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Bernardo Machado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Palavras que faltaram no Brasil de 2021, de debochismo a 'polaricecado'

Jair Bolsonaro oferece cloroquina a uma ema, em reprodução de meme feito em foto de Sérgio Lima para o Poder 360° - Reprodução
Jair Bolsonaro oferece cloroquina a uma ema, em reprodução de meme feito em foto de Sérgio Lima para o Poder 360° Imagem: Reprodução

Colunista do TAB

12/12/2021 04h01

Já é tradição. No final do ano, alguns dicionários listam as palavras mais correntes ao longo dos doze meses. Em 2021, o Dicionário Collins selecionou a sigla NFT como a palavra do ano, e chamou atenção para a presença dos termos "cringe" e "cheugy". Apesar de reconhecer o trabalho, senti falta de palavras específicas do vocabulário nacional, isto é, aquelas que poderiam qualificar o que experimentamos em terras brasileiras. Nesse sentido, vale chamar a atenção para algumas que já existem e até inventar outras para o que ainda não ganhou nome, mas está por aí.

Sindemia

Sindemia é um termo já corrente em espaços acadêmicos e políticas públicas. A categoria, criada pelo antropólogo e médico norte-americano Merrill Singer, nos anos 1990, ajuda a reconhecer que fatores sociais, políticos e estruturais são decisivos para as desigualdades na área da saúde. Por vezes, são até mais impactantes do que fatores biológicos ou as próprias escolhas pessoais.

É o que revela o relatório Raça e Saúde Pública, cujos resultados apontam o excesso de mortalidade de pessoas negras em relação a das pessoas brancas. Segundo o estudo, em 2020, o Brasil teve um excesso de mortalidade em todos os grupos — 270 mil pessoas que morreram acima do esperado para o ano, um incremento de 22%. No caso de pessoas negras, contudo, o aumento correspondeu a 28% e entre pessoas brancas o incremento foi de 18%. Nada mais justo do que empregarmos a palavra sindemia para descrever, de forma mais precisa, nossa situação calamitosa.

'Liberdadecídio'

Quando o assunto são as mortes no Brasil, algumas autoridades preferem estabelecer comparações perversas. Atual Ministro da Saúde, Marcelo Queiroga afirmou na última semana: "É melhor perder a vida do que a liberdade". Esse tipo de lógica parece exprimir ser factível aceitar a morte ou o extermínio de alguém em nome de uma liberdade genérica. Afinal, qualquer coisa seria melhor que exigir um comprovante de vacinação para visitantes no Brasil. A declaração pede a criação de um novo termo característico, o liberdadecídio — o raciocínio que aloca os dois direitos fundamentais (liberdade e vida) em polos opostos e incompatíveis.

'Polaricecado'

Aliás, o ministro, tal qual o presidente da República e alguns analistas, são seres obcecados pela polarização. A postura enquadra os fenômenos sociais, políticos e econômicos como extremos antagônicos e é avessa a nuances, debates ou contextos. Uma das derivações desse tipo de conduta resulta no doisladismo, a tendência em comparar um governo evidentemente antidemocrático com outros partidos de outro campo do espectro político. Jair Bolsonaro logo vira sinônimo de Luiz Inácio Lula da Silva, embora os dois tenham posturas bastante divergentes no que toca o respeito institucional.

'Terceiraviano'

A pessoa polaricecada costuma carregar outra característica: ser fã da terceira via, tal qual torcedora de time de futebol. Numa leitura dual da política, a ideia de uma avenida alocada exatamente no meio, diametralmente distante dos dois vértices políticos, torna-se não apenas uma vontade como uma espécie de utopia. Valeria questionar: esses alegados extremos se distanciam em quais termos? Os outros políticos em jogo se posicionam, em todas os aspectos, num ponto simetricamente distante das outras candidaturas? Segundo minha avaliação, trata-se de um arranjo mais complexo de jogos de interesse e de perspectivas políticas.

A metáfora da via — um caminho para o país trilhar em direção a um projeto — é pertinente e proveitosa. Contudo, vale considerar que as ruas podem ser asfaltadas ou esburacadas, algumas são paralelas, outras são apenas faixas de uma mesma avenida, outras são, inclusive túneis em direção ao subterrâneo ou atalhos que dão em ruas sem saída. Enquanto não qualificarmos melhor essas alternativas políticas, ficaremos num jogo de torcida organizada pouco producente.

Esperança parcimoniosa

De toda forma, parece pairar uma espécie de fé econômica, aquela que não quer se entusiasmar em demasia e, assim, evitar a corrosão via inflação. Uma esperança que teme ser destruída por uma outra variante ou por um golpe planejado do presidente em busca de sua manutenção no poder.

O ano de 2022 se aproxima de nós e provoca um sentimento ambivalente. Se, por um lado, as dificuldades econômicas parecem continuar, somadas a um agravante eleitoral, podemos respirar graças a uma espécie de atenuante vacinal.

Debochismo

A força para continuar parece se equilibrar num hábito sustentado, em parte, pelo deboche. A postura é garantida por memes, vídeos e obras de arte que conseguem sintetizar o absurdo instituído.

Num caso recente, passou a circular uma versão de um comercial do "Domingão do Faustão" dos anos 2000. Nele o apresentador está no meio do programa, com dançarinas ao fundo, quando ele começa a crescer tanto que extrapola o tamanho do estúdio e consegue, com poucas passadas, sair de São Paulo, ir para o Rio de Janeiro, às Cataratas do Iguaçu e à Esplanada dos Ministérios. Na nova versão, Faustão é ao mesmo tempo a taxa Selic e a inflação que, ao crescer, com a pandemia dançando ao fundo, explode o teto chamado Paulo Guedes e o estúdio denominado "governo Bolsonaro".

No Brasil, quando escândalo vira deboche, temos um indício de que o fenômeno está sendo elaborado de tal forma a ganhar um teor palatável. É uma mistura de ironia, redenção, catarse e até resistência.

O grande risco de um governo é, justamente, esse tipo de deboche. Dele é difícil vencer, dele é difícil escapar. Isso porque o debochismo sinaliza que não se pode levar a sério nada que é dito ou feito por determinadas figuras. De deboche em deboche, nos aproximamos do final do ano com uma espécie de esperança parcimoniosa de que 2022 será melhor.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL