Opus Dei e poliglota: quem é a 'diplomata' conservadora na Prefeitura de SP
Ler resumo da notícia
A voz baixa e o gestual discreto de Angela Gandra, 64, contrastam com a energia empenhada para construir alianças pelas causas conservadoras.
A filha do jurista Ives Gandra e sobrinha do pianista João Carlos Martins exerce uma forte influência política em defesa das bandeiras da extrema direita.
Com essas credenciais, foi convidada no final de 2024 para ocupar a Secretaria de Relações Internacionais da Prefeitura de São Paulo, cargo que exerce desde 1º de janeiro.
O posicionamento enfático de Angela contra a descriminalização do aborto no STF (Supremo Tribunal Federal), em 2018, a colocou sob os holofotes.
Sua performance na corte, representando a Ujucasp (União dos Juristas Católicos de São Paulo), chamou a atenção de políticos e instituições da direita, abrindo caminho para o convite que a colocou no governo de Jair Bolsonaro (PL).
Ives Gandra consta como um dos fundadores da Ujucasp.
O nome de Angela chegou aos ouvidos do prefeito Ricardo Nunes (MDB) pela vereadora Zoe Martinez (PL), no final do ano.
Segundo Zoe, a habilidade com os idiomas e as boas conexões internacionais levaram à defesa da jurista para o cargo.
Angela encara o novo ofício como mais uma missão inerente à sua formação religiosa. "Não tem mais retorno porque o bem comum é algo muito forte para mim", disse ela ao UOL.
A jurista diz que seu trabalho em São Paulo é técnico. "Farei o que me cabe, mas nunca serei omissa em relação a meus valores", afirma ela, que exibe no pulso a tatuagem "Jily" [Jesus, I love you].

Integrante do Opus Dei
Celibatária desde os 17 anos, Angela é descrita por amigos como uma mulher erudita e debruçada nos livros, o que a faz dominar sete idiomas e estudar o oitavo, o coreano.
Antes de entrar na universidade, decidiu fazer parte do Opus Dei, organização católica criada na Europa e conhecida por posições ultraconservadoras, como a defesa de sexo apenas para reprodução.
A indicação para o cargo de secretária, porém, não foi recebida com entusiasmo pelo primeiro escalão da prefeitura.
Aliados de Nunes e lideranças do centrão manifestaram receio com a presença de uma articuladora da extrema direita.
Para Zoe, "muita gente mordeu a língua" nas críticas, dada a bagagem cultural e a eloquência de Angela para defender seus pontos de vista.
Aliados esperam que Angela continue trabalhando por projetos conservadores, mas agora no âmbito municipal. Uma das prioridades à frente da pasta, conta a secretária, é ampliar o projeto cidades-irmãs.
No programa, São Paulo formaliza parcerias com cidades de diferentes lugares do mundo para "estreitar laços diplomáticos e promover intercâmbios culturais, econômicos e sociais".
Questionada, a secretaria não revelou nem os municípios nem quais os critérios para escolhê-las como parceiros.
Nos dois primeiros meses como secretária em São Paulo, Angela se reuniu com representantes de países como Coreia do Sul, Espanha, França, Hungria, Portugal e Polônia.

Aliança internacional conservadora
No âmbito internacional, uma de suas atuações mais contundentes foi no Consenso de Genebra, criado nos EUA durante o primeiro governo Trump. A aliança é formada por 36 países com objetivo de derrubar o direito ao aborto no mundo.
Entre os signatários estão países denunciados por violações aos direitos das mulheres, como Arábia Saudita, Egito e Iraque.
Angela ficou à frente do grupo que entendia que os direitos humanos das mulheres consistiam, na verdade, em resguardar a continuidade da gestação em qualquer situação, até em casos de estupro.
O direito ao aborto é garantido pelo Código Penal desde 1940 em três situações: em casos de estupro, quando a gravidez representa risco à vida da mulher e se o feto tiver anencefalia.
A entrada do Brasil no Consenso foi formalizada pelo ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, em 2020. Um ano depois, o país assumiu a liderança do grupo, sob o comando de Angela.
As funções desempenhadas por ela iam da redação de textos e documentos a reuniões bilaterais para incentivar a entrada de mais países ao grupo.
Com o início do governo Lula, o país deixou o acordo por entender que ele tinha um "entendimento limitado dos direitos sexuais, reprodutivos e do conceito de família".

Missa diária ao lado do pai, seu mentor
Na figura do pai, Angela tem uma espécie de mentor. Todos os dias, às 8h, vai à missa na Paróquia Nossa Senhora do Brasil, nos Jardins, ao seu lado. O jurista se tornou referência para apoiadores de Bolsonaro pela interpretação que deu ao artigo 142.
O trecho da Constituição foi usado como argumento jurídico do suposto plano de golpe em 2022. Ele nega ter defendido qualquer ação golpista.
Escolhida em 2018 para ser a número 2 do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Angela ficou à frente da inédita Secretaria Nacional da Família.
Com a saída de Araújo do comando do Itamaraty, foi incumbida de costurar alianças com a ultradireita pelo mundo de forma extraoficial. Nesse período, passou a ser conhecida nos bastidores como "chanceler sombra".
"Angela construiu as principais relações internacionais no governo Bolsonaro", diz a deputada Carla Zambelli (PL), que considera a jurista "uma irmã".
Em quatro anos, a então secretária participou de ao menos 38 agendas com organismos internacionais ultraconservadores e autoridades de extrema direita.
As informações constam em documento elaborado por entidades da sociedade civil e entregue em 2022 ao grupo de transição de política externa do governo Lula.

Em 2021, visitou a Espanha para participar do Encontro Nacional de Políticos Católicos, e a Ucrânia, para a Prayer Breakfast, que reúne políticos e movimentos ultraconservadores cristãos.
No mesmo ano, viajou à Polônia para a Conferência de Defesa dos Direitos da Mulher, com os custos da viagem pagos pela Ordo Iuris, organização católica ultraconservadora vinculada à rede TFP (Tradição, Família e Propriedade).
Meses depois, a então presidente da Hungria e amiga de Angela, Katalin Novak, esteve no Brasil, na Academia Paulista de Letras, para participar de uma palestra com Ives Gandra e o ex-presidente Michel Temer (MDB).
Katalin defendeu no evento a legislação húngara que declara que toda vida deve ser protegida desde a concepção.
Ela também reiterou apoio à Constituição do seu país, que proíbe o casamento LGBTQIA+ e define a formação da família como a mãe representada pela mulher e o pai pelo homem.
No Brasil, a agenda "pró-vida" defendida por Angela se deu a partir de programas como o Mães Unidas, lançado em maio de 2020, em que mães voluntárias eram capacitadas para fortalecer "vínculos familiares" e "orientar" mulheres grávidas.
Na prática, funcionou como um serviço para desestimular mulheres a interromper a gravidez.

Clube do vinho com Michelle Bolsonaro
Antes de representar a União dos Juristas Católicos de São Paulo contra a descriminalização do aborto no STF, Angela mergulhou em um mestrado na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) para tentar encontrar um "fundamento que não fosse religioso para defender os estudos no direito natural".
Seria o respaldo jurídico para explicar dogmas religiosos.
Depois, passou três anos nos EUA até voltar ao Brasil em 2016. "Meu irmão falou: 'Tu é uma covarde. Seu país está precisando de ti'", lembra a jurista.
Na ocasião, a direita discutia o processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff (PT), processo de que seu pai participou ao assinar um dos primeiros pareceres jurídicos.
A guinada conservadora vivida no país fortaleceu a mobilização pró-vida defendida pela jurista. Mesmo assim, parte da oposição diz conhecer superficialmente a trajetória da secretária.
Na ala conservadora, os reconhecimentos são prontamente creditados a ela.
"Muitas das políticas apresentadas pela [então ministra] Damares Alves sobre a família eram da Angela, mas como ela é uma pessoa que não faz questão de aparecer, não se falava dela", relata Zambelli.
Outra versão que circula é de que o trabalho de Angela foi ofuscado pela chefe. A reportagem pediu uma entrevista com a ex-ministra e atual senadora, mas ela não aceitou.

'Sou a favor da liberdade'
Angela começou a exercer a fé inspirada na mãe, Ruth Vidal da Silva Martins —ela morreu em 2021 após complicações causadas pela covid.
O marco religioso ocorreu em 1978 em uma viagem para Roma, quando conheceu o Opus Dei. Na ocasião, se reuniu com 5.000 jovens de todo o mundo.
"Pensei naquele momento: dá para zoar e rezar ao mesmo tempo", diz. Antes da experiência, a jurista conta que se questionava se era "possível ser católica e aproveitar a vida".
A identificação com a filosofia da organização veio instantaneamente. Segundo ela, amar o mundo, ser feliz na Terra, manter uma hora de estudos e outra de oração foram os pilares que a atraíram.
Angela tenta afastar concepções negativas da Obra —como se refere ao Opus Dei. A instituição é alvo de críticas após ex-integrantes terem relatado restrições extremas, autoflagelação e humilhação.
Angela diz não ter nascido para o casamento. "Nunca senti vocação para ter marido e ficar dentro de casa, queria ter independência", afirma.
Segunda mais velha entre seis irmãos —um deles, Ives Gandra Filho, é ministro no Tribunal Superior do Trabalho—, Angela cresceu cercada pelo conforto da casa de praia, na ilha Porchat, litoral de São Paulo, e da fazenda em Avaré, no interior paulista.
"Meu pai queria que tivéssemos contato com a natureza. Andava a cavalo, gostava de ir com os colonos aprender a colher café, tirar leite", lembra.
A habilidade com os idiomas veio da prática em família. Aprendeu francês, inglês e espanhol com os pais. No colégio, o alemão. Aos 14, em uma viagem pela Europa, o italiano.
"Para ver como eu era nerd. Preferia isso a ir à Disneylândia", comenta. Por fim, o latim a fez aprofundar os estudos do direito.
Hoje, Angela dedica parte das horas livres para estudar coreano e assistir com o pai a k-dramas, novelas produzidas na Coreia do Sul que têm conquistado um público conservador por retratar o amor romântico e as relações heteronormativas.
"São um Netflix melhorado, porque são sobre família e justiça social, e não sobre sexo biológico."
A jurista aprecia um bom vinho, normalmente escolhido pelo pai. "Beber com amigos é a melhor coisa que se pode ter ao fim de um dia", afirma.

Zambelli diz que ela, Angela e a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro (PL) formavam um "clube do vinho".
Zambelli conheceu Angela nas reuniões católicas promovidas por Ruth. Para a deputada, a jurista é "ótima para dar conselhos".
Quando apontou a arma no meio da rua para um homem negro, em 2022, às vésperas do segundo turno das eleições, ouviu críticas da amiga.
"Juridicamente, você não cometeu nenhum excesso, mas tem que se preparar para as batalhas que vai enfrentar'", teria dito Angela à deputada.
Em 2022, o nome de Angela chegou a ser defendido por políticos de direita para vice de Tarcísio de Freitas (Republicanos), mas a ideia não foi para frente. A jurista representava a escolha conservadora, e o bolsonarismo paulista precisava dos votos do centro para vencer.
De lá pra cá, a jurista expandiu relações, aumentou a credibilidade no campo da direita, entre evangélicos e católicos, e fortaleceu seu nome dentro e fora do país.
Com isso, aliados já vislumbram um cargo eletivo —nunca antes ocupado por alguém da família.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.