ONGs compram ilegalmente anestésico usado como droga com verba de emendas
Duas ONGs estão usando recursos de emendas parlamentares para comprar cetamina de forma ilegal no Rio de Janeiro.
O comércio do anestésico veterinário — também usado para tratamentos de dor crônica e depressão em humanos — possui controle rígido porque a cetamina pode ser transformada em droga recreativa com risco de morte.
A droga esteve associada a dois casos recentes com ampla repercussão na mídia.
No Brasil, a polícia investiga se a ex-sinhazinha do Boi Garantido Djidja Cardoso morreu vítima de overdose, em maio. Nos EUA, a droga foi responsável pela morte do ator Matthew Perry, da série "Friends", em 2023.
Os projetos de castração de animais domésticos tocados pelas ONGs, em parceria com a Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), são financiados por emendas da bancada fluminense no Congresso e do deputado federal Pedro Paulo (PSD-RJ) — braço direito do prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD).
As ONGs ICA (Instituto Carioca de Atividades) e Con-tato contrataram empresas que não têm autorização do Ministério da Agricultura para fornecer o anestésico.
Segundo a pasta, as firmas estão sujeitas a multa e interdição, além de possível encaminhamento do caso ao Ministério Público.
Série de reportagens do UOL mostrou que essas ONGs integram uma rede suspeita que recebeu quase meio bilhão de reais em emendas parlamentares nos últimos três anos.
As ONGs não são especializadas na causa animal e têm como foco principal projetos de aulas de esporte e qualificação profissional.
As empresas Vizimed Equipamentos Hospitalares e AP Santos Serviços e Representações afirmaram, em nota, que venderam a cetamina às ONGs de forma regular.
Elas dizem atuar como representantes comerciais de outras empresas, mas não revelam que firmas são essas.
A Unirio afirmou que questionará as ONGs para que "certifiquem a regularidade das empresas para a venda do medicamento controlado".
Pedro Paulo disse, por meio de sua assessoria de imprensa, que não possui responsabilidade sobre a fiscalização das compras, mas que irá enviar ofício para que a Unirio averigue os casos (veja a íntegra do que dizem os citados).
A ONG Con-tato negou qualquer irregularidade. Procurado, o ICA não se manifestou.
Indícios de superfaturamento
O caso mais grave envolve o projeto Animais e Cia, financiado por uma emenda de bancada assumida na prática por Pedro Paulo, no valor total de R$ 5 milhões.
O projeto da ONG ICA foi lançado em abril, com previsão de duração de 11 meses.
Um contrato com a empresa Vizimed para fornecimento de insumos para castração consome mais de um terço (R$ 1,8 milhão) do total de recursos do projeto.
Desse valor, R$ 172 mil são para a compra de 500 frascos de 50 ml de cetamina. Até o início deste mês, 400 já tinham sido pagos, no valor total de R$ 138 mil.
Especialistas ouvidos pelo UOL estimam que a quantidade de cetamina comprada seria suficiente para castrar 12,5 mil cães fêmeas de 10 kg ou até 50 mil de 5 kg.
O uso de cetamina para castração de cães machos é menor.
A Unirio informou, contudo, que, nos quatro primeiros meses do projeto, foram castrados 2.636 animais. Projeção média aponta para a realização de 7.250 cirurgias para os 11 meses do projeto.
Soro para 60 mil animais
O mesmo contrato para fornecimento de insumos da Vizimed tem como item de maior valor a compra de 60 mil bolsas de 500 ml de soro, a R$ 9,19 cada (total de R$ 551 mil).
Até o início deste mês, o ICA já havia pago 48 mil bolsas de soro (R$ 441 mil).
A quantidade prevista em contrato é suficiente para castrar 60 mil animais — cada bolsa serve para uma cirurgia de castração, segundo veterinários ouvidos pelo UOL.
Caso a projeção de 7.250 cirurgias se confirme, o ICA terá comprado mais de 50 mil bolsas de soro além do necessário — desperdício de dinheiro público que ultrapassa R$ 480 mil.
O plano de trabalho enviado pela ONG à Unirio não tinha qualquer estimativa de quantos animais seriam castrados ao longo do projeto.
O valor unitário do soro também aponta indícios de superfaturamento.
A média obtida pelo UOL com três fornecedores foi de R$ 6 por quantidades semelhantes às vendidas pela Vizimed.
No site do governo federal, que apresenta um panorama de preços de compras públicas no país, a média em 52 contratos é de R$ 5,77 este ano.
Sede de empresa é sala vazia
Outras suspeitas sobre o contrato do ICA com a Vizimed:
Criada em dezembro de 2013, a empresa emitiu só agora as notas fiscais de números 4 e 5, indicando que praticamente não teria realizado vendas até então;
As outras duas empresas que participaram da pesquisa de preços feita pelo ICA são pequenas farmácias no bairro de Jacarepaguá, zona oeste do Rio (uma delas dentro de uma comunidade);
A sede da Vizimed registrada na Receita Federal é uma sala vazia em um prédio comercial de Jacarepaguá que não é ocupada pela empresa há ao menos cinco anos.
Ligação com ex-chefe de gabinete de Pedro Paulo
Um dos donos da Vizimed, Marcos Paulo Ferreira Carvalho Dias, é sócio desde 2006 em outra empresa, a Brazilian Players Assessoria Esportiva, de Fernando de Menezes Duba.
Duba tem ligações próximas ao deputado Pedro Paulo.
Ele é chefe de gabinete do conselheiro do TCM-RJ (Tribunal de Contas do Município do Rio) David Carlos — indicado para o cargo pelo prefeito Eduardo Paes.
Duba também já foi chefe de gabinete de Pedro Paulo tanto no Congresso quanto em sua passagem pela Secretaria Municipal de Fazenda do Rio, em 2021.
Por email, Duba afirmou que a Brazilian Players nunca saiu do papel.
"Nunca tive qualquer interferência nas escolhas das emendas do deputado Pedro Paulo e principalmente na contratação dessa empresa Vizimed", completou.
Marcos Dias, assim como Duba, afirmou que a Brazilian Players nunca saiu do papel.
Segundo ele, a Vizimed é fornecedora de "diversas empresas sempre com o rigor necessário quanto ao registro e controle dos medicamentos".
A empresa ainda possui como sócia Fernanda Natal, esposa de Marcos Dias.
Ela foi assessora da Casa Civil em 2016, último ano da segunda gestão Paes. Entre 2017 e 2021, ficou lotada no gabinete do ex-vereador Ítalo Ciba — ele morreu em julho e era bem próximo de Pedro Paulo.
Empresa fornece bufê e medicamentos
Além do projeto Animais e Cia, o deputado Pedro Paulo financia outro projeto de castração de animais em andamento, com uma emenda de R$ 1,6 milhão: o Ação Cidadã.
Também neste caso, uma empresa sem autorização do Ministério da Agricultura foi contratada pela ONG ICA para o fornecimento de 160 frascos de cetamina: a AP Santos Serviços e Representações.
O contrato — que prevê uma série de outros insumos — já foi todo pago: R$ 482 mil.
A AP Santos tem como atividade principal na Receita Federal os serviços de eventos e bufê.
A dona, Ana Paula dos Santos, é esposa de Acir Costa de Miranda, sócio da Produmix Brasil Produções e Eventos — uma das firmas que mais assinaram contratos com ONGs nos últimos três anos (R$ 12,6 milhões).
No caso da AP Santos, há indícios de superfaturamento de cetamina vendida para outro projeto, o Estima+Ação, financiado por uma emenda de R$ 2,8 milhões, da bancada do RJ no Congresso.
Para o Estima+Ação, foram comprados 300 frascos, quase o dobro da quantidade do Ação Cidadã, mas a ONG Con-tato pagou à empresa R$ 245,50 por cada um — 85% a mais do que os R$ 132,50 do Ação Cidadã.
Os valores foram oferecidos pela mesma empresa em um intervalo de menos de dez dias.
A ONG Con-tato e a AP Santos alegaram que "o preço de medicação é regulamentado pelo mercado".
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