"Não me chama para falar, por favor, não me chama", torcia Felipe Neto em julho de 2024, em uma das mesas do fundo de uma festa da Play9. A agência da qual é sócio gerencia dezenas de influenciadores.
Foi chamado, subiu ao palco, falou e foi aplaudido.
Não ter vontade de falar em público era impensável anos atrás. O jovem garoto do Engenho Novo, bairro da Zona Norte carioca, sempre quis o microfone.
Foi esse desejo que o fez comprar uma câmera, há mais de 15 anos, criar coragem de montar um estúdio improvisado na edícula da casa da avó e virar um fenômeno.
O que ele teve, afirma, foi sorte. "Quem diz que meus vídeos antigos tinham qualidade está mentindo. Aquilo é horroroso. Eu tenho vergonha."
O resultado disso são 80 milhões de seguidores entre Instagram, YouTube e TikTok.
Na sala da casa de Felipe, camisas de futebol emolduradas dividem espaço com brinquedos. Na mesa de centro, os personagens principais de "Harry Potter", um livro de "Toy Story", um tabuleiro de xadrez. Um unicórnio de pelúcia lilás senta em uma das poltronas do cômodo amplo.
Cercado de referências pop da juventude, aos 36 anos, afasta o estereótipo molecão que o catapultou para a fama no começo dos anos 10.
Nessa época, o quadro "Não Faz Sentido" viralizou rapidamente. Ali, ele falava mal da saga Crepúsculo ou da corrupção no governo, sentindo muita raiva.
Curioso: o que não faz sentido para Felipe hoje é bem aquele rancor todo que o deixou famoso.
Em uma sucessão de fatos que caminham junto com a história recente do Brasil, percebeu que o ódio que sentia estava errado. E decidiu mudar.
Uma rotina nada instagramável
Lê livros, estuda, joga videogame, grava vídeos. "Sou muito solitário. Amo essa solidão porque é o que me faz criar, ler, estudar".
Nos fins de semana, a namorada Juliane Carvalho vai para a sua casa. Saem para jantar frequentemente, veem séries e ficam juntos.
Ele também recebe muitos amigos. Veem jogos do Botafogo e se comportam "como se tivessem 14 anos, apesar de terem passado dos 30". Com a turma, também abre mão do holofote. Fica de espectador da galera.
Antes da pandemia, jogava futebol. Agora, confessa que tem sentido lesões e preguiça.
"Preciso voltar". O mesmo vale para a musculação, treino aeróbico e tomar sol, o combo que ajudaria a melhorar sua depressão.
Felipe diz que está devendo e não é bom exemplo nesse sentido. A mãe anda preocupada e o médico chama sua atenção.
"Estou há um tempo sem ver o Sol, mas eu sei que ele está lá, né?", diz, esticando o pescoço para notar, através da cortina fechada, a luz vinda do quintal.
Naquela semana, uma nuvem de poeira e cinza das queimadas cobria o Sudeste do país. "Na verdade, o Sol está mais ou menos lá", ele se corrige.
Quase 400 páginas sobre o ódio
A conversa com o UOL aconteceu dois dias antes de Felipe reunir milhares de pessoas na Bienal do Livro, em São Paulo. Ali, lançou o livro "Como Enfrentar o Ódio" (Companhia das Letras, R$ 69,90).
Nas 376 páginas da obra, de capa dura, ele narra um tipo de biografia do ódio. Conta como cresceu, orientado pelo tio, a acreditar que a culpa de tudo que dava errado em sua vida era do PT.
O influenciador descreve a guinada que deu nos últimos cinco anos, quando virou um dos críticos mais incômodos à extrema direita.
Lula se elegeu pela primeira vez, em 2002, quando Felipe tinha 13 anos e arriscava seus primeiros passos como empreendedor, em um serviço de telemensagens. Faliu o negócio logo depois.
De lá para cá, ele conta, foi tentando ganhar dinheiro. O sonho era sair da situação difícil em que vivia com a mãe, Rosa. Ela trabalhava muito, sem ganhar hora extra, em uma escola infantil.
Todas as frustrações desse período tinham um culpado: o PT no poder.
A derrocada do partido, em 2016, quando Dilma Roussef foi deposta, foi amplamente comemorada. O governo seguinte, Temer, passou em branco.
Mas Felipe não esperava que o próximo presidente, escolhido em 2018 pelo povo em uma eleição em que Lula nem pôde participar, seria sua grande pedra no sapato. Assim, o bolsonarismo cruzou a história do youtuber. E mudou seu curso.
Foi então que ele entendeu que estava canalizando a raiva para o lado errado. E passou a criticar a extrema direita.
Segurança mapeada
Quando Jair Bolsonaro assumiu a presidência, em 2019, pandemia era "ficção científica". Mas a homofobia já era realidade para o político que cresceu midiaticamente em cima de expressões condenáveis contra a comunidade LGBTQIA+.
Felipe não compactuava com o discurso homofóbico. E essa foi a primeira de uma série de dúvidas que ele afirma ter colocado em seu "caldeirão de certezas". E começou a entender que odiar o PT não resolvia nada.
Criticar o governo — algo que fazia raivosamente desde a década anterior — virou caso de polícia.
Em um crescente assustador de perseguições que culminaram em ameaças de morte, ele viu sua relação com a liberdade ficar frágil.
Foi indiciado por corrupção de menores, a polícia foi à sua casa, ele temeu a cadeia e virou alvo de um forte esquema de fake news que o associavam à pedofilia.
Ambas as acusações de crime foram assinadas pelo delegado Pablo Dacosta Sartori, da Delegacia de Repressão a Crimes de Informática. Segundo ele, Sartori tem alinhamento com o bolsonarismo.
Sartori disse ao UOL via WhatsApp que os dois procedimentos chegaram a ele pelo Ministério Público. "Nesses casos, o delegado não pode optar por não investigar", informou.
Sartori diz que um deles foi arquivado por sua sugestão.
"Note que nem sequer fui eu, como delegado, quem deu início aos procedimentos, e em apenas um deles conclui que existia um crime. Não vejo como isso seria uma suposta perseguição."
Uma das piores situações vividas por Felipe ocorreu em 2021.
Uma pessoa enviou uma mensagem com os endereços das casas onde ele já havia morado com sua mãe, ameaçando Rosa de morte. A família a tirou do país. À época, o pedido de investigação foi negado pelo mesmo delegado.
Hoje, Felipe não sai de casa sem um forte esquema de segurança. "Depender disso é muito triste. Não há movimento meu que não seja mapeado."
Quando vai a um restaurante ou ao cinema, confessa que olha as pessoas desconfiado. Todo dia, enfrenta ameaças de agressões nas redes sociais.
Na rua, entretanto, o que sente na pele é carinho — exceto quando um dos parças de Neymar tentou agredi-lo no jogo do PSG em Paris.
Mesmo assim, ostenta uma camiseta que foi usada pelo atacante em sua sala: "Ele me deu nos 5 minutos em que gostou de mim", debocha.
Felipe até pensa em desistir dessa luta. Mas permanece.
Não quero soar arrogante, mas posso muito bem pegar meu dinheiro e ir para outro país, viver uma vida maravilhosa. Só não consigo deixar para trás a minha consciência. Toda vez que eu tenho conflitos grandes com a minha consciência, acabo perdendo para ela. Foi o caso com as bets. Felipe Neto
Sem medo de mudar de ideia
Felipe Neto se refere à publicidade que fez em 2023 para uma casa de apostas. Rompeu o contrato após nove meses, quando percebeu o equívoco.
Decidiu então reverter o quadro: lançou uma campanha com o Instituto Conhecimento Liberta, do qual é sócio, para alertar sobre os perigos do vício.
A resposta? Mais ódio em reação violenta dos haters.
Parece que não tenho direito a mudar de opinião. Mesmo quando você faz o certo, é apedrejado por pessoas que só querem te ver arruinado. Isso é uma consequência dos últimos cinco, seis anos. Não tenho a menor dúvida disso
Então, responde à pergunta: "Se fico cansado? O tempo todo".
Mas o que seria justiça a partir de tudo o que viveu nos últimos anos?
Felipe se reclina na poltrona para afirmar que é difícil separar a justiça do desejo de vingança quando é você ou alguém a quem se ama o injustiçado.
E lista possibilidades. Bolsonaro deve ser preso pelo que cometeu contra os brasileiros. "Quero que morra? Não. Quero que passe a vida na cadeia? Não. Quero só que pague pelo que fez".
Cita também Pablo Marçal, candidato à Prefeitura de São Paulo. "Se as coisas forem justas, ele terá um destino da vida pública arruinado, porque é uma figura nefasta e perigosa."
Imaginar o perdão ao delegado que o investigou também é confuso.
"Preciso sentir que a pessoa se arrependeu e quer corrigir seus erros. Eu só não imagino isso acontecendo, não", dá um sorriso irônico.
Justiça, para ele, seria o dia em que quem propaga o discurso de ódio, principalmente de maneira intencional, responder criminalmente por isso.
Felipe diz que não se resiste ao fascismo dando beijo, abraço, pedindo pra conversar. Tem pessoas com quem a gente conversa; e aqueles que a gente enfrenta, diz.
Futebol é o ponto fraco
A tática para deixar o ódio de lado é se afastar da internet.
Depois, responde racionalizando. Foi o que fez quando, em meio às ameaças de morte à sua mãe, Carlos Bolsonaro fez um tuíte mencionando dona Rosa ironicamente.
"O cara debochou da minha mãe. Queria me desestabilizar para eu voltar a ser aquele do passado. E minha vontade era mesmo xingar e falar palavrões. Mas segurei".
Todo o preparo cai por terra quando o Botafogo entra em campo.
Futebol é minha kriptonita. Aí perco a linha. Eu diria que, nos últimos anos, consegui conter o ódio o máximo possível. Mas não no futebol. Com outros assuntos, eu consigo. Felipe Neto fechando a cara para dizer.
Consegue ainda ver jogos no estádio, do camarote. Dias desses, soube que um torcedor de seu time foi ao jogo usando camiseta com dizeres de ódio a Felipe Neto.
"Os bolsonaristas me dão mais importância do que deveriam".
A literatura como salvação
Durante a pandemia, Felipe passou a ser tratado pela mídia como gente grande.
Foi entrevistado pelo Roda Viva, na TV Cultura. Gravou um vídeo a convite do "The New York Times" explicando por que Bolsonaro conduzia a pandemia pior que Trump.
Foi convidado para abrir um evento da Unesco ao lado de diretores da ONU e ganhadores do Nobel da Paz.
"Tenho uma capacidade grande de fingir que eu não estou nervoso", afirma, quando conta que as pernas tremeram ao entrar no palco. Mas o microfone na mão é o campo dele. "Fiz as pessoas rirem e fiquei à vontade".
As pelúcias de Harry Potter espalhadas na sala tem um significado mais profundo. O livro que ganhou do pai aos 11 anos mudou a vida do menino. "Eu nunca mais larguei os livros."
Hoje, o projeto que mais lhe toma tempo é o Clube do Livro FN. Ali, incentiva os fãs a tomarem gosto pela leitura, com indicações, discussões e aulas.
Foi a leitura que o ajudou a parar de odiar a esquerda. Em seu livro, cita Eduardo Bueno, Foucault e Dostoiévski, entre outros, como autores que o fizeram pensar.
Meu grande sonho é que meu livro seja lido por pessoas de direita. Tem muita gente que votou no Bolsonaro, ou que vai votar no Pablo Marçal, mas não é bolsonarista. O Brasil não tem 60 milhões de bolsonaristas. São essas pessoas com quem quero falar. Quero que deem uma chance ao livro.
Felipe sabe que a extrema direita é acolhedora. Mas tem esperança ao receber o principal feedback do Clube do Livro FN — gente que, sob seu incentivo, pela primeira vez na vida leu um livro inteiro.
"Estou tentando fazer a minha parte. Eu acredito muito nesse poder revolucionário da literatura que faz a gente ter a capacidade de enxergar o mundo e ter empatia"
Só em 2024, até o início de setembro, ele havia lido 31 livros. O método é simples: parar de usar o celular mais cedo. Se inflama para falar do vício em telas e da necessidade de regulamentação da internet.
"A timeline de vídeos curtos infinita é uma droga pesadíssima. É nociva à humanidade porque tira nosso poder de decisão sobre o que assistir. A gente se torna refém da plataforma", explica.
"É a literatura que nos traz o encantamento pelo outro, dá recursos o suficiente para nós não sermos controlados por discursos fáceis. Eu espero que outros clubes surjam, porque sozinho não vou mudar o Brasil."
Outra iniciativa é o Instituto Vero, organização que desenvolve projetos de educação midiática, além de atuar no combate à desinformação.
'Silêncio é covardia'
Felipe afirma que não busca validação ou amizade com influenciadores que ficaram em cima do muro quando o Brasil estava afundando.
Aos que se calaram em 2018, mas foram incisivos em 2022, ele dá um voto de confiança.
"Não consigo aceitar muito, mas consigo entender Bianca Andrade e Anitta, por exemplo".
O silêncio de Whindersson Nunes, para ele, é covardia.
É para ficar registrado para sempre. Quando você adquire uma determinada posição na sociedade, carrega consigo responsabilidades. O enfrentamento a uma possível ditadura é uma delas.
Afirma que não tem interesse em coabitar o mundo com quem viu o que estava acontecendo e decidiu se calar para ganhar mais dinheiro. "Nunca terão minha amizade."
No meio tempo, abre a caixa de directs e vê mais ódio. "É muito triste falar isso, mas eu não lembro mais como era antes".
"O que mais me desgasta é que não dei razão. Acham que sou pedófilo, satanista e quero o fim da família. Não sou nada disso. É uma sensação de injustiça", declara.
Apesar das acusações da internet, Felipe não se diz ateu. Diz acreditar em algo mais próximo ao Deus de Espinosa.
A resposta para a humanidade, entretanto, não estaria em qualquer religião.
O tio que o incentivou a odiar o PT hoje vive em Portugal. "A gente não se fala, mas vou amar meu tio para sempre. Para mim, meu tio também é uma vítima."
Diferentemente de 15 anos atrás, quando gritava o que não fazia sentido na internet, briga pelo que faz sentido: leitura, combate ao ódio e à desinformação, saúde mental.
E afirma que não há herói: "Lula não é a figura que eu considero genial, brilhante, maravilhosa, perfeita, não. Ele é cheio de defeitos. Mas o idolatro como comunicador".
Paixão, faculdade e ócio
E ainda deu para se apaixonar. "Estava fechado para isso, deixei claro para Juliane que não queria nada sério, mas me envolvi".
Ele nem pensa em ter filhos agora, afirmando convicto que tem tempo ainda para ser pai.
Sem diploma de ensino superior, está cursando história e estudando para provas que devem começar em setembro.
No primeiro semestre, sorri para dizer que é um calouro e está se sentindo jovem.
Para equilibrar o tsunami de negócios, livros e planos, se dá o direito ao ócio. Para e observa, sem fazer nada, dando disponibilidade ao cérebro para novas conexões e ideias.
Mas isso também é trabalhar, não é?
Não. É descanso. Não é olhar no celular. É ver o que está acontecendo nesse minuto. Tem o reflexo da minha piscina ali na janela. Está ventando, aliás. Está ventando à beça por sinal, né?
Está mesmo.
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