Toque de recolher transforma Alexandre Frota em 'exterminador de festas'
"Tchau, voltem sempre", gritam as garotas de programa vendo os 30 policiais entrando nas viaturas depois de lacrar o Bahamas Hotel Club e levar seu dono, Oscar Maroni, para a delegacia. Duas horas mais tarde, do outro lado de São Paulo, o deputado federal e ex-ator pornô Alexandre Frota (PSDB) se mistura a uma diligência policial e dá bronca em dezenas de jovens reunidos em uma tabacaria. "Eu adoro festas, mas agora é crime", disparava para as câmeras.
É o fim do verão de 2021, e as noites quentes convidam a dar uma volta. As autoridades, porém, proibiram. A peste que chegou no verão anterior agora bate recorde de mortos, e o toque de recolher determina que todos devem estar em casa das 20h às 5h, para evitar o vírus que se espalha pelo ar e pelo contato humano.
Depois de muitos dias trancado, decidi atravessar a cidade para ver o que acontecia durante as horas em que só escapava em sonhos dessa vida emparedada. Nesta noite, deu para ouvir grilos nas moitas e cachorros latindo à distância em plena área central de uma megalópole com 21 milhões de humanos. Não era o barulho noturno mais comum no Largo da Batata — ponto de encontro da juventude no bairro de Pinheiros. No lugar da muvuca, havia poucos casais nos bancos escuros, aproveitando a privacidade pública, e um grupo de entregadores dando tragos de nicotina e cerveja, com suas bicicletas encostadas ao lado.
A escuridão cobria vigias, catadores e outros habitantes das ruas, mas era interrompida, de tempos em tempos, pelos feixes de luz de um giroflex. Os policiais faziam blitz, rondas e estavam orientados a abordar as pessoas na rua e pedir para que voltassem para casa.
Das seis horas que passei pelas ruas, só uma vez um agente interpelou a reportagem do TAB. "Para onde vocês estão indo?", perguntou o guarda civil depois de pedir para baixar o vidro do carro. Cercados por cones e viaturas, estávamos na região da Cracolândia. "Praça da República", respondi. Ele recomendou o melhor caminho, demos meia-volta, mas, antes de chegar ao próximo destino, uma mensagem mudou tudo. "Blitz no Bahamas. Responsável vai para o DPPC", avisou o canal de whatsApp com a Secretaria Estadual de Segurança Pública.
Tesão maior que a morte
Foi só os agentes da Vigilância Sanitária entrarem na boate para mais de 20 garotas de programa saírem correndo para a porta que leva aos quartos. No total, havia 54 pessoas sem máscaras no "hotel e balneário" — oito eram clientes. Maroni, o proprietário do local, chegou só depois que os homens camuflados substituíram as mulheres de biquíni sob a luz neon e a música animada.
O empresário argumentou que o Bahamas estava funcionando como hotel, uma das poucas atividades noturnas permitidas. Mas não convenceu ninguém — e acabou indo de Moema, zona sul, para a Delegacia de Polícia de Proteção à Cidadania, unidade na cêntrica avenida São João que concentra os casos de quem desafia as atuais restrições. Desde 2007, Maroni coleciona prisões por exploração da prostituição. Dessa vez, o crime foi infração de medida sanitária preventiva.
Mais relaxadas, as garotas chamaram uma frota de Uber, afinal o expediente delas havia acabado antes. O meu seguia.
Na avenida Yervant Kissajkian, em Americanópolis, zona sul, pessoas com litrão de cerveja na mão se aglomeravam em frente a três bares, mesmo sob a garoa que surgiu à meia-noite. Não havia sinal de viaturas por perto. Na minha ronda, percebi que a periferia — a mais ameaçada pela pandemia —, era menos vigiada que os bairros centrais. Um novo aviso pelo celular me fez cruzar a cidade até a Freguesia do Ó, zona norte.
Sem máscara, com narguilé
"Vocês vão ser processados pelo artigo 268 e podem pegar de um mês a um ano de detenção", explicava o delegado para uma fila de manos de boné e minas de salto alto. Dentro da tabacaria de nome Istambul Lounge, 44 jovens dividiam copos e narguilés no ambiente esfumaçado que os impedia de enxergar a realidade. Só 16 tinham máscara — muitas, só nos bolsos.
O Código Penal fala sobre "infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa". Na confusão da chegada, um dos frequentadores tentou fugir e começou a gritar "sou pai de família" para os policiais, que o algemaram como método para acalmá-lo.
Depois de protagonizar novelas, reality shows, programas humorísticos e filmes pornô, o ator Alexandre Frota agora faz as vezes de deputado federal e coadjuvante na força-tarefa que o governo paulista formou para o toque de recolher, juntando as polícias civil e militar, além de agentes da Vigilância Sanitária e do Procon, o serviço de defesa do consumidor.
O político midiático, famoso por suas lives dentro do Congresso Nacional, agora estrela em suas redes sociais as batidas policiais que acompanha. Ele mobilizou parte de seu gabinete para receber denúncias, como a que encontrou o jogador Gabigol e o funkeiro MC Gui em um cassino clandestino na Vila Olímpia.
Na tabacaria, Frota chegou antes que os policiais e esperou em seu carro do lado de fora — ele também esteve na ação do Bahamas. Assim que entraram os agentes, ele foi atrás, filmando com o celular. "Todo mundo pro chão. Chão, agora. Deita aí, caralho", gritava o policial escoltado pelo deputado-cinegrafista.
"A gente vai voltar a dançar, a se abraçar. Mas não é o momento. Se tiver festa, a força-tarefa vai pra cima", diz Frota para a câmera, vestindo blusa com uma caveira, estilo justiceiro, e uma carteira dizendo "poder legislativo" na sua gola.
Guerra contra quem?
O toque de recolher é criticado por especialistas como uma medida paliativa, afinal, restringe a circulação em um franja horária em que ela já é normalmente reduzida. Em geral, é aplicada por autoridades que hesitam em decretar o lockdown — o confinamento 24 horas se mostra realmente efetivo nos países onde é aplicado para frear a contaminação e o colapso hospitalar, mas os políticos daqui relutam em contrariar o empresariado.
A proibição de circulação noturna é mais usual para momentos de convulsão social ou conflitos armados, para evitar ações que aproveitam a escuridão. Como repórter, vivi outras duas vezes sob essa determinação.
A primeira vez foi em 2006, na cobertura da ida da seleção brasileira e visita presidencial ao Haiti. Após conflito armado interno, o país caribenho sofreu uma intervenção das tropas de paz da ONU, lideradas pelo Brasil.
Durante minha estadia, havia tiroteios rotineiros entre gangues dos bairros pobres da capital, Porto Príncipe, e soldados estrangeiros. De noite, não saía do hotel El Rancho, na vizinha Petionville, e só escutava ao longe atabaques, cantos e tiros que vinham do breu ao redor — o país tem tamanho déficit energético que a lenha é a principal fonte iluminação e combustível para cozinhar.
Em 2010, foi a vez de ir ao Chile para escrever sobre o terremoto que devastou o sul do país. Nas cidades destruídas, seguiu-se uma onda de saques ao comércio. Para circular à noite no porto de Concepción era preciso um salvo-conduto, emitido pelas autoridades militares — jornalista era uma das poucas profissões que tinham esse direito.
No Brasil, o toque de recolher foi usado no regime militar principalmente após o AI-5, em 1968, para patrulhar ruas e evitar atividades políticas, em nome da "segurança nacional". Agora, o inimigo é invisível, mas há vários setores da população que sabotam a solução. Entre eles, os negacionistas (como muitos integrantes do governo federal) e os escapistas (como esses jovens que aderem às festas clandestinas).
Vi gente treinando corrida na avenida Paulista, passeando com cachorro no Butantã, cercando um pipoqueiro na estação Morumbi do metrô, night-bikers em pelotão pela avenida Faria Lima, prostitutas na rua Augusta, imigrantes africanos sentados em cadeiras na calçada tomando a fresca na avenida Rio Branco, motoristas parando para tomar cerveja em posto de gasolina na Marginal Tietê.
Esse confinamento apenas noturno tem se mostrado tão flexível como foi toda a quarentena até agora no Brasil, onde raras vezes o nível de isolamento da população superou os 50%, mostrando o parco espírito coletivo que domina o país.
Em uma época em que festa virou sinônimo de infestação, a noite parece que começa por uma certa melancolia — e não pelo céu que vai se apagando. Os tempos sombrios e contagiosos demoram a passar e acumulam vítimas. E o atual silêncio noturno nos lembra que, levando em conta a história da Terra, a presença humana é apenas uma noite de insônia na existência mineral do planeta.
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