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Umbanda 'psicodélica' usa vinho indígena e cultua divindade quilombola

A mãe de santo Mary Pereira bebe vinho de jurema diante de altar para Mestre Malunguinho, guia dos juremeiros - Keiny Andrade/UOL
A mãe de santo Mary Pereira bebe vinho de jurema diante de altar para Mestre Malunguinho, guia dos juremeiros
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Rodrigo Bertolotto

Do TAB, em São Paulo

09/09/2021 04h00

O ritmo acelerado dos tambores, as nuvens de defumação e as pessoas em transe são típicos da umbanda, mas antes ocorreu algo diferente naquele rito: os fiéis se sentaram em roda e tomaram um líquido escuro e licoroso que foi retirado de um jarro de barro. A beberagem era o vinho da jurema, árvore que é sagrada para diversas etnias indígenas nordestinas.

Essa planta tem o mesmo princípio psicoativo da ayahuasca (a dimetiltriptamina) e pode causar, dependendo da concentração, desde euforia ou êxtase místico até alucinações. "A jurema coloca pra fora o que está sufocado dentro de você. Se tiver depressivo, vai chorar. Se tiver ansioso, vai se agitar. Se tiver equilibrado, vai sentir paz", sintetiza a mãe de santo Mary Pereira. Logo ao lado, Mestra Ritinha, com vestido rodado vermelho de Pomba Gira, dá sua opinião: "Você fica em alfa. Entra em contato com outro plano."

Mary, 54, nasceu e cresceu em Afogados da Ingazeira, no sertão pernambucano. Lá, ela foi iniciada nos rituais juremeiros por sua parteira, Maria Genésio. "As pessoas vinham ao mundo pelas mãos dela. E também conheciam a jurema com ela", lembra. Aos 19 anos, migrou e se estabeleceu no Morro Doce, zona norte de São Paulo. Mas todo ano viajava a Pernambuco para ver a família e fazer por lá as "obrigações na Jurema Sagrada".

Ela frequentou terreiros de umbanda em São Paulo até que desenvolveu sua mediunidade e abriu o seu em 1989. Seis anos depois, fez sua confirmação final no ritual da jurema em sua cidade natal. Daí trouxe a imagem de Mestre Malunguinho, guia espiritual dos juremeiros, e começou a espalhar pela maior metrópole do país essa vertente da umbanda com raízes no sertão nordestino.

Religião brasileiríssima da Silva, a umbanda é um conglomerado de fés africanas, indígenas, cristãs e espíritas. Dependendo da região, uma dessas influências aparece mais forte nos cultos. Já se falou de um "embranquecimento" dela em áreas urbanas e de classe média e já se defendeu uma aproximação maior com o candomblé, crença mais próxima às da África. Os juremeiros, porém, seguem um caminho mais nativo e guardam uma história do país pouco contada.

Um quilombola no altar

Os efeitos da jurema aparecem em diversas manifestações culturais, inclusive em clássicos da literatura. Em "Iracema", de José de Alencar (1829-1877), a protagonista, uma filha de pajé, guarda os mistérios desse "verde licor" que transporta os guerreiros da tribo "ao céu e aos sonhos". Já em um trecho de "Macunaíma", de Mário de Andrade (1893-1945), o personagem principal se caracterizou como mulher para ludibriar um estrangeiro e "virou uma francesa tão linda que se defumou com jurema".

A planta também está no Carnaval. Em alguns maracatus rurais de Pernambuco, há a ingestão e banho com ela para a limpeza, proteção e força dos foliões antes dos dias de festa.

Cultuada pelos tabajaras e potiguares, a jurema saiu das matas e entrou nas cidades, mas ainda sem a aura que sua similar acreana, a ayahuasca, ganhou nos últimos tempos. A planta nordestina foi das pajelanças até as terapias psicodélicas, passando pelo catolicismo popular, neoxamanismo e todo tipo de esoterismo. Há locais até que fazem sessões de "juremasca", mistura jurema, ayahuasca e outras ervas, para potencializar o efeito e aumentar a viagem astral.

Na versão umbandista, o guia é Mestre Malunguinho, um ser real que foi erguido ao panteão, junto a orixás e personagens bíblicos. Pernambuco vivia um período de muitas revoltas populares no século 19, e os malungos eram escravos que fugiam para as matas e entravam em contato com os indígenas, misturando suas culturas. O último desses chefes quilombolas foi assassinado em 1835 e virou divindade e protetor dos segredos da jurema, segundo seus seguidores.

Um buffet dos espíritos

Como sua sede é estreita (e os tempos são pandêmicos), Mary decidiu que faria a festa anual do terreiro em um buffet alugado. Na entrada, havia escorregador e outros brinquedos infláveis. Seguindo um corredor, chegava-se ao salão da cerimônia. Lá tinha pipoca, mas não vinha em pacotinho para as crianças: ela estava em círculos no chão, marcando os altares — na umbanda, o milho estourado é usado como símbolo de cura em oferendas.

Um desses círculos reverenciava Malunguinho, com uma imagem de menino negro sentado e abraçando as pernas. Ao lado, um tronco de jurema estava decorado com flores. E no chão pousava um grande jarro de cerâmica contendo o vinho da jurema, que fermentou por semanas a casca da árvore com outras ervas, água e mel.

Atrás do jarro, uma caixa de madeira guardava uma mistura de tabaco, jurema, alecrim, camomila e alfazema para fazer as defumações. Mary encheu seu cachimbo e, depois de acender o fumo, foi espalhando colunas de fumaça pelo local para a limpeza espiritual.

jurema na umbanda - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Altar da Jurema Sagrada tem jarro com vinho, tronco da planta, imagem de Mestre Malunguinho, velas e oferendas
Imagem: Keiny Andrade/UOL

A roda de juremeiros começou com cânticos, acompanhados por maracas, bem ao estilo indígena: "Jurema sagrada/ Senhora rainha/ A cidade é sua/ Mas a chave é minha", "A jurema é minha madrinha/ Jesus é o meu protetor/ A Jurema é um pau sagrado/ Onde Jesus chorou" e "Eu perguntei para jurema se era pecado eu fumar/ A jurema me respondeu: só é pecado matar."

A mestra foi servindo um a um a beberagem em uma cumbuca. Os juremeiros faziam reverência, tomavam, fechavam os olhos e pareciam meditar. "A jurema abre nossa percepção, nosso entendimento e ajuda no ritual de incorporação", disse Mary.

Minutos depois, os juremeiros estavam falando e rodando como possessos ao som dos atabaques. Com uma voz gutural da entidade Exu Tranca Rua das Almas, Mary engatou um discurso sobre a covid-19: "Com a jurema, essa doença desgraçada não pega. Minha casa é apertada, mas ninguém pegou. Esse vírus ficou mortal por incompetência dos governantes." A mãe de santo diz que essa não é opinião dela, que confia na ciência e que manteve o terreiro fechado até a vacinação de seus seguidores.

Acompanhando os pais, algumas crianças assistiram ao ritual, sem tomar a jurema. Outras se distraíam vendo desenhos animados no YouTube. Nas pausas das batucadas, o barulho vindo de um celular atrapalhava a gravidade do momento. "Abaixa isso, Miguel", gritava a mãe umbandista.

Mary lidera 42 juremeiros. Para integrar o grupo, a pessoa tem que passar por um processo com o batismo, a consagração e, finalmente, o tombo da jurema, um ritual de passagem no qual o adepto bebe o vinho e tem sua experiência mística. "Depois, o iniciado deve cumprir suas obrigações com seus guias, fortalecer o campo de força e fazer o bem para as pessoas e a natureza", afirma a mãe de santo.

Uma vez por mês os juremeiros se reúnem em um sítio em Juquitiba, na Grande São Paulo. Lá, eles plantaram vários pés das duas espécies de jurema (a preta e a branca), que são venerados e podados para abastecer as poções e os incensos. Como naquele trecho de Mata Atlântica chove bem mais que na caatinga, a substância psicoativa da planta não é tão concentrada — a raiz é onde os alcaloides estão mais presentes.

"Em um lugar assim, sem parede nem porta, é melhor para sentir o poder da jurema, como os índios fazem. Não procuramos um efeito alucinógeno forte. Queremos um estado de espírito", sintetiza Mary.