Lula dobra taxa, e entidade próxima a Janja é beneficiada no G20
Um decreto de março deste ano do presidente Lula (PT) dobrou o limite do valor que pode ser pago como taxa de administração a organismos internacionais em contratos com o governo.
Cerca de seis meses após a mudança, a OEI, entidade próxima à primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, teve a chance de se beneficiar da nova regra.
A entidade e o governo brasileiro assinaram em setembro um contrato visando aos eventos do G20.
A OEI (Organização dos Estados Ibero-Americanos para Educação, a Ciência e a Cultura) executou esse projeto em novembro, quando o G20 se reuniu no Rio de Janeiro para a sua cúpula anual.
Um dos eventos produzidos pela OEI foi um festival de música no Rio que ficou conhecido como "Janjapalooza" - a referência ao festival Lollapalooza irritou a primeira-dama.
O decreto também ampliou o leque de serviços que podem ser prestados por esse tipo de organização.
Essa flexibilização vai na contramão do que já julgou o TCU (Tribunal de Contas da União).
Além do Janjapalloza, festival cujo nome oficial é Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, a OEI organizou dentro do G20 o evento Cúpula Social.
O UOL apurou que, para realizar o festival, a entidade contratou a agência Terruá, que tem entre seus clientes o Banco do Brasil.
O gasto e a taxa de administração cobrada ainda não foram informados pelo governo federal ou pela OEI.
O Ministério da Cultura informou à Folha de S.Paulo que o cachê de cada artista contratado seria de R$ 30 mil - o total estimado seria então de R$ 870 mil.
A estatal Itaipu Binacional e a Prefeitura do Rio de Janeiro também contribuíram com patrocínio de R$ 15 milhões cada -ao todo, cinco estatais patrocinaram os eventos.
A OEI recebeu R$ 146 milhões apenas no atual governo Lula. A maior parte do valor foi para parcerias com o Ministério da Educação (R$ 53 milhões).
Na contramão de tribunais de contas
O decreto publicado em março derrubou o teto de 5% de taxa para projetos com organismos internacionais.
Esse teto havia sido imposto pelo próprio Lula em 2004, durante o seu primeiro mandato.
Agora, a taxa passou a ser de até 10% dos recursos repassados pela União especificamente para o G20, a COP30 (Conferência da Organização das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas) e a Cúpula dos Brics.
O UOL apurou que a taxa recai sobre os custos do contrato.
Tribunais de contas têm ressalvas sobre a cobrança de taxa de administração em contratos públicos, uma vez que os custos podem ser superestimados para aumentar também o valor dessa remuneração.
O decreto de Lula ainda abriu a possibilidade de repasses para entidades como a OEI para eventos de natureza comum, como o Festival Aliança Global, que poderiam ser contratados diretamente pelo governo.
Pela regra anterior, os acordos de cooperação com organismos internacionais se limitavam à assessoria técnica ou à transferência de conhecimentos.
Essa mudança vai na contramão de jurisprudência do TCU.
Em 2010, um acórdão do tribunal de contas relatado pelo ministro Augusto Nardes considerou irregulares acordos com organizações internacionais para a realização de serviços de natureza comum que poderiam ser contratados pelo governo brasileiro.
O UOL procurou a assessoria de imprensa da Presidência da República, que encaminhou a demanda para o Ministério da Cultura. Não houve resposta.
Janja foi procurada por meio de sua assessoria de imprensa para comentar a relação com a OEI, mas não houve retorno.
A OEI também foi procurada por email e WhatsApp de sua assessoria de imprensa, mas não se pronunciou.
A agência Terruá não respondeu às perguntas da reportagem e pediu que a assessoria de imprensa da OEI fosse procurada.
Relação com Janja
Criada em 1949, a OEI começou a atuar no Brasil em 2004, durante a primeira gestão de Lula.
A OEI se define como "a maior organização multilateral de cooperação entre os países ibero-americanos de língua espanhola e portuguesa".
Atualmente, a organização conta com 23 países membros e tem sede em Madri, na Espanha. Em 2013, a entidade abriu seu escritório no Brasil.
A OEI afirma trabalhar no fortalecimento de políticas públicas de educação, ciência e cultura.
A entidade é financiada por uma cota fixa dos países membros, além dos recursos repassados para os projetos que realiza nos países.
Em abril do ano passado, a primeira-dama esteve em Madri com o secretário-geral da organização, Mariano Jabonero.
Ele apresentou Janja como coordenadora da Rede Ibero-Americana para a Inclusão e a Igualdade, cuja implementação seria realizada pelo escritório brasileiro da entidade.
Em novembro do mesmo ano, Janja recebeu o então diretor da OEI no Brasil, Leonardo Barchini, para discutir o processo de implementação dessa rede.
Atualmente Barchini é secretário-executivo do Ministério da Educação.
Conforme revelou o UOL, a primeira-dama abandonou a ideia de ter uma função na organização em meio a questionamentos da CGU (Controladoria-Geral da União).
O órgão viu um potencial conflito de interesses pela possibilidade de essa relação influenciar decisões em qualquer ministério.
Durante o G20, Janja demonstrou novamente proximidade com a OEI.
Ela entregou a Jabonero uma cartilha sobre empoderamento das mulheres - trabalho coordenado pelo governo. A entrega foi registrada pela OEI em suas redes sociais e site.
A organização também destacou em seu site que, pela primeira vez, participou da Cúpula de Líderes do G20, "convidada diretamente pelo anfitrião do evento", o presidente Lula.
Gastos sem transparência
No dia 6 de novembro, o Ministério da Cultura publicou em Diário Oficial um resumo do acordo com a OEI, assinado quase dois meses antes, em 13 de setembro.
Não há nenhuma referência a valor. Também não foi divulgado o número do processo administrativo referente ao acordo.
Em 3 de outubro, o BNDES publicou em Diário Oficial um resumo de um acordo de cooperação internacional com a OEI para a realização de eventos do G20, que envolveu ainda a Caixa Econômica Federal, o Banco do Brasil e a Petrobras.
Novamente, não houve divulgação de valores. Em nota, a assessoria de imprensa do banco também não respondeu sobre o assunto.
"Todos os gastos com recursos do BNDES serão auditados por empresa independente (...). Seguindo o princípio da transparência, todas as informações sobre o acordo serão disponibilizadas tão logo a prestação de contas seja concluída", informou a nota.
Pelo decreto de Lula, os acordos com organizações internacionais para a realização de eventos do G20 teriam de ter "descrição clara e precisa do objeto" e "detalhamento dos recursos financeiros previstos".
Taxa de administração
O UOL obteve, via LAI (Lei de Acesso à Informação), um processo administrativo envolvendo outro acordo entre o Ministério da Cultura e a OEI.
O documento fala sobre a realização de eventos paralelos do G20 no Rio e em Salvador e traz informações sobre como funciona a parceria com a organização internacional.
O contrato, assinado em julho, tinha orçamento de R$ 3,1 milhões para custos como logística, contratações de empresas e pessoas físicas no Brasil.
A esse valor, foi acrescida uma taxa de administração de 8% (R$ 248 mil). O custo total ficou em R$ 3,3 milhões.
A taxa de administração é descrita como "ressarcimento dos custos da cooperação prestada, principalmente às ações gerenciais e administrativas que resultam na viabilidade e relevância do projeto".
A OEI solicitou um aditivo de R$ 1,3 milhão - o que elevaria a taxa para R$ 350 mil -, mas até este mês o pedido estava em trâmite no ministério, pois a área jurídica solicitou detalhamento dos novos gastos.
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