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Bernardo Machado

Disputa das comparações: Bolsa Família, Auxílio Emergencial e Renda Brasil

Colunista do UOL

09/09/2020 04h01

Após a divulgação de pesquisa Datafolha sobre a aprovação do governo de Jair Bolsonaro, muitos analistas creditaram no auxílio emergencial a melhora da popularidade do presidente. Essa narrativa logo circulou pelos bites e no (mascarado) boca a boca. Embora a associação faça sentido intuitivo, ainda precisa ser comprovada por pesquisas. Além dela, por sinal, outras duas aparecem conectadas: a comparação entre auxílio emergencial, o Bolsa Família e o Renda Brasil, e a projeção de que esse tipo de programa garantirá a reeleição de Bolsonaro em 2022. Os pressupostos dessas análises merecem alguns comentários.

Emergência e popularidade

"O auxílio emergencial fez muita diferença na vida das pessoas, muitas receberam R$ 1.200 e utilizaram esse valor não apenas para alimentação", conta Viviane Mattar, pesquisadora da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Em sua pesquisa, em uma favela na capital fluminense, ela conversou com moradores que lhe contaram como o auxílio possibilitou uma melhora na situação de extrema pobreza. Como a maioria das mulheres da região é beneficiária do Programa Bolsa Família — e este já precisava ser expandido mesmo antes da pandemia —, algumas das pessoas realizaram aproximações entre as duas ações do governo. "A comparação é inevitável, pois [o auxílio emergencial] possibilitou sair da situação de fome, comprar o gás e ainda fazer pequenos reparos em suas residências, que em sua maioria, são produzidas com restos de materiais descartados no lixo", descreve.

A adição de renda pode ter sido responsável pelo aumento momentâneo da popularidade do presidente; ntretanto, os cortes e congelamento das filas do Bolsa Família igualmente se tornaram realidade, explica Mattar. Algumas famílias não receberam o auxílio emergencial pela dificuldade do uso do aplicativo e pela pouca comunicação entre as ações federais e o serviço de assistência social local, por isso ficaram "sem qualquer proteção social, e se colocaram avessas ao governo atual", comenta.

A pesquisadora considera prematura a afirmação de que o auxílio emergencial estaria diretamente ligado ao desempenho do presidente nas pesquisas de opinião mais recentes: "precisamos pensar no futuro e em como o atual governo vai avançar no que diz respeito ao PBF [Programa Bolsa Família], ao auxílio emergencial e ao que estão chamando de Renda Brasil, para ter um apontamento mais verossímil em relação à popularidade do governo".

O cientista político Pedro Mundim, professor da UFG (Universidade Federal de Goiás), especialista em comportamento eleitoral, destaca: "um determinado perfil de eleitor, que até então não estava tão alinhado ao governo, começou a se alinhar. A explicação mais imediata foi justamente o auxílio emergencial. Pode ser, é possível. Mas não tem como descartar outras coisas que poderiam explicar da mesma forma". Dentre os fatores a serem considerados estão o arrefecimento da preocupação social com a pandemia (embora ela continue existindo), os impactos econômicos após o fim do auxílio emergencial, as alianças com políticos de diversos partidos capilarizados em governos locais. " Tem que esperar um pouco mais para saber", pondera Mundim.

A batalha das comparações

De toda forma, o auxílio emergencial vem sendo comparado ou aproximado ao Bolsa Família, seja pelo próprio Governo Federal, pelas pessoas beneficiadas, como também por analistas do debate público. Há inclusive a proposta de um novo programa denominado Renda Brasil a substituir o PBF.

De um lado, é possível inferir que as comparações feitas ao Bolsa Família procuram desfrutar da popularidade do programa. Afinal, apesar das críticas, o PBF guarda uma aprovação considerável na opinião pública. Em 2014, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom-PR) realizou uma pesquisa de opinião a respeito do tema; com base nos dados coletados, Pedro Mundim e outros três colegas identificaram algumas tendências e publicaram os resultados em artigo de 2019. Segundo o estudo, 62% dos entrevistadores eram a favor do programa, 21% contra e 16% nem a favor nem contra. Além disso, enquanto o grupo formado por pessoas de renda mais alta, mais escolarizadas e mais velhas tendia a ser contra o programa, o formado por pessoas socioeconomicamente mais vulneráveis — e por isso mesmo mais propensas a serem beneficiárias — tende a apoiá-lo.

Além disso, as comparações ao PBF também parecem querer mimetizar a solidez de seu desenho enquanto política pública. Isso porque o Bolsa Família resultou da unificação de quatro benefícios já existentes (Bolsa Escola, Auxílio Gás, Bolsa Alimentação e Cartão Alimentação). Em sua formulação, o programa concentrou-se em três dimensões para o enfrentamento da fome e da pobreza, conta a pesquisadora Flávia Ferreira Pires, da Universidade Federal da Paraíba, em artigo de 2014: "1) o alívio imediato da pobreza, por meio de transferências diretas de renda; 2) o apoio ao desenvolvimento das capacidades das famílias por meio de programas complementares, como o Peti (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil); e 3) o reforço ao exercício de direitos sociais básicos como saúde e educação, através das condicionalidades". Viviane Mattar completa: "O Programa Bolsa Família é o maior programa de transferência de renda do mundo, já organizado, operante, eficiente, que conta como base o Cadastro Único e garante que a renda chegue a toda uma população em vulnerabilidade social".

Tais comparações e aproximações não parecem ingênuas, mas sim estratégicas e não apenas do ponto de vista econômico, mas simbólico. "Quando os eleitores estão tomando a sua decisão, eles estão comparando as opções. E, para poder fazer isso, eles precisam acessar algum tipo de ponto no qual os partidos se diferenciam", avalia Pedro Mundim. Nas eleições de 2002, por exemplo, o PT e o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva fizeram um movimento estratégico ao lançar a Carta ao povo brasileiro, avalia Mundim. "Ele estava eliminando a diferença entre o PT e o PSDB do ponto de vista da condução da economia. Na hora que o PT faz isso, automaticamente faz o eleitor comparar os partidos numa outra perspectiva." Na época, a comparação se deslocou para o desemprego: "sobre os tucanos, os eleitores tinham uma informação: o desemprego cresceu". Como o PT era o partido dos trabalhadores, essa dimensão se tornou uma vantagem.

Já em 2020, o cenário se alterou. "O problema de um outro partido ter assumido o governo é que, se esse partido mantém o Bolsa Família, posso dizer que o Bolsa Família vai deixar de ser aquilo que diferencia o PT dos demais. Então, na verdade, as pessoas vão começar a olhar para outras questões, combate à criminalidade, desempenho na área da saúde, desempenho na condução da economia", comenta o professor.

Por sinal, as comparações podem objetivar reduzir as inseguranças. Mundim explica como uma corrente analítica da Ciência Política, defendida pelo pesquisador César Zucco, da FGV (Fundação Getúlio Vargas), produziu dados empíricos que mostram como "eleitores de baixa renda sempre tenderam a votar com o governo simplesmente porque, como são mais dependentes de políticas governamentais, qualquer tipo de mudança de gestão tende a gerar algum tipo de incerteza". Dessa forma, quanto maior a incerteza em relação a um partido ou candidato/a, menor a probabilidade de eleitores depositarem o voto.

No atual cenário, parece que o que está em jogo, dentre muitas dimensões, são as comparações possíveis e desejáveis. O atual governo, ao promover uma comparação entre o auxílio emergencial, o Bolsa Família e o Renda Brasil, está disputando a gramática política de modo a constituir um cenário favorável. O projeto não tem sido tranquilo, até mesmo porque o Renda Brasil, particularmente, ainda não existe. De toda forma, o plano pode não se efetivar. "Pode ser que esses eleitores, que são beneficiários do Bolsa Família, sejam eternamente gratos ao PT e de fato vão manter esse vínculo numa próxima eleição", pondera Mundim, "mas a gente só vai ter a resposta com uma pesquisa pós-eleitoral".