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Entre ministros e lobbies, como empresa de Musk age para crescer no Brasil

Um pedido de expansão da operação da Starlink no Brasil se arrastou e sua avaliação levou quase o dobro do tempo de análise da própria entrada da empresa de Elon Musk no Brasil.

No fim de março, representantes da embaixada dos EUA chegaram a visitar a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) para um "diálogo comercial".

Durante a conversa, os norte-americanos quiseram saber em que pé estava o processo de expansão da Starlink, a provedora de internet por satélite do bilionário Elon Musk.

A visita durou cerca de 1 hora e transcorreu em tom cordial —embora, àquela altura, a Anatel analisasse a solicitação da empresa havia 1 ano e 3 meses.

A Starlink queria que todos os seus satélites em órbita (7.000, mas devem chegar a 10 mil) pudessem disponibilizar internet no país (4.408 foram liberados da primeira vez).

A área técnica autorizou a ampliação do serviço, mas o conselheiro Alexandre Freire, relator do caso, pedia explicações mencionando "soberania digital" e "segurança de dados e riscos cibernéticos".

O processo terminou no início de abril com o OK à empresa de Musk após solicitações inéditas, pressão interna e até a intervenção de um ministro do Supremo, segundo quatro fontes ouvidas pelo UOL.

O UOL reconstituiu a trajetória da Starlink no Brasil, da empolgação do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) com o homem mais rico do mundo à desconfiança do governo Lula (PT).

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Imagem: Arte/UOL

Starlink, 'um caso complexo'

A condução do processo na Anatel chamou a atenção de três integrantes do setor de telecomunicações que acompanharam o caso e viram uma contaminação política.

Desde que passou a autorizar operações como a da Starlink, a agência não havia feito questionamentos do tipo às provedoras de internet por satélite.

Em dezembro de 2022 a agência liberou, por exemplo, o serviço de 3.200 mil satélites da Amazon (27 foram lançados em 28 de abril); em setembro de 2024, de 8.600 satélites da E-Space (a empresa lançou muito menos do que isso) sem essa análise.

Procurada, a Anatel afirmou que o pedido de expansão era um "caso complexo", que demandou um "exame minucioso" da área técnica.

Leia a nota completa aqui.

A Embaixada dos EUA informou que não comenta o conteúdo de reuniões privadas.

À Anatel cabe liberar ou não o serviço; a reguladora não tem poder de impedir o envio de satélites estrangeiros para o espaço.

Ocupação da órbita espacial e suas consequências são da alçada da UIT (União Internacional de Telecomunicações), agência da ONU (Organização das Nações Unidas) focada no tema.

Jair Bolsonaro (à esq.) e Elon Musk, em encontro com empresários no interior de São Paulo, em maio de 2022
Jair Bolsonaro (à esq.) e Elon Musk, em encontro com empresários no interior de São Paulo, em maio de 2022 Imagem: ZACK/MCOM

De 'mito' a rival

A Starlink está no Brasil há três anos. Musk e o governo Bolsonaro se aproximaram em 2021, quando o então ministro das Comunicações, Fábio Faria, visitou o empresário em Austin (EUA).

Quase três meses depois do encontro, a Starlink obteve autorização da Anatel para atuar no país.

Em maio de 2022, Musk retribuiu a visita de Faria. Esteve com Bolsonaro, integrantes do governo, conselheiros da Anatel, o ministro do STF Dias Toffoli e empresários em um hotel no interior de São Paulo.

"O nosso governo trabalhará para encarnar o seu espírito, da importância da liberdade para todos nós", disse o então presidente a Musk. "Você, realmente, é o mito da nossa liberdade."

Uma parceria foi anunciada na ocasião: a ideia era usar a tecnologia da Starlink para monitorar a floresta amazônica e conectar escolas em locais remotos. Esse projeto especificamente nunca saiu do papel.

Elon Musk (à esq.) e o ex-ministro das Comunicações Fabio Faria, em encontro de empresários no interior de Sâo Paulo, em 2022
Elon Musk (à esq.) e o ex-ministro das Comunicações Fabio Faria, em encontro de empresários no interior de Sâo Paulo, em 2022 Imagem: ZACK/MCOM

A disposição mudou em 2023. Lula, para quem "o mundo não é obrigado a aguentar o vale-tudo de extrema direita de Musk só porque ele é rico", também já criticou a "predominância" da Starlink na Amazônia.

O presidente chegou a testar a internet de Musk em agosto de 2023, numa visita ao Navio Hospital Escola Abaré, no Pará.

"Houve um tempo em que eu também tinha dúvidas se ia dar certo. Agora estou aqui, sentado em uma cadeira na frente de pessoas que estão vivendo isso e provando que vai dar certo", disse o presidente.

Mas, em novembro de 2024, a primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, cutucou o bilionário em um painel do G20 Social, no Rio ("Fuck you, Elon Musk").

"Eles vão perder a próxima eleição", respondeu o empresário no X, da qual é dono.

Por meses, a rede social foi alvo de decisões judiciais, que incluem remoção de perfis e pagamento de multas.

Musk, por sua vez, se tornou crítico ferrenho do ministro do STF Alexandre de Moraes, que bloqueou o X em 2024 por "descumprimento reiterado" de suas decisões.

Em março, Moraes chegou a dizer que a Starlink era um projeto de poder de Musk e citou uma possível ameaça à soberania nacional.

Levantamento da rede americana NBC News apontou que o empresário encoraja movimentos políticos de direita e extrema direta em pelo menos 18 países, incluindo o Brasil.

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Imagem: Arte/UOL

Tempo de análise quase dobrou

A Starlink ascendeu de forma meteórica no Brasil e se tornou líder em internet por satélite, com 58% do mercado nacional, e mais de 334 mil clientes.

Nas regiões brasileiras onde não há infraestrutura para fibra, a solução pode ser a tecnologia satelital.

A Anatel levou 276 dias para autorizar o início da operação da Starlink entre 2021 e 2022, com 4.408 satélites. A autorização para a expansão, com mais 7.500, tomou quase o dobro do tempo: 469 dias.

A empresa de Musk apresentou o pedido de ampliação em dezembro de 2023. Um ano depois, a área técnica da Anatel enviou o processo para análise do conselho diretor.

O caso ficou com Alexandre Freire, que levou quase quatro meses para fazer pedidos de análises extras.

Em documento de março, obtido pelo UOL, o conselheiro pede detalhamento, por exemplo:

  • de como seria feita a identificação de riscos associados ao processamento e armazenamento de dados, nas exigências da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados);
  • análise do uso da infraestrutura da Starlink como instrumento de pressão em contextos de crises geopolíticas ou disputas comerciais;
  • avaliação de riscos de monitoramento por parte de terceiros, incluindo governos estrangeiros.

A área técnica respondeu em duas semanas. Em um relatório de 18 páginas, informou que "os riscos associados ao processamento e armazenamento de dados" para a Starlink "são os mesmos que existem para outras pessoas jurídicas".

Também informou que não era possível afirmar que a expansão do serviço "poderia representar aumento de riscos associados à proteção dos dados", uma vez que a política de tratamento de informações continuava a mesma.

Pressionado a levar o processo para votação, o conselheiro pediu, em 3 de abril, mais quatro meses para analisar o caso. Disse precisar de "mais tempo para analisar as informações apresentadas".

Cinco dias depois, o desfecho: o conselho da Anatel votou e aprovou a expansão da Starlink.

A "força oculta" que destravou o processo, segundo três fontes ouvidas pelo UOL, sob anonimato, foi Dias Toffoli, de quem Alexandre Freire foi assessor no STF.

O ministro pediu para o conselheiro liberar o processo antes de voltar ao Brasil. No dia da votação, Freire estava em Paris para reuniões sobre "aprimoramento da atuação regulatória".

A assessoria do STF afirmou à reportagem que o ministro "nunca conversou sobre o tema mencionado com o conselheiro".

Como mostrou o UOL, Freire tem passado períodos extensos no exterior em cursos, palestras e reuniões, que custaram R$ 700 mil.

Alexandre Freire, conselheiro da Anatel.
Alexandre Freire, conselheiro da Anatel. Imagem: Anatel

Os negócios no Brasil

Elon Musk tem uma fortuna estimada em US$ 373 bilhões, segundo a Forbes.

É também um dos nomes fortes do governo Donald Trump, a quem doou mais de US$ 250 milhões na campanha eleitoral, no ano passado.

O cargo no Executivo norte-americano fez crescer sua relevância no mundo.

No Brasil, o empresário mantém dois de seus negócios: X e Starlink. São mais de 20 milhões de contas no ex-Twitter, o que coloca o país como o sexto maior mercado da plataforma no mundo.

A Starlink leva internet rápida principalmente à região Norte, em locais com pouca ou nenhuma infraestrutura.

A provedora trabalha com revendedores autorizados, espalhados pelo país.

Um deles é uma companhia que tem como acionista o ex-piloto de Fórmula 1 Nelson Piquet.

Outra revendedora é uma empresa de Brasília, que forneceu antenas de Musk para a Petrobras em um acordo firmado em 2023 que pode chegar a US$ 28 milhões.

O comando da Marinha contratou uma empresa do Rio por R$ 37 mil para usar a tecnologia em um navio porta-helicópteros, dois anos atrás.

Três governos estaduais contrataram uma empresa de Manaus, controlada por um jornalista e ex-deputado estadual, para colocar internet de satélite em escolas públicas:

  • Amazonas: R$ 203 milhões em cinco anos
  • Pará: R$ 340 milhões em cinco anos
  • Paraná: R$ 6,1 milhões em um ano

Antes de a Anatel liberar a ampliação do serviço, a Starlink informou que sua capacidade estava esgotada na capital São Paulo, em Manaus e na região de Tabatinga (AM), na tríplice fronteira do Brasil com Colômbia e Peru.

Em março, a liderança do PT na Câmara pediu ao governo a revisão de contratos com a provedora.

'Pote de ouro'

Satélites como os de Musk atuam mais próximos à Terra, com internet mais rápida do que aqueles que estão mais distantes.

A empresa tem, atualmente, 7.000 satélites em operação, segundo o catálogo público do astrônomo Jonathan McDowell, do Observatório Astrofísico Smithsonian, nos EUA.

A ocupação da órbita terrestre tem sido debatida por órgãos reguladores e especialistas.

Há uma preocupação de que empresas e países ricos dominem os melhores espaços e forcem os demais a operarem distantes da Terra.

A situação levou a uma "corrida do ouro": quem tem mais recursos consegue lançar satélites primeiro.

"Está ficando muito lotado lá em cima", afirmou McDowell ao UOL. "Mas não está claro o quão perto da capacidade realmente estamos."

Para o astrônomo, o único concorrente real da Starlink é a empresa OneWeb, que não tem tantos satélites assim.

Musk avançou "rapidamente" sobre a órbita, explicou, por fazer um trabalho vertical. Ou seja, por ter veículo de lançamento, fabricante e operador de satélites e reutilizar seu foguete.

Países como Rússia, Irã e China não autorizaram a operação da Starlink em seus territórios. A estatal chinesa SpaceSail está desenvolvendo o próprio sistema e prevê ter 648 satélites de baixa órbita operando até o fim de 2025.

O diretor-executivo do Instituto de Tecnologia & Sociedade do Rio de Janeiro, Fabro Stein, disse ao UOL que a internet por satélite é importante. Contudo, não deve ser "a solução de conexão" do país.

"O que escala a internet é cabo, é fibra", afirmou. "A hora que o Exército passa fibra pelo leito do rio, isso é política pública."

Stein vê riscos geopolíticos na tecnologia. Segundo ele, é mais difícil moderar conteúdo e é preciso ter atenção a que tipo de informações sensíveis, mesmo anônimas, as provedoras podem acessar e o impacto disso na segurança nacional.

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