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'Filha' de presidente de ONG conquistou R$ 7 milhões em contratos

Em apenas seis meses, a empresa de Raiara Carolina dos Santos Ramos Pereira, 33, conquistou contratos milionários com verbas federais na Farra das ONGs, revelada em investigação do UOL.

Por trás do sucesso meteórico, está o fato de a PS Assessoria e Gestão ter sido contratada por uma ONG presidida por sua mãe de santo, Bárbara da Silva Carlos.

Além de fazer declarações públicas de amor, a dona da PS chegou a classificar Bárbara Carlos como sua mãe em uma lista de parentes em seu perfil no Facebook.

Até o fim de junho, Bárbara Carlos dirigia a ONG Promacom, que assinou dez contratos no valor total de R$ 7,2 milhões com a empresa de Raiara.

As contratações vão de fornecimento de material didático a sensibilização de moradores para projetos de esporte e qualificação profissional.

Página no Facebook de Raiara Pereira, desativada após apuração do UOL; abaixo, exemplo de contrato assinado por ela e Bárbara Carlos
Página no Facebook de Raiara Pereira, desativada após apuração do UOL; abaixo, exemplo de contrato assinado por ela e Bárbara Carlos Imagem: Reprodução/Facebook

Procurada, a ONG Promacom informou que suspendeu os contratos com a empresa de Raiara para análise (veja a íntegra das respostas da ONG e das empresas). No entanto, até a suspensão dos contratos, a firma já havia recebido R$ 5,7 milhões.

A Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), responsável pelo acompanhamento da execução dos projetos, disse que, "apesar de não termos ciência dos laços sociais e afetivos entre as pessoas que integram os fornecedores contratados pelas organizações, esses apontamentos serão averiguados pela universidade, que deve sempre priorizar a impessoalidade, a moralidade e a eficiência" (leia a íntegra do que disse a Unirio).

O caso exemplifica como uma rede de sete ONGs, proibidas de terem fins lucrativos, montou um esquema rentável para quem as comanda.

Nos últimos três anos, as ONGs foram irrigadas com quase R$ 500 milhões em emendas parlamentares para tocar projetos de esporte, capacitação profissional e castração de animais com suspeitas de desvio de dinheiro.

O UOL mostra que ao menos dez empresas ligadas às ONGs receberam R$ 40,7 milhões dessas organizações para fornecimento de serviços e materiais. A reportagem identificou que essas dez firmas contratadas pela rede de ONGs pertencem a:

  • dirigentes ou representantes das próprias ONGs (atuais ou recentes);
  • pessoas ligadas a dirigentes das ONGs.
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Imagem: Arte/UOL
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Por meio do advogado Sérgio Júnior, a PS afirmou que Raiara "é filha biológica de Denise Consuelo". Ele defendeu a legalidade das contratações e disse que a dona da empresa "sempre atuou em diversos projetos sociais, atividades do terceiro setor e ações de impacto social".

Bárbara Carlos foi procurada por WhatsApp, mas não retornou o contato. Ela continuava como presidente da ONG até o início deste mês, segundo o site da Receita Federal.

De acordo com a Promacom, Bárbara Carlos pediu afastamento da presidência por motivos de saúde. A ONG encaminhou ao UOL documentos de pedidos de mudança da presidente protocolados entre 27 de junho e 1º de julho no Registro Civil de Pessoa Jurídica e na Receita Federal. Segundo a ONG, o novo presidente é Alcimário Soares da Costa Júnior. A Promacom diz, contudo, que ele assumiu o cargo em 27 de maio.

A troca de dirigentes foi feita após a ONG ter tomado conhecimento da apuração do UOL.

Raiara dos Santos Ramos Pereira
Raiara dos Santos Ramos Pereira Imagem: Reprodução / Facebook / Arte UOL

Quatro empresas, um endereço

Para prestar serviços à Promacom, foi formado uma espécie de conglomerado de empresas, todas com sede em um mesmo endereço: uma sala na rua México, no centro do Rio.

Além da PS Assessoria e Gestão, de Raiara Pereira, foram registradas lá a Unity Soluções e Serviços, a RC Gestão e Negócio e a RC Consultoria e Gestão, Comércio e Serviços.

As duas primeiras pertencem a Wilson Cândido de Carvalho Machado Júnior, amigo de Bárbara Carlos, e a última a Regina Saint'Clair da Cruz, que mora com a presidente da Promacom.

Onze contratos que essas empresas conquistaram junto à ONG Promacom foram resultado de pesquisas de preços apresentadas por elas e por uma outra firma que também funciona no mesmo endereço -- as ONGs fazem esses levantamentos sempre com três participantes.

A Promacom afirmou desconhecer que as empresas compartilham o mesmo endereço e que disputaram entre elas pesquisas de preço. A ONG disse que também suspendeu todos os contratos com essas firmas e que vai assumir as gestões dos projetos tocados por elas.

De salário de R$ 1.000 a contrato milionário

Depois da PS Assessoria e Gestão, com contratos no valor total de R$ 7,2 milhões, a Unity Soluções e Serviços (criada em agosto) aparece com contratos de R$ 5,9 milhões com a Promacom.

Apesar dos recursos milionários recebidos pela empresa, seu dono, Wilson Cândido Júnior, 28, não possui histórico de empresário de sucesso. Em fevereiro de 2022, por exemplo, o jovem foi demitido de um emprego de auxiliar de escritório com salário de R$ 1.180.

No dia 11 de abril, o UOL esteve na casa de Júnior, no bairro do Éden, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, mesma cidade onde a Promacom tem sede. Na casa simples, em uma região cercada por barricadas de traficantes, uma mulher informou que o jovem não estava na residência, ligou para ele e passou o telefone para a reportagem.

Júnior disse que estava em reunião e falaria posteriormente, mas não atendeu mais ao telefone. No dia seguinte, ele mandou, por mensagem, um endereço de email para envio de perguntas. Em 15 de abril, o advogado Lenersom Lima se apresentou, também por meio do WhatsApp, como representante do dono da Unity.

Lima disse que a empresa "possui um histórico comprovado de sucesso" e que Júnior tem "formação acadêmica e cursos complementares que contribuíram para a capacitação em áreas relevantes para os serviços prestados à ONG".

Também em 11 de abril, o UOL esteve na casa de Raiara Pereira, uma residência simples, nos fundos de um terreno em Vila Tiradentes, São João de Meriti.

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Entrada da casa de Raiara Pereira (à direita), dona da empresa PS
Entrada da casa de Raiara Pereira (à direita), dona da empresa PS Imagem: Ruben Berta/UOL

Após cerca de dez minutos de espera, Raiara disse que não poderia falar sobre sua empresa naquele momento, pois uma tia tinha acabado de falecer. Ela então pediu para que a reportagem esclarecesse as questões relativas à empresa dela com Wilson Júnior, da Unity.

Em 18 de abril, o advogado Sérgio Júnior entrou em contato com o UOL por WhatsApp como sendo o representante de Raiara.

A reportagem apurou que, em paralelo, um gestor de crise passou a dar as cartas para orientar os laranjas, donos das empresas no papel.

Raiara restringiu suas redes sociais e tirou do ar a definição profissional de "mãe 24 horas". Em abril, o perfil foi desativado.

Também em abril, o UOL tentou localizar, sem sucesso, Regina Saint´Clair na residência em que declarou morar no bairro da Tijuca, zona norte do Rio, quando registrou sua empresa.

Posteriormente, a reportagem descobriu que ela mora com Bárbara Carlos, na Baixada Fluminense. Regina foi procurada por WhatsApp e email, mas não retornou. O espaço segue aberto.

Novo presidente dirigia ONG ligada à Promacom

A Promacom iniciou em maio os trâmites para tirar a mãe de santo Bárbara Carlos da presidência da ONG.

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Alcimário Júnior, que a substituiu, foi candidato a vereador pelo PT em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, em 2020, mas não se elegeu. Ele já teve cargos comissionados na Alerj (Assembleia Legislativa do RJ) e no governo estadual. No site da Receita, ainda aparece como presidente de uma outra ONG, o IBGPP (Instituto Brasileiro de Gestão de Políticas Públicas).

No ano passado, o IBGPP chegou a dar um atestado de capacidade técnica para a Promacom usar em convênios com órgãos públicos. O documento serve como uma prova de que a ONG tem capacidade de prestar serviços com eficiência.

A Promacom afirmou que Alcimário deixou a presidência do IBGPP, com registro em ata, em 8 de junho. A ONG disse que o atestado emitido pelo IBGPP se refere a um trabalho em conjunto voltado para a população de rua em Nilópolis, na Baixada Fluminense.

Também segundo a Promacom, seus projetos são realizados "sem distinção partidária, conforme pode ser visto no histórico de emendas parlamentares que recebemos".

R$ 1 milhão para sensibilizar moradores

Os serviços prestados pelas empresas ligadas a Bárbara Carlos para a Promacom têm em comum o fato de serem de altos valores e difícil aferição: vão de síntese de dados sociais a sensibilização de moradores, passando por monitoramento e treinamento, principalmente de projetos de capacitação profissional.

A PS Assessoria e Gestão, de Raiara Pereira, conquistou no início do ano, por exemplo, um contrato de R$ 1 milhão para "sensibilizar moradores" a aderirem ao projeto Capacita RJ, que oferece cursos como barbeiro, cuidador de idosos e design de sobrancelha em parceria com a Unirio. Entre os serviços, estavam distribuição de panfletos sobre o projeto, captação de agentes comunitários e reuniões pedagógicas.

Em 12 de janeiro, a PS já havia recebido meio milhão de reais, apesar de o Capacita RJ só ter começado a divulgação de inscrições em redes sociais no dia 17 do mesmo mês. O restante do valor foi pago em 1º de fevereiro.

No mesmo projeto, a empresa assinou outro contrato de R$ 1 milhão para treinamento, ainda em andamento.

Os R$ 2 milhões representam 35% do valor total de R$ 5,8 milhões que a Promacom recebeu de uma emenda da bancada de deputados do RJ para o Capacita RJ.

Apesar de afirmar que suspendeu o projeto de sensibilização de moradores, a ONG se disse satisfeita com os objetivos alcançados pelo Capacita RJ -- 640 pessoas formadas, 2.142 à espera dos cursos e 18.120 que manifestaram interesse -- e afirmou ter certeza de que os serviços foram executados.

"Os números de formandos e o cadastro de reserva citados acima podem ser comprovados pela ata de presença assinada pelos alunos, com seus respectivos CPFs."

O advogado Sérgio Júnior, da PS, disse que "foram elaborados relatórios detalhados que descrevem todas as atividades realizadas, os resultados alcançados e as métricas de avaliação utilizadas". "Importante ressaltar que o projeto ainda está em andamento, pode ser acompanhado pelas redes sociais, através do instagram @capacitarj e @capacita_rj_unirio", completou.

No Qualifica Meriti, projeto também da Unirio com recursos da bancada de deputados do RJ, a PS recebeu, de uma só vez, em dezembro, R$ 919 mil para fornecimento de material didático sem qualquer especificação do que seria ou do valor unitário.

Sem detalhar o que seria o material vendido, Sérgio Júnior disse que a PS "está cumprindo todo o cronograma de trabalho, o qual possui datas pré-definidas no edital de contratação e que ainda não foi finalizado".

Indícios de superfaturamento em serviços

Entre todos os 66 contratos assinados pelas ONGs com empresas para o serviço de "monitoramento dos projetos", no período analisado pelo UOL (2021 a 2023), a PS foi a que apresentou os maiores valores, bem acima dos demais.

Os dois maiores contratos -- os quais foram assinados com a Promacom -- custaram R$ 839 mil cada (R$ 69,9 mil por mês no período de um ano). Para se ter uma ideia, a ONG que chegou mais próxima desse valor foi a Con-tato, com um contrato de R$ 625 mil por 16 meses com a empresa LP Rio (R$ 39 mil por mês).

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Ao todo, 59 contratos desse serviço (90%) não passaram de R$ 400 mil, com média de R$ 112 mil.

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Imagem: Arte/UOL

Dirigentes de ONGs faturam com empresas

O UOL localizou casos em que os próprios dirigentes de ONGs faturam fornecendo serviços de sua empresa para outra ONG da mesma rede.

Diretora executiva do ICA (Instituto Carioca de Atividades), Adailza Maria dos Santos, conquistou contratos no valor total de R$ 1,4 milhão do Instituto Realizando o Futuro, por meio da empresa Iza Produção de Eventos.

A sede registrada na Receita é uma casa na zona norte do Rio onde a reportagem esteve em março e foi informada por vizinhos que Adailza não morava lá havia ao menos dois anos.

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Por email, ela disse que não há impedimento para que diretores de ONGs possuam outras atividades. "O que não é permitido e jamais foi realizado é [a empresa dela] prestar serviços para o ICA", afirmou.

As ONGs fazem parte de uma mesma rede, tendo inclusive o ICA repassado R$ 2,7 milhões em verba federal ao Realizando o Futuro para contratação de pessoal.

Por email, o ICA afirmou que, "desde que o fornecedor ou prestador de serviços não seja vinculado à ONG, não há nenhuma ilegalidade nisso".

A empresa AF Assessoria e Soluções, que já pertenceu ao presidente da Realizando o Futuro, Felipe Dias do Nascimento, também foi contratada pelas ONGs ICA e Con-Tato para serviços de monitoramento e treinamento, num total de R$ 71 mil.

O Realizando o Futuro disse que Nascimento não é mais dono da empresa desde maio do ano passado. No entanto, quando a firma foi contratada pelas ONGs, ele ainda era o dono.
ONG recebeu R$ 37 mi das próprias ONGs

Quem mais recebeu recursos da rede foi uma das próprias ONGs: o Instituto Crescer com Meta. A Con-Tato e os institutos Fair Play e Realizando o Futuro pagaram R$ 37,6 milhões à ONG para a contratação de pessoal.

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Apesar dessas contratações serem legais — a chamada atuação em rede —, a estratégia acaba criando uma camada a mais para dificultar a transparência.

Nesses casos, a lista das pessoas contratadas pelo Instituto Crescer com Meta não fica disponível publicamente, ao contrário do que acontece quando a ONG faz diretamente a contratação, o que pode terminar servindo para que cabos eleitorais ligados a políticos façam parte dos projetos sem chamar a atenção.

Por email, o Crescer com Meta afirmou que "a subcontratação é legal e permitida pela legislação e toda documentação necessária para prestação de contas foi devidamente enviada pela nossa instituição".

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