Sete ONGs sem histórico de projetos relevantes com verbas federais saíram do anonimato para serem contempladas, apenas no semestre passado, com R$ 274 milhões em emendas de ao menos 21 parlamentares —19 do Rio e 2 do Amapá.
A maioria delas não apresenta provas de que possui capacidade para gerir tanto dinheiro.
Desse valor, R$ 219 milhões em emendas migraram —a pedido de parlamentares— de uma rede de ONGs suspeita de desvios de recursos públicos revelada pelo UOL.
O movimento acontece após a publicação da série de reportagens "Farra das ONGs", que colocou sete ONGs suspeitas na mira do ministro do STF Flávio Dino, da CGU (Controladoria-Geral da União) e do TCU (Tribunal de Contas da União).
O pagamento de emendas chegou a ser suspenso por ordem de Dino, e devoluções de recursos públicos foram recomendadas por órgão federal.
Os R$ 274 milhões em emendas direcionados às ONGs financiarão projetos de castração animal, aulas de esportes e qualificação profissional em convênios com órgãos federais nos estados do Rio e do Amapá.
A maior parte dos valores já foi reservada e está em vias de ser paga às ONGs.

Na liderança desses recursos, aparece o senador Romário (PL), com R$ 21,3 milhões. Na lista, há nomes da direita —como os deputados Sóstenes Cavalcante (PL) e Otoni de Paula (MDB)—, da esquerda, como Dimas Gadelha (PT), e do centrão, como Dani Cunha (União), filha do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (Republicanos), todos do Rio.
Migração milionária entre ONGs
O novo grupo de ONGs tem integrantes que são ou foram ligados recentemente às entidades suspeitas de desvios de verba federal reveladas na Farra das ONGs.
Outro fator reforça esse elo: o equivalente a 80% do total de R$ 274 milhões em emendas migrou, no ano passado, das ONGs suspeitas de desvios para as novas entidades.

Por lei, parlamentares têm o direito de indicar —e mudar— as ONGs que desejam que executem os projetos. Para tocá-los, tanto as ONGs suspeitas de desvios como as novas escolhidas fecharam convênios com o Ministério do Esporte e a Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio).
Políticos ouvidos pelo UOL dizem confiar nas ONGs do novo grupo e ignoram a relação de integrantes com as entidades reveladas na série de reportagens.
As novas ONGs contempladas dizem conseguir executar os projetos milionários.
A Unirio e o Ministério do Esporte —responsáveis pelo acompanhamento do uso das verbas destinadas pelos deputados— afirmam que as ONGs cumpriram os requisitos necessários para a aprovação dos projetos e que não cabe interferência nas escolhas feitas pelos parlamentares.

De pais para filho
As novas ONGs contempladas com R$ 274 milhões em emendas não têm registros consistentes de atividade e praticamente não tocaram projetos com recursos federais.
A ONG com maior volume de emendas é a Abepe (Associação Beneficente Pró Esporte).
Fundada em 2006, a ONG não foi contemplada com verba pública durante seus quase 20 anos até assinar —na última semana de 2024— R$ 60,6 milhões em convênios com a Unirio e o Ministério do Esporte. Outros R$ 10,3 milhões estão em trâmites finais para assinatura na pasta.
Entre setembro de 2023 e agosto de 2024, o presidente da ONG foi Raphael Duarte Gonçalves, 22.
A mãe dele, Cíntia Gonçalves Duarte, é presidente da ONG Con-tato, uma das integrantes da rede suspeita de desvios que mais recebeu emendas entre 2021 e 2023.
O pai Raphael da Silva Gonçalves é, segundo o UOL apurou, um dos maiores articuladores das emendas para as ONGs do Rio.
Ele também comanda a ONG Solazer, que fez diversas parcerias para contratação de pessoal em projetos tocados pelo grupo de ONGs suspeito de desvios.
Atualmente, o presidente da Abepe é o advogado Fausto Ferreira da Silva Neto, 34.
No ano passado, ele se apresentou ao UOL como representante de uma empresa que obteve R$ 1,3 milhão em contratos com as ONGs ICA (Instituto Carioca de Atividades) e Instituto Realizando o Futuro —que também integram a rede de ONGs suspeitas de desvios.
A Abepe afirmou ao UOL que está "perfeitamente apta a receber recursos" e que Fausto Neto chegou ao cargo "sem precisar da ajuda de quem quer que seja, gozando apenas de credibilidade e cercando-se de uma boa equipe".
Provas frágeis de capacidade
As novas ONGs apresentam provas frágeis de que têm estrutura e experiência para tocar os projetos milionários.
A Abepe apresentou um atestado de que teria realizado um projeto de aulas de esportes para 500 alunos em um clube na zona norte da capital fluminense em 2023 e 2024.
A ideia era demonstrar que seria capaz de fazer projetos não só de esportes, mas de qualificação profissional, castração de animais e até de análise sobre déficit habitacional no Rio.
Juliana Silveira, procuradora federal junto à Unirio, destacou a necessidade de a ONG comprovar a experiência em áreas como qualificação profissional e análise de déficit habitacional. Ela pediu mais detalhes sobre o efetivo funcionamento da entidade.
A Abepe então enviou uma foto da porta de sua sede.

A ONG também mandou contrato de suposta parceria para apoiar outra entidade, o MCS (Movimento Cultural Social), em um projeto de aulas de esporte em vilas olímpicas da Prefeitura do Rio. Fotos genéricas foram usadas como provas.
O MCS também faz parte do novo grupo de ONGs contempladas com verbas federais no ano passado (R$ 8 milhões).
Seu presidente é Danilo da Silva Batista. Até janeiro, ele foi sócio da empresa L&M Insight Consultoria e Assessoria, que acumulou R$ 1,6 milhão em contratos com a Con-tato, o ICA e o Instituto Realizando o Futuro.
As entidades integram a rede suspeita revelada na Farra das ONGs.
Por email, o MCS disse que Batista se afastou da L&M Insight antes de assumir a ONG e que a entidade nunca contratou serviços da empresa.
O MCS afirmou que "executou inúmeros projetos em parceria com outras instituições do terceiro setor, inclusive com a Abepe".
No MCS, ainda há uma figura-chave: Samira da Silva Deodato. O nome dela aparece no site Transferegov --que registra os dados dos convênios com recursos federais-- como a responsável pelo envio de documentos da ONG aos órgãos públicos.
O UOL identificou que ela fez a mesma função para as ONGs Inatos, MCS, IPGI, Asas e Con-tato, reforçando a ligação entre as entidades.
Samira atuou ainda na Con-tato no ano passado como gerente de projetos, mesmo cargo que passou a exercer no Inatos neste ano.
"A eficiência do meu trabalho é reconhecida e respeitada no terceiro setor, o que justifica que eu seja tão demandada", disse Samira, que se identificou como "consultora técnica em gestão de projetos".
Apesar dos questionamentos jurídicos, a Unirio aprovou, sem ressalvas, sete convênios com a Abepe, todos assinados em 30 de dezembro.
Por meio de sua assessoria de imprensa, a universidade afirmou que as pendências apontadas pela procuradoria federal foram sanadas.
Três páginas, R$ 70 milhões
Entre as novas ONGs, a segunda colocada em verbas é o Núcleo Social Bem Viver (R$ 70,3 milhões). Seu presidente é Yuri Durães de Brito Cardoso, que foi funcionário do ICA —outra entidade abordada na Farra das ONGs— entre 2021 e 2022.
A ONG também demonstrou fragilidade ao tentar provar que teria capacidade para executar projetos milionários.
O principal documento foi um atestado de três páginas enumerando quatro projetos, sem dar detalhes sobre eles.

A ONG também anexou três convênios, de R$ 1 milhão cada um, assinados no fim de 2023 com o Ministério do Esporte que, até hoje, não tiveram nenhuma atividade.
Por email, Yuri Durães afirmou que todos os documentos apresentados atendem aos requisitos formais.
Ele disse que "tem uma trajetória fortemente ligada ao impacto social" e que atualmente não possui vínculo com outras instituições.
Advogado de ONGs no comando
A terceira colocada no ranking das emendas é o IPGI (Instituto de Proteção das Garantias Individuais), com R$ 42,7 milhões.
A entidade é presidida pelo advogado Carlos Eduardo Gonçalves, que, no ano passado, apresentou-se ao UOL como representante da Con-tato e de empresas que forneceram serviços à rede de ONGs suspeitas de desvios de recursos.
Gonçalves trabalha no mesmo escritório de advocacia de Fausto Neto, presidente da Abepe.
A principal prova de capacidade técnica do IPGI é uma parceria que teria sido feita com outra ONG para projetos de aulas de esportes com verba federal.
Não há qualquer referência a contratos de parceria com o IPGI no site Transferegov.
O IPGI foi aprovado até para convênios que não têm nada a ver com esportes, como o projeto Ellos Castrapet, do deputado Sóstenes Cavalcante (PL), que enviou ofício à Unirio afirmando que a ONG "possui expertise" no tema.

Em nota enviada por sua assessoria de imprensa, o deputado diz que atua "dentro da legalidade e com total transparência na destinação de minhas emendas parlamentares".
"A UniRio já tem expertise na realização de diversos projetos de castração de animais", completou, afirmando que sua assessoria fez um "levantamento detalhado" de entidades com experiência em projetos sociais.
Carlos Eduardo Gonçalves disse, por email, que atua no terceiro setor há oito anos, período em que foi contratado por algumas instituições.
Ele afirmou que conduziu "inúmeros projetos sociais nas áreas de educação, colocando dinheiro do meu bolso para ensinar 'cidadania e justiça' para centenas de crianças em comunidades e escolas públicas".
Também fazem parte do novo grupo de ONGs o Ibra-tec, com R$ 36,8 milhões em emendas, o Inatos, com R$ 35,5 milhões, e a Asas, com R$ 10 milhões.
Apenas o Inatos possui experiência na realização de projetos, principalmente esportivos, com verbas da Prefeitura do Rio.
Em âmbito federal, o UOL só localizou um projeto de 2019, de R$ 300 mil, de prevenção ao uso de drogas, cuja prestação de contas foi considerada irregular em março pelo TCU.
O Inatos afirmou, por email, que a instituição foi fundada em 1983 e realizou "inúmeros projetos em parceria com o governo federal ao longo da sua história", sem contudo citá-los.
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