Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Em tempos do irreal 'racismo reverso', precisamos é falar de cotas
Em muitas ocasiões, polêmicas agem para desviar, enviesar e bagunçar uma discussão. Em vez de seguir no debate a respeito do "racismo reverso" — já esmiuçado por outros pensadores —, vale tratar do que parece estar oculto ou subtendido: em 2022 está prevista a revisão da chamada Lei de Cotas. Este sim é o assunto que parece rodear pânicos e merece entrar, de forma qualificada, no debate público.
A revisão
Desde 2012, a lei original previa a revisão, no prazo de dez anos. Em 2016, a lei 13.409/2016 fez uma alteração retirando a atribuição da tarefa do Poder Executivo. Em ambos os casos, contudo, não ficou detalhado o procedimento, as consequências ou os critérios que deveriam servir de parâmetro para a avaliação. "A lei não tem uma validade de dez anos. O texto da lei prevê uma revisão, mas não condiciona a continuidade da política a ela", explicam Márcia Lima e Luiz Augusto Campos, docentes da USP e da UERJ, respectivamente. Ambos atuam no Consórcio de Acompanhamento de Ação Afirmativa 2022 (CAA22) coordenado pelo Núcleo Afro do Cebrap e pelo Gemaa do Iesp-Uerj, uma articulação de núcleos de pesquisa que vem sistematizando o conhecimento acadêmico sobre as conquistas e os desafios da política de cotas, a partir de dados de distintas universidades. Caso não exista nenhuma nova legislação, a lei atual permanece em vigor, isto é, as cotas não podem ser revogadas automaticamente.
Diagnóstico
Para avaliar uma política pública é preciso ter em mente quais eram os problemas enfrentados, as estratégias adotadas e os objetivos pretendidos. Até meados dos anos 2000, a expansão universitária no país havia beneficiado sobretudo os grupos mais privilegiados da sociedade, conforme explica o pesquisador Adriano Souza Senkevics em artigo recente. Isso porque as vagas abertas favoreciam quem já tinha condições de ingressar nas faculdades públicas. Até 1995, cerca de 75% do corpo discente (alunos) era formado por jovens oriundos dos segmentos mais ricos da sociedade.
Ações
A composição se alterou, à medida que algumas instituições de ensino superior começaram a adotar políticas de ação afirmativa, como é o caso da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), em 2003, e da UFBA (Universidade Federal da Bahia), em 2004.
Após a promulgação da lei, em 2012, o padrão de ingresso sofreu uma importante mudança. "Pretos e pardos respondiam por cerca de 30% das matrículas em 2001 e hoje são mais de 50%", destacam Márcia Lima e Luiz Campos; "já os estudantes oriundos dos 20% mais ricos do Brasil eram 69% dos matriculados no ensino superior, e hoje não somam 40%", complementam.
Além disso, estudos diversos coletados e produzidos pelo Consórcio demonstram que cotistas têm desempenho acadêmico bastante similar aos não cotistas, assim como taxas de evasão menores.
Desafios
Dados para avaliação são de difícil acesso, comentam Lima e Campos. "O Sisu (Sistema de Seleção Unificada) foi muito importante para o processo de mudanças nas formas de ingresso nas instituições de ensino superior e é quase impossível acessar os dados desse sistema", o que demonstra não ter se consolidado um bom encaminhamento para a avaliação. Segundo ambos, é preciso manter a política e "criar também um sistema de monitoramento que nos permita fazer uma avaliação mais profunda de todo esse processo".
Será o fim?
Embora seja uma política temporária desde seu início, a vigência depende da reversão do problema que a motivou, isto é, sanar a desproporção e viabilizar o mesmo padrão de ingresso sem a política. Para se ter uma ideia, países como a Índia possuem políticas similares que já levam 73 anos; nos Estados Unidos, as ações têm mais de 50, e na África do Sul, mais de 25. Aliás, não basta garantir o ingresso. É importante realizar um investimento nas políticas de permanência estudantil, afinal, "a reserva de vagas é apenas uma etapa das políticas de inclusão no ensino superior", destaca o Consórcio.
Racismo
Além de reduzir as desigualdades educacionais, as cotas também colocaram o racismo no centro do debate público, explicam Lima e Campos. "De 2012 para cá, diversas esferas da sociedade adotaram ações afirmativas, inclusive setores da elite e da imprensa." Apesar disso, os pesquisadores ponderam: ?não está claro, contudo, em que medida esses setores aceitaram a ideia de cota racial ? aplicada depois dos critérios socioeconômicos de renda e ensino público - como uma política vital para nossa democracia?.
Polêmicas
Recentemente o termo racismo reapareceu, mas dessa vez sugerindo a existência de um espelhamento na violência de pessoas negras contra brancas. A respeito do assunto, Lima e Campos comentam: "O que chama atenção é a necessidade de desqualificar. Durante décadas intelectuais e militantes disputaram a narrativa sobre a existência ou não de racismo no Brasil". Se hoje em dia já não é mais possível negar a existência de práticas racistas no país — resultado de pesquisas, debates e avanços —, "a ideia de racismo reverso é uma forma de esvaziar e banalizar as históricas consequências do racismo no país", analisam.
"O racismo não é apenas um conjunto aleatório de atitudes preconceituosas, mas uma discriminação sistemática contra um grupo", explicam Lima e Campos. Nesse sentido, usar uma expressão como "branco azedo" não faz com que brancos sejam mais suscetíveis ao assassinato ou ao encarceramento. Dessa forma, ela não pode ser equiparada a expressões racistas contra negros.
Próximos passos
A revisão da lei em 2022 representa uma oportunidade para aperfeiçoar a política e não um caminho para retrocessos. Trata-se de um assunto delicado, urgente e pertinente que demorou para estar no centro do debate e de lá não deve sair, até que estruturas complexas sejam de fato alteradas.
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