrei na empresa há 16 anos", lembra.

Revender tabaco não dava boa margem de lucro, mas, como os clientes gostavam de pitar ali mesmo e ficar de prosa durante a hora que durava a chama, André viu uma oportunidade, indo na onda dos "cigar clubs", que se espalharam pelo mundo na virada do século, quando começaram as leis restritivas aos fumantes.

clube de charutos - Flávio Florido/UOL - Flávio Florido/UOL
André Caruso representa a quarta geração de família proprietária de tabacaria e montou um clube de charutos em São Paulo
Imagem: Flávio Florido/UOL

Criado em 2015, o Caruso Lounge tem mais de 700 membros e está abrindo mais duas casas em São Paulo e três em outros Estados. O serviço de concierge de lá permite que o afiliado tenha desconto para alugar helicópteros, blindar seus carros ou reservar um campo de golfe. "São pessoas muito ocupadas, que querem relaxar, dar um tempo, mas também resolver tudo em um só lugar", conta o idealizador.

Outra particularidade é que essa parcela da elite nacional não grita "vai para Cuba" para seus detratores: eles próprios adoram passar boas temporadas nos resorts de lá, afinal, a ilha caribenha tem os melhores charutos do mundo, feitos por mãos comunistas desde o plantio até as caixas de cedro que servem de embalagem. Há os que preferem Miami (EUA) para queimar os similares nicaraguenses ou hondurenhos.

Um sommelier de networking

Os charutos ficam armazenados no umidor, uma sala com umidade do ar de até 80% para preservar essas folhas fermentadas e enroladas. Já seus apreciadores estão agrupados no recinto ao lado. Menor, o Quay D'Orsay tem lareira e poltronas Chesterfield, aquelas com encosto abotoado, que emprestam uma atmosfera de "gentlemen' s club" apesar de o lugar existir há apenas oito anos.

No cenário antiquado, uma tecnologia se destaca: um gerador de ozônio evita a neblina no ar e o cheiro nas roupas. A casa já teve 300 sócios, mas reduziu para 100, porque o espaço não comportava tantas reservas. Agora só entra quem for indicado por outro membro — isso se alguém sair e abrir vaga.

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O arquiteto de software Ricky Taki é membro de clube de charuto há dois anos e aproveita o local para ampliar rede de contatos
Imagem: Flávio Florido/UOL

"O cachimbo é um hábito mais introspectivo, solitário, mas quem fuma charuto quer socializar", resume Riccieri. Ele se define como um "sommelier de networking", combinando tanto tabacos e conhaques quanto harmonizando investidores e executivos.

Associado há quase dois anos, Ricky Taki é arquiteto de software e encontra parceiros internacionais e startupeiros locais entre uma baforada e outra por lá. "Venho pelo menos duas vezes por semana. E duas vezes por mês trabalho daqui mesmo. A vantagem é terminar o expediente, fechar o computador e acender um charuto com os amigos. É um tesão."

Minha poltrona, meu trono

Esses enclaves masculinos têm origem nas irmandades e confrarias medievais, passando pelas sociedades secretas, com seus grão-mestres, durante o Iluminismo, até chegar à Inglaterra vitoriana. Com um acelerado processo de urbanização, Londres viu essas seletas sedes se multiplicarem para lordes, dândis e baronetes desfilarem seu ar de superioridade.

Havia clubes para parlamentares, militares, juízes, industriais e todas as funções na alta hierarquia do Império Britânico. Dessas agremiações surgiram também os clubes esportivos, modelo importado junto com as modalidades pelo Brasil, onde há muitos exemplos bem excludentes, como os que adotam o sistema de "bola preta" — o nome do candidato a sócio é apresentado aos atuais integrantes, e, se alguém tiver alguma objeção, é barrada a sua entrada.

Em uma época com profunda divisão entre os gêneros, esses senhores londrinos saíam de casa e da rotina com a mulher, filhos e criados para distrações respeitáveis nesses refúgios acolchoados, onde jantavam, liam os jornais, jogavam bilhar, apostavam em tudo (inclusive qual membro seria o próximo defunto) e, claro, fumavam charutos entre uma sobremesa e uma saideira.

Eles existem até hoje nas proximidades do palácio de Buckingham, e muitos ainda proíbem a entrada de mulheres, mesmo em tempos de movimento #MeToo. No ano passado, uma empresária inglesa processou o Garrick, clube fundado em 1831, porque queria ampliar sua rede de negócios frequentando seus salões aconchegantes.

Nos clubes brasileiros de charutos, as mulheres são uma minoria. As sócias do Caruso Lounge representam 5% do total, enquanto no Quay D'Orsay elas se aproximam de 30% porque há duas sommelières ali que arregimentaram adeptas defumadas.

O charuto é uma tecnologia originalmente indígena, que era usada como estimulante e estava presente em rituais. Apropriada pelos europeus após a chegada às Américas, sofisticou-se cada vez mais. Os riscos à saúde pública fizeram os governos aplicarem restrições e impostos sobre tabaco. Depois disso, o hábito acabou se fechando em clubes, onde os conceitos de exclusividade e exclusão novamente se aproximam e se confundem.