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Famílias acusam Polícia Militar do Paraná de execuções

Familiares de pessoas mortas em supostos confrontos com a Polícia Militar do Paraná acusam os agentes do estado de execução —ou seja, de matar pessoas intencionalmente, sem julgamento nem devido processo legal.

Segundo eles, há uma pena de morte estabelecida pela PM paranaense, uma das que mais mata no país nos últimos anos.

Em entrevista ao UOL, as famílias apontam perícias superficiais e contradições nas investigações —o que é negado pela Secretaria de Segurança.

As acusações são reforçadas pela análise de três peritos que, a convite da reportagem, examinaram 22 laudos de crimes ocorridos entre 2018 e 2023.

Entre as falhas citadas está a ausência de exames completos, como testes residuográficos, que detectam vestígios de pólvora nas mãos.

Em muitos casos, o exame não foi realizado por omissão dos delegados ou porque os corpos foram lavados, o que compromete a coleta de provas.

Também há relatos de incineração das roupas das vítimas e de impedimento do reconhecimento presencial.

A legítima defesa alegada por policiais é contestada em grande parte dos casos por inconsistências nos depoimentos, excesso de tiros e disparos em regiões vitais.

A maioria dos inquéritos se arrasta há mais de três anos.

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A PM do Paraná está há quase uma década entre as seis mais letais do país em números absolutos, com média anual de 332 mortes cometidas entre 2015 e 2023, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

De 2019 a 2022, primeiro mandato do governador Ratinho Jr. (PSD), esse índice cresceu, em média, 64 casos por ano.

O pico foi em 2022, com 479 mortes. No ano seguinte, foram 341 registros.

Procurada pelo UOL, a Secretaria de Segurança do Paraná afirmou, em nota, que as polícias seguem protocolos rígidos para o uso da força, que armas de fogo são o último recurso e que não tolera desvio de conduta.

Ainda segundo a nota, as demandas sobre a PM são analisadas pela Corregedoria-Geral da corporação.

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O governo justifica que o IML (Instituto Médico Legal) adota novas tecnologias para identificação de corpos e que as roupas das vítimas são descartadas por razões sanitárias.

Sobre exames residuográficos, a administração alega que o método é pouco confiável para comprovar a presença de pólvora.

A reportagem solicitou ao MP-PR (Ministério Público do Paraná), via Lei de Acesso à Informação, dados sobre denúncias em casos de letalidade policial. O órgão afirmou não ter essas informações.

Suzete dos Santos, mãe de Rhuan, morto em 2018
Suzete dos Santos, mãe de Rhuan, morto em 2018 Imagem: Thiago Domingues/UOL

Fragilidade nas perícias

Os peritos que analisaram os laudos a pedido do UOL dizem que os documentos são genéricos e pouco detalhados.

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Segundo eles, as perícias não esclarecem a dinâmica dos confrontos, e as necropsias trazem descrições vagas, com poucas imagens.

Um perito destaca "excesso de tiros", enquanto outro menciona sobrecarga dos profissionais.

Um estudo do médico legista Railton Bezerra de Melo, professor de Medicina da UPE (Universidade de Pernambuco), aponta que, em 68% dos 22 casos, as pessoas mortas levaram três ou mais tiros.

Em dois deles, foram mais de dez perfurações. O tronco foi a região mais atingida (82%).

"[Tiro no tronco] Sugere que não houve intenção de contenção das vítimas, já que, geralmente, ferimentos nos membros inferiores são usados para impedir a movimentação de uma pessoa em confronto", explica o especialista, ex-presidente da Associação Brasileira de Medicina Legal e membro da Academia Nacional de Medicina Legal.

O exame residuográfico foi realizado em apenas um dos 22 casos.

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Já o exame de local de crime ocorreu em apenas três. Nesses registros, constatou-se que as armas das vítimas não foram acionadas e que os projéteis encontrados "não estavam deflagrados, fragilizando ainda mais a hipótese de confronto", afirma o médico.

A análise indica descrições genéricas das lesões, sem informações detalhadas sobre dimensões e características dos ferimentos.

"A perícia falhou nesse aspecto, o que prejudica a reconstituição precisa dos eventos", avalia Bezerra de Melo.

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Redes de apoio

Em seis anos, Suzete dos Santos, 49, já acompanhou mais de cem casos de letalidade policial no Paraná.

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Seu filho, Rhuan Machado, 20, foi morto em 2018. Ele estava na casa dos primos, em Curitiba, quando a PM chegou atirando, relata.

A polícia alega troca de tiros. A família contesta a versão, afirmando que Rhuan jogava videogame na sala.

O jovem havia passado no vestibular de direito e se preparava para tirar a primeira habilitação. A morte gerou protestos no bairro.

Suzete aponta "erros graves" na investigação: o corpo foi lavado no IML antes do exame residuográfico, e as roupas foram incineradas. "As roupas indicariam a distância do disparo feito pelo policial", diz.

Desde então, ela integra a Rede Nenhuma Vida a Menos, que apoia outras famílias —trabalho também feito pelo movimento Justiça Por Almas, em Londrina.

Para Fransérgio Goulart, coordenador da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, no Rio de Janeiro, essas redes são fundamentais.

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"Quando há uma violação policial, as narrativas nos boletins de ocorrência e laudos são sempre muito parecidas", afirma.

"Enquanto as forças de segurança alegam legítima defesa, os laudos, quando conseguimos acessá-los, apontam execuções", completa.

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'Mataram a pessoa errada'

Fábio Bratek, 34, foi morto em março de 2022, em Londrina, a poucos metros de casa.

Segundo Ana Carolina Mariz, 29, esposa de Fábio, ele foi comprar pão quando levou quatro tiros na cabeça em um suposto confronto com a PM.

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Ao perguntar o nome da vítima, ouviu de um agente: "Confronto com o Sérgio". "Não é o Sérgio, é o irmão dele, meu marido", rebateu, mostrando uma foto no celular.

Mais cedo, o irmão de Fábio havia sido denunciado pela esposa por agressão. "Mataram a pessoa errada", afirmou Ana.

Em 2014, Fábio foi preso por tráfico de drogas. "Policial me perguntou se ele tinha passagem, eu disse que sim, mas já tinha cumprido pena."

Com um advogado, a viúva conseguiu que o delegado solicitasse exame residuográfico, que comprovou ausência de pólvora nas mãos de Fábio.

"O delegado não ia pedir. Quando o advogado disse que ia entrar com pedido judicial, ele cedeu. Sem advogado, não conseguiria provar a inocência do meu marido", lembra.

Carolina Mariz, viúva de Fábio Bratek
Carolina Mariz, viúva de Fábio Bratek Imagem: Thiago Domingues/UOL
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Mão 'decepada'

Há três anos, Marilene Ferraz, 50, busca respostas para a morte do filho, Davi Gregório, 16, que levou 15 tiros em junho de 2022, em Londrina.

Segundo Marilene, ele estava numa lanchonete quando foi abordado. A PM alega que o adolescente reagiu em um ponto de tráfico. Um amigo que o acompanhava fugiu.

A mãe contesta: Davi teve a mão "decepada" por tiros em posição de defesa, e a suposta arma dele não tinha vestígios de sangue. Ela nega que o filho tivesse envolvimento com tráfico.

O rapaz foi atingido por três armas diferentes, incluindo uma metralhadora.

No IML, a mãe não pôde reconhecer o corpo —o expediente havia terminado. Um funcionário informou que ele já estava lavado e as roupas, incineradas, impossibilitando exames de pólvora ou digitais.

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Ela identificou Davi por foto. O celular dele nunca foi encontrado. Vizinhos relataram ameaças de policiais no dia seguinte e apagaram imagens de câmeras de segurança, com medo.

Marilene aponta contradições no inquérito. "Um policial disse que o 'elemento, ao ouvir a voz de abordagem, sacou da arma'; outro afirmou que ele já estava com a arma em punho."

Marilene Ferraz, mãe de Davi, morto com 15 tiros
Marilene Ferraz, mãe de Davi, morto com 15 tiros Imagem: Thiago Domingues

Um protocolo nacional

Em 2024, o Ministério da Justiça atualizou os Procedimentos Operacionais Padrão da perícia oficial para orientar os legistas do país.

O manual determina que roupas e pertences das vítimas sejam armazenados, se relevantes para a investigação, ou preservados até a entrega à família.

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Em mortes por tiro, caso não haja coleta de vestígios de pólvora no local do crime, a perícia deve preservar as áreas do corpo para exames residuográficos.

Mas a adoção do protocolo não é obrigatória, explica o secretário Nacional de Segurança Pública, Mário Sarrubbo.

"Por isso a importância de constitucionalizar o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) para garantir diretrizes nacionais efetivas", afirma.

A estratégia, diz Sarrubbo, é atuar em parceria com os estados e investir via Fundo Nacional de Segurança Pública.

"Quando o estado utiliza recursos do fundo para determinada atividade, aí sim podemos cobrar a implementação das diretrizes", explica.

Estados do Sul e Sudeste, "com orçamentos mais robustos na área de segurança pública", dependem menos desse fundo. No Norte e no Nordeste, "os recursos são mais essenciais".

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Outra barreira é a falta de independência dos órgãos responsáveis pela investigação.

"A Polícia Militar, a Polícia Civil, o Instituto de Criminalística e os peritos muitas vezes fazem parte da mesma secretaria [de segurança pública ou defesa social]. Isso pode comprometer a isenção das apurações", afirma Sarrubbo.

Um protocolo estadual para casos de letalidade policial é uma das propostas que o MP-PR (Ministério Público do Paraná) quer levar ao governo do estado, segundo o promotor Ricardo Lois.

Para ele, os desafios na apuração vão além da condução das investigações e refletem limitações estruturais das instituições.

Em São Paulo, por exemplo, a perícia já realiza exames no local do crime, incluindo coleta de impressões digitais e vestígios de pólvora, sempre que possível, explica um delegado ouvido pela reportagem.

A outra proposta do MP-PR, diz o promotor, é a adoção do uso de câmeras corporais.

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Atualmente, o Paraná testa 300 equipamentos, equivalente a 1,28% do efetivo de 23.469 policiais.

Em 2023, o governador Ratinho Jr. afirmou em entrevista que a adoção de câmeras dependerá da "eficiência" delas.

"Se for bom para a segurança pública, se for bom para o cidadão de bem, sim. Se não, não."

Segundo Lois, a importância das câmeras é "uma unanimidade", mas "existem outros problemas colaterais".

"Embora seja um tema extremamente delicado, porque estamos falando de vidas humanas, para o Estado há um ponto importante, que é o dinheiro", questiona, destacando preocupação com probidade administrativa.

"Por exemplo, já foi feito um teste aqui, e se constatou que grande parte dos sistemas [de informática] da Polícia Militar precisaria ser adaptada", explica.

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