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Farra milionária: ONGs usam laranjas, serviço-fantasma e superfaturamento

Parlamentares enviaram quase meio bilhão de reais em verba federal para uma rede de ONGs que tocaram projetos com fortes indícios de desvio de dinheiro nos últimos três anos, apurou o UOL.

Os repasses foram feitos por 32 deputados e um senador, entre eles o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) — autor do projeto de lei antiaborto —, o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (sem partido) e o atual presidente da Embratur, Marcelo Freixo (PT). Políticos de direita e centro concentram os repasses.

A lista também inclui o deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), braço direito do prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD), e parlamentares como Chiquinho Brazão (sem partido), réu pela morte de Marielle Franco.

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Imagem: Arte/UOL

O esquema envolve pagamentos por serviços não comprovados, compras superfaturadas e empresas em nome de laranjas vencendo concorrências com suspeitas de manipulação.

A verba pública é injetada em projetos com estrutura simples, de esportes e qualificação profissional, que custam muito mais do que deveriam.

  • Compra de 11 mil medalhas para projeto de esporte: dez por aluno inscrito;
  • 1.320 bolas de futsal para projeto sem aulas dessa modalidade;
  • Compra de 1.600 quimonos de jiu-jítsu: 14 por aluno;
  • Gasto de R$ 3 milhões para 225 seminários, mas só oito foram realizados 6.600 "kits aluno" superfaturados ao custo de quase R$ 800 mil.

Esses são exemplos de irregularidades da Farra das ONGs, série de reportagens investigativas que o UOL publica a partir de hoje.

Os serviços vêm sendo aprovados sem ressalvas pela Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) e pelo Ministério do Esporte, responsáveis pelo acompanhamento do uso das verbas destinadas pelos deputados.

O UOL identificou que apenas um dos projetos foi analisado pelo TCU (Tribunal de Contas da União). A Corte determinou sua suspensão ao verificar suspeitas semelhantes às encontradas pela reportagem ao longo de seis meses de investigação.

A Unirio afirma que vai verificar os indícios de irregularidades levantados pelo UOL.

A instituição federal diz em nota que "parcerias [com as ONGs] auxiliam na formulação e execução de políticas públicas, aprimorando a compreensão de contextos sociais" e têm de ocorrer "dentro da legalidade e com aderência à missão da universidade".

Já o Ministério do Esporte afirma que não é o responsável pela escolha de quem realiza os projetos, mas que fiscaliza "a execução integral do objetivo [dos projetos] e o alcance dos resultados previstos".

Também fala que todos os documentos dos convênios com as ONGs estão disponíveis no Transferegov.br (portal do governo federal), "possibilitando transparência no uso dos recursos transferidos".

Procurados, os deputados e ex-deputados dizem que os projetos são feitos com sucesso e que não cabe a eles fazer a análise da execução financeira (veja a íntegra das respostas).

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Imagem: Arte/UOL

A Farra das ONGs

Somente entre 2021 e 2023, sete ONGs ganharam R$ 455 milhões. O dinheiro veio de emendas de ao menos 33 parlamentares, quase todos do RJ, para projetos esportivos, de qualificação profissional e castração de animais no estado.

As sete ONGs contratam empresas para compra de materiais e serviços de apoio para os cursos oferecidos.

Entre as aulas, há ginástica gratuita para idosos em praças públicas e cursos de culinária e de cabeleireiro em residências ou igrejas.

Apenas 20 firmas que se repetem em pesquisas de preço direcionadas receberam R$ 132 milhões. Parte das empresas apresenta ligações entre si e chega a oferecer preços com diferenças de apenas R$ 1 por valor unitário.

ONGs não podem ter fins lucrativos, mas quem as comanda conseguiu burlar isso: algumas empresas contratadas são ligadas aos próprios dirigentes das ONGs. As ONGs e as empresas contratadas negam irregularidades e afirmam seguir a legislação (veja aqui o que dizem as ONGs e as empresas).

Uma delas, a Promacom, defendeu a importância dos projetos, mas informou a suspensão de contratos com empresas com indícios de irregularidades apontados pelo UOL.

Um aluno, dez medalhas e 14 quimonos

O UOL analisou 679 contratações — de prestação de serviços e compras de materiais — feitas pelas ONGs Con-tato, Promacom e pelos institutos Realizando o Futuro, Fair Play, Brasil Social, Carioca de Atividades e Crescer com Meta.

A reportagem cruzou dados dos relatórios finais sobre os projetos feitos pelas ONGs e de notas fiscais com a efetiva entrega pelas empresas.

Em diversas ocasiões, o que saiu dos cofres públicos não bate com o que a ONG apresentou de resultado.

Exemplo disso é o projeto Transformação, de seminários sobre esportes e aulas gratuitas de ginástica, futebol, vôlei e jiu-jítsu, realizado no ano eleitoral de 2022.

Emenda assinada pela bancada de deputados do RJ (apresentada coletivamente por parlamentares do estado) destinou no período R$ 13 milhões ao ICA (Instituto Carioca de Atividades) para tocar o projeto com a Unirio.

Uma empresa contratada pela ONG vendeu 11 mil colchonetes de ginástica (R$ 540 mil), 11 mil medalhas (R$ 93 mil), 1.320 bolas de futsal (R$ 155 mil) e 1.600 quimonos (R$ 312 mil), entre outros itens.

Os gastos superam em muito a necessidade dos 1.136 inscritos — foram comprados ao menos dez colchonetes e dez medalhas por aluno.

Apesar das 1.320 bolas de futsal pagas, não houve aulas de futsal. Para o mesmo projeto, foram compradas 1.320 bolas de futebol por R$ 156 mil. Só houve 328 alunos de futebol, segundo o relatório da ONG.

E, para os 108 alunos de jiu-jítsu, foram comprados 1.600 quimonos -ao menos 14 por inscrito.

No relatório da ONG ICA, registro da turma de jiu-jitsu mostra kimonos de padrões diferentes. A compra estabelecia uniformes azuis e com a logomarca do projeto
No relatório da ONG ICA, registro da turma de jiu-jitsu mostra kimonos de padrões diferentes. A compra estabelecia uniformes azuis e com a logomarca do projeto Imagem: Reprodução

A empresa fornecedora é a Mundo Esporte Global, que recebeu mais de R$ 20 milhões em recursos federais de três ONGs, entre 2021 e 2023.

Por email, o ICA afirmou que "as compras realizadas pela instituição seguem a planilha estabelecida pelo plano de trabalho aprovado pelo governo federal".

A reportagem detectou, contudo, que muitos pontos estabelecidos no plano de trabalho não se concretizaram na prática, conforme mostra o relatório final de execução da ONG.

Em abril, o UOL foi duas vezes à sede da Mundo Esporte, mas não encontrou ninguém. A empresa também foi procurada por email, mas não houve retorno.

A Unirio afirmou que averiguará possíveis irregularidades de execução.

"Pela análise do Relatório de Prestação de Contas, que foi aprovado na gestão passada [da reitoria], é indicado que houve o cumprimento das metas [do projeto]."

Pague 225, leve 5

No mesmo projeto, o ICA pagou cerca de R$ 3 milhões a duas empresas por 225 seminários sobre qualificação profissional, ao custo de quase R$ 14 mil cada um.

No entanto, o relatório da ONG à Unirio indica que apenas oito dos 225 seminários — todos contratados e pagos — saíram do papel. Dois deles nem sequer foram presenciais.

Farra das ONGs: Relatório mostra a realização de apenas cinco seminários no projeto Transformação
Farra das ONGs: Relatório mostra a realização de apenas cinco seminários no projeto Transformação Imagem: Reprodução

O ICA afirmou que "podem existir outros relatórios em relação aos demais eventos", mas não mostrou documentos.

O UOL se baseou no relatório público de prestação de contas final do projeto, já encerrado, enviado pela entidade à Unirio.

Uma das empresas contratadas pertenceu até março à enteada do próprio presidente do ICA, Nicodemos de Carvalho Mota. A ArtPlural Produções e Eventos ganhou R$ 1 milhão por 75 seminários.

A empresa trocou de dono e de sede em 20 de fevereiro, durante a investigação do UOL. Passou do nome de Ingrid Costa de Souza, a enteada de Nicodemos, para Daniel da Silva Alves.

A reportagem não encontrou ninguém, tanto na antiga quanto na atual sede, e telefones e email da firma não funcionam.

A ONG afirmou por email que, "desde que o fornecedor ou prestador de serviços não seja vinculado ao ICA, não há nenhuma ilegalidade nisso [contratação da empresa da enteada]".

Os R$ 2 milhões pagos pelos outros 150 seminários foram para a empresa de Ricardo Pires de Oliveira, que já foi ligado ao Instituto Fair Play. A ONG está entre as contempladas com recursos de emendas parlamentares.

Oliveira foi procurado por email e WhatsApp, mas não retornou.

O Instituto Fair Play afirmou, por meio do advogado Victor Hugo Alves da Silva, que Oliveira "nunca foi associado, dirigente ou gestor da ONG, mas apenas prestador de serviço".

O UOL localizou documento de uma assembleia do Fair Play de 2022 em que Oliveira aparece como "associado/funcionário" da entidade (veja a ata).

R$ 1 milhão antes de projeto começar

A investigação do UOL mostra que um dos principais indícios de desvios de verbas pelas ONGs está no pagamento de eventos sem comprovação de que eles ocorreram ou de que custaram o que deveriam.

A Produmix Brasil Produções e Eventos recebeu cerca de R$ 1 milhão por 55 eventos mais de dez dias antes de o projeto Multiplica Rio ser lançado oficialmente, em fevereiro de 2023.

Até junho daquele ano, foram mais três pagamentos da ICA com recursos da bancada de deputados do RJ para o projeto de aulas de esportes e ginástica: um total de R$ 4,6 milhões para 220 eventos.

A ONG pagou R$ 20,9 mil por evento para a Produmix Brasil, que conquistou o contrato por apresentar diferenças de preço de R$ 1 e R$ 2 em relação às concorrentes.

Tanto o relatório da ONG quanto as notas fiscais emitidas pela Produmix não detalham os eventos. Há apenas fotos que mostram estruturas simples, como pula-pula e escorregadores infláveis para crianças.

Esse tipo de evento não custaria mais de R$ 5.000, segundo empresas do ramo no Rio. A empresa alegou, por meio do advogado Carlos Eduardo Gonçalves, que o valor cobrado ocorreu pela "complexidade dos serviços solicitados pelos contratantes".

A Unirio afirmou que as metas do projeto foram concluídas, mas que irá averiguar se houve alguma irregularidade na gestão do projeto.

O ICA afirmou que o pagamento antecipado "é muito comum na produção e realização de eventos".

Um decreto de 2016 diz que contratações de serviços por ONGs com recursos federais devem adotar métodos usados pelo setor privado, sem especificar, contudo, que métodos são esses.

Há, no entanto, jurisprudência no TCU, que analisa contratações com dinheiro público, condenando a prática de pagamentos antecipados, a não ser em casos excepcionais, mediante justificativa.

Farra das ONGs: Exemplo de evento produzido pela empresa Produmix, em frente a uma igreja, em Curicica, na zona oeste do Rio
Farra das ONGs: Exemplo de evento produzido pela empresa Produmix, em frente a uma igreja, em Curicica, na zona oeste do Rio Imagem: Reprodução

A Produmix Brasil está entre as empresas que mais receberam das ONGs com recursos de emendas parlamentares: R$ 12,6 milhões.

Além do ICA, ela foi contratada pelas ONGs Promacom, Con-tato, Brasil Social e Fair Play. A empresa oferece às ONGs uma gama de serviços.

Em 2022, por exemplo, assinou dois contratos somando mais de R$ 1,1 milhão para "coleta e análise de dados" de projetos de castração de animais do IBS (Instituto Brasil Social).

Apesar do valor alto, só foram tornados públicos dois relatórios simples, com o número total de animais atendidos. Os editais e contratos não detalham a contratação.

O dinheiro veio de emendas de Juninho do Pneu (União-RJ) e do ex-deputado Gelson Azevedo (PL-RJ).

O advogado da Produmix disse que se trata de "serviço extremamente especializado".

Rosalvo Correia, diretor do IBS, afirmou que o projeto dos "castramóveis" está entre os melhores serviços sociais que o instituto realiza e possui "nível de execução mais difícil" devido a exigências do poder público e a regras do Conselho de Veterinária.

Concorrência entre casais

A farra das ONGs também conta com empresas de marido e esposa que concorrem entre si por contratos milionários.

Os sócios da Produmix Brasil são José Luiz Correa dos Santos Filho, o Zezinho Jacarepaguá, ex-funcionário comissionado da Prefeitura do Rio, e Acir Costa de Miranda.

Em junho do ano passado, a esposa de Zezinho — Laís Gonçalves Ximenes Correa, técnica de enfermagem de um hospital federal — abriu uma empresa que já conquistou cerca de R$ 2 milhões de duas ONGs.

Os casais José Luiz Correa dos Santos Filho e Laís Gonçalves Ximenes Correa, e Acir Costa de Miranda e Ana Paula dos Santos
Os casais José Luiz Correa dos Santos Filho e Laís Gonçalves Ximenes Correa, e Acir Costa de Miranda e Ana Paula dos Santos Imagem: Reprodução/Facebook

Já a empresa da esposa de Acir, Ana Paula dos Santos, conquistou contratos no valor de R$ 1,7 milhão com três ONGs.

Para contratar empresas, as ONGs fazem pesquisas de preço com três firmas. O UOL localizou diversas pesquisas em que os casais concorreram entre si.

Em dois casos, a Produmix conquistou contratos que somam mais de R$ 850 mil concorrendo com a empresa da esposa de Acir Miranda e a Sporting Net Produções, Transmissões e Eventos, que tem o marido dela entre os sócios.

O advogado da Produmix, que também respondeu pelas outras firmas, disse ser "comum recebermos diversos pedidos de cotação de preços de entidades públicas e privadas, e o fato de participar ou ter grau de parentesco não os impede de enviar proposta".

"As empresas jamais participaram de processo licitatório em conjunto ou com qualquer objetivo que não seja a melhor prestação dos serviços", concluiu Carlos Eduardo Gonçalves.

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Imagem: Arte/UOL

"Kit aluno" pelo dobro do preço

O UOL também detectou suspeitas de superfaturamento. É o caso de um "kit aluno" adquirido pelo Instituto Realizando o Futuro para o projeto GeraRio, em parceria com a Unirio, entre outubro passado e abril deste ano.

A ONG pagou R$ 119,50 pelo kit com camisa, estojo, lápis e caneta. Ao todo, foram gastos R$ 789 mil com 6.600 kits fornecidos pela Distribuidora de Artigos de Esporte Cavacas.

Sem se identificar, o UOL pediu à própria Cavacas orçamento para uma quantidade bem menor: 200 kits. Ainda assim, o valor sairia por R$ 54,90 cada - metade do que foi pago.

A ONG economizaria ao menos R$ 362 mil em recursos públicos, se tivesse pago o valor oferecido à reportagem.

Por email, o dono da Cavacas, André Luís Moreira, atribuiu a diferença de preços ao fato de que alguns kits foram "personalizados" e ao que definiu como "alteração de preços a depender de período e ano".

Os documentos públicos da ONG não mostram, contudo, especificidade no produto, além do fato de que a camisa teria de conter a logo do projeto, o que também foi requisitado pelo UOL.

Os recursos vieram de uma emenda de R$ 8,3 milhões do ex-deputado Gurgel (PL), que coordenou a bancada do RJ na legislatura passada.

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