Topo

'Psicodelia de direita': polarização se acirra entre usuários de ayahuasca

Templo do Núcleo Rei Salomão do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal - Samuel Macedo/Divulgação
Templo do Núcleo Rei Salomão do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal Imagem: Samuel Macedo/Divulgação

Carlos Minuano

Colaboração para o TAB

31/08/2020 04h01

Nos últimos tempos, drogas como LSD e MDMA (o ecstasy) estão recuperando um prestígio perdido desde a década de 1970, quando os Estados Unidos colocaram em curso sua política de guerra às drogas, definitivamente fracassada. A virada no jogo se deve à retomada de pesquisas científicas, inclusive no Brasil, sobre a eficácia dos ditos "alucinógenos" no tratamento de transtornos mentais, como o estresse pós-traumático.

Nas bordas desse avanço ocorre outra movimentação, alinhada a um fenômeno político global: ocupando um território historicamente associado à contracultura, ressurge no mundo uma "psicodelia de direita". Ressurgimento porque, sim, bem antes dos hippies, públicos conservadores já trilharam essas veredas.

Grupos religiosos que utilizam o chá ayahuasca, bebida psicodélica usada por indígenas da região amazônica, têm se dividido entre progressistas e conservadores. A cisão fica cada vez mais evidente.

O fenômeno começou a ganhar força entre comunidades de adeptos desses cultos, já na reta final da campanha presidencial em 2018. Apoiadores e opositores do então candidato Jair Bolsonaro começaram um debate nas redes sociais que segue até hoje inflamado, com muitas ofensas de ambos os lados.

Um primeiro foco teve início no Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (UDV), instituição religiosa criada em 1961, de inspiração cristã e reencarnacionista, que hoje tem mais de 20 mil seguidores no Brasil e em outros nove países. O motivo foi um áudio disparado por um dos mais antigos líderes do centro religioso, Raimundo Monteiro de Souza, expressando apoio a Bolsonaro. A mensagem, alinhada ao discurso do atual presidente, falava de uma grave crise moral no país, defendia a família como "célula mater da sociedade", se opunha a gays e "movimentos que degradem a moral", atacava direitos de bandidos, chamava de "intromissão do maligno e do governo" supostas "cartilhas para crianças de cinco anos defendendo a libertinagem" e posicionava-se contra aborto e "ideologia de gênero". E encerrava criticando o desarmamento, que colocaria em risco os cidadãos de bem, pedindo votos para o então candidato. A mensagem do dirigente provocou uma celeuma na UDV, que se declara apartidária.

Sem citar nomes, a instituição correu para consertar a situação e se posicionou, por meio de uma carta dirigida aos seus seguidores, informando não professar ideologias políticas, nem ter preferência ou indicação por qualquer candidatura. Mas o texto se restringiu ao pleito eleitoral: "A manifestação de seus integrantes ou dirigentes a respeito de política deve ser considerada posicionamento pessoal dentro da liberdade de pensar e de escolha que cabe a cada cidadão brasileiro".

Comunicação interna

A reportagem de TAB teve acesso a uma circular da instituição, em que ela se posiciona contra a homossexualidade. O texto, de 2008, lido dentro das sessões com ayahuasca, afirma que o grupo jamais poderá concordar com a "prática do homossexualismo", "visto que contraria a origem natural da existência humana". Também se opõe ao casamento de pessoas do mesmo sexo pelo risco de uma possível "extinção da espécie humana".

Posição religiosa do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal - Reprodução - Reprodução
Trecho de documento sobre a posição religiosa do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal
Imagem: Reprodução

"Existem pessoas [de] que gostamos e até mesmo familiares de alguns de nós que fazem uso daquela indesejável prática", afirma a carta, que encerra falando na permissão do "ingresso dessas pessoas à União do Vegetal", porque o trabalho realizado na instituição tem por objetivo a "transformação de condutas indesejáveis em busca da perfeição". O documento chama a atenção pela autoria: Luís Felipe Belmonte, antigo e influente mestre do grupo. Advogado bem-sucedido, dono de construtora, fazendas e de um clube de futebol, ele é vice-presidente do partido que o presidente Jair Bolsonaro quer formatar, o Aliança pelo Brasil.

"É lamentável que a principal religião ayahuasqueira brasileira, a UDV, afirme promover 'a transformação de condutas indesejáveis como o homossexualismo' com a ayahuasca", comenta Bia Labate, doutora em Antropologia Social e diretora-executiva do Instituto Chacruna de Plantas Psicodélicas Medicinais, que teve acesso ao documento por meio da reportagem do TAB.

Ela chama de ingênuo o apoio ao atual presidente. "Este governo promove abertamente a destruição da Amazônia, fonte das plantas que compõem a ayahuasca, assim como um genocídio indígena, parte da raiz ancestral e legado desta religião."

Procurado pelo TAB e questionado sobre o documento, Luís Felipe Belmonte afirmou: "Defendemos princípios religiosos e temos o direito constitucional de defender a família tradicional. Na mesma carta deixamos claro que respeitamos a posição das pessoas, pois esse direito é de cada um. É isso que o senhor considera posicionamento homofóbico?" Em relação ao trecho em que afirmam aceitar homossexuais porque acreditam numa transformação, Belmonte afirmou: "Temos nossa doutrina e a mantemos. Dentro de nossos princípios está também o respeito a opções das pessoas, como pilar do sentimento cristão de fraternidade".

O Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (UDV) não comentou o documento em questão e enviou a seguinte nota, assinada por Jocimar Nastari, diretor-adjunto do Departamento de Memória e Comunicação da instituição: "O Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (UDV) esclarece que seu objetivo é trabalhar pelo ser humano no sentido do desenvolvimento de suas virtudes morais, intelectuais e espirituais, sem distinção de cor, sexo, ideologia política, credo religioso ou nacionalidade. Neste sentido, a UDV aceita todos que a procuram, sem nenhum tipo de preconceito, pré-julgamento ou discriminação. Os princípios que regem nosso Centro estão alicerçados na solidariedade e na fraternidade. Por isso, não admitimos nenhuma atitude que possa agredir a dignidade da pessoa humana, a exemplo de situações como sexismo, racismo, homofobia, xenofobia, entre outros tipos de preconceito".

Ritual com o uso de ayahuasca pelo grupo ABLUSA - Caio Guatelli/Folhapress - Caio Guatelli/Folhapress
Ritual místico com o uso de ayahuasca
Imagem: Caio Guatelli/Folhapress

Em 2019, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que atos de homofobia e transfobia podem ser criminalizados pela Lei do Racismo. Em cultos, pode-se dizer que é contra relações homossexuais mas não se pode incitar ou induzir à discriminação. Religiosos têm usado o argumento "não podemos julgar, porém somos contra", explica o advogado Gustavo Coutinho, diretor da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Travestis, Transexuais e Intersexos). "Como o entendimento do STF é de que apenas o discurso de ódio contra pessoas LGBTI+ é punível, o teor do documento (da UDV) em si não configura crime. Contudo, estes posicionamentos são uma ofensa aos nossos direitos, uma vez que a propagação de estigmas negativos sobre nós e a utilização da narrativa de 'cura' contribuem com o aumento da exclusão e da violência LGBTIfóbica."

Fora do armário

O cartunista Luiz Comzet frequentou durante 20 anos o Santo Daime, outro grupo religioso que utiliza a ayahuasca em seus rituais. Ele garante que há tempos percebe uma ala conservadora ganhando corpo. Também se indignou com alguns comportamentos que observou no meio daimista e, por isso, decidiu criar a revista digital Madrinha Superci nas redes sociais para denunciar — por meio de charges e memes — machismo e homofobia. Não deu outra: a publicação virou mais uma arena de combate.

Ilustração da revista digital Madrinha Superci - Reprodução - Reprodução
Ilustração da revista digital Madrinha Superci
Imagem: Reprodução

Desde as eleições de 2014, ele diz que já havia observado uma divisão entre daimistas de direita e de esquerda, mas admite que em 2018 piorou muito. "As redes sociais de ayahuasqueiros de todas as linhas pegaram fogo, muitos dirigentes declararam apoio a Bolsonaro, alguns explicitamente, com direito a selfie com pose de arminha."

Para o cartunista, as divisões no Santo Daime, um culto de iluminação cristã, fundado por um negro, retirante, nordestino, no meio da floresta amazônica, são mais profundas e severas que as causadas entre seguidores de outras religiões. "É extremamente difícil compreender um daimista a favor de quem promete zero centímetro de terra para índio."

"Muito dessa extrema direita já estava aí há muito tempo", observa o antropólogo Walter Dias, padrinho da primeira igreja daimista de São Paulo (neste grupo, centros são chamados de igrejas e dirigentes de padrinhos e madrinhas). Ele afirma que tem enfrentado momentos mais tensos ultimamente, sobretudo no campo da sexualidade, com embates entre homofóbicos e LGBTQ+.

O avanço do pensamento conservador entre grupos ayahuasqueiros no Brasil revela ainda um aspecto pouco explorado sobre os psicodélicos. Além de seu potencial terapêutico e de expansão da consciência, pode ser que esses psicoativos também possuam uma plasticidade que permita oferecer significado e validação para ideologias políticas bastante distintas, individualistas, reacionárias e até fascistas.

"Os psicodélicos são ferramentas poderosas que parecem permitir a conexão com o universo e entre as pessoas. Mas, como tudo na vida, não existem separados de nós, e nossas crenças e posturas políticas podem modular seus efeitos", argumenta Luís Fernando Tófoli, professor de psiquiatria da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e coordenador do Icaro, grupo de pesquisa sobre ayahuasca e outros psicodélicos. "Qualquer ideologia deseja fazer o que considera ser o 'bem' dentro de sua visão de mundo, não é impossível que haja manipulação política em prol de causas entendidas como 'nobres'."