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Bernardo Machado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Sem carnaval, o ano começou mais cedo -- e também mais confuso

Colunista do UOL

27/02/2022 04h00

Adianto que não sou um entusiasta carnavalesco — motivo de desgosto entre quem me quer bem. Mesmo assim, não posso negar, sem os eventos característicos interrompendo o calendário na força do confete, a temporalidade ficou estranha. Apesar de ainda termos a segunda, a terça e a metade da quarta como feriado, além de alguns desfiles e festas privadas, a festa oficialmente cancelada (motivada por corretas decisões sanitárias) alterou alguma coisa profunda na temporalidade nacional. Quiçá, global.

Limbo

O intervalo entre o réveillon e o Carnaval era caracterizado por uma espécie de marasmo. Sem grandes acontecimentos, havia um consenso respeitoso: "o ano no Brasil só começa depois do Carnaval". O período era perfeito para colocar em dia a leitura, o sono e o tédio. Aliás, o tédio faz uma tremenda falta: o aborrecimento causado pela ausência de eventos significativos, de estímulos incessantes e de informações (nem sempre essenciais) sobre assuntos relevantes e frívolos. Ao suprimir o Carnaval, teremos eliminado parte de nosso direito ao ócio?

Rito

O caráter simbólico da festa não pode ser, tampouco, desprezado. Afinal, no período carnavalesco está autorizada uma diversão singular — leve e ácida, ingênua e sensual. Suspendem-se temporariamente as amarras cotidianas e se permite o jogo e a espontaneidade, conforme analisou o antropólogo Roberto DaMatta no já clássico livro "Carnavais, Malandros e Heróis".

Nesse intervalo de tempo, entramos em contato uns com os outros, pelas ruas, numa festividade caoticamente inteligível. Ali naquele curto intervalo entre a sexta pré-carnaval e a Quarta-Feira de Cinzas, uma sequência inusitada de acontecimentos costuma surpreender. O furor tem um compromisso com o imprevisto e as fantasias agem como metáforas sobre nossa condição tragicamente cômica (ou comicamente trágica, conforme preferir).

Calendário comprometido

Por sinal, se o ano só começa depois do Carnaval, onde estamos? Depois do dia 02 de março, encerraremos 2021 ou ele irá se perpetuar?

De minha parte, não faço questão do ano passado. Aliás, como não tivemos carnaval em 2021, será que 2020 de fato acabou? Ou ele se arrasta até hoje? Tenho certeza de que 2019 fechou a conta. Já o restante, guardo minhas dúvidas. De toda forma, sem o carnaval, 2022 ficou ansioso e antecipou os eventos.

Aceleração

Desde o início de janeiro, as eleições já estão na boca do povo. Embora ainda não tenhamos debates ou planos de governo (e outubro demore mais de seis meses para chegar), o ritmo de campanha atropela a agenda nacional. Nas redes sociais, nas manchetes de meios de comunicação e no papo descontraído nas ruas fala-se dele: o voto.

Em 2022, parece que presenciaremos a seguinte avaliação de eleitores e eleitoras: "já conheço, já sei quem é, me dá a urna que quero acabar logo com isso". Sem grandes novidades nas candidaturas — e sem espaço para elas — o país antecipa sua decisão. Nesse caso, o Carnaval não contribuirá para desanuviar as mentes e os corpos nesse ano tão intenso.

Aleatoriedade

Cancelada a festa, corremos o risco de ficar numa sequência muito previsível de eventos, geralmente colados ao trabalho e às responsabilidades. Parece que a pandemia, com sua personalidade autocentrada, quer assegurar toda a atenção para si, reinventado suas variantes para não sair dos holofotes.

Brasilidade

Sem Carnaval ainda há Brasil? Num momento de baixa da imagem do país no cenário internacional, um bom Carnaval poderia melhorar os ânimos e o chamado soft power brasileiro. Mas sem a festança fica difícil se reapresentar frente ao mundo. Sobra o que? Arminha de miliciano? Somos mais e melhores do que isso.

Mesmo para o próprio país, os dois anos sem Carnaval parecem comprometer as tradições que embalam como gostamos de nos imaginar e inventar. Quiçá estamos esquecendo um pouco, e aos poucos, de como gostamos ser. O carnaval é, afinal, uma espécie de momento em que se repactuam ideias do que é o país e suas potências — via alegria e encontro.

Com Carnaval, ao menos nos lembramos de como festejar pode ser bom. Ao colocar as fantasias para andar na rua, dançar e dar risada, garantimos um alívio e um refresco. Por sinal, há uma quantidade expressiva de pessoas que vivem de Carnaval em escolas e blocos pelo país (e cuja vida está profundamente afetada).

Não se trata de criticar as decisões sanitárias — corretas — que suspenderam o festejo. Mas lamentar a situação em que nos encontramos. O Carnaval é essa espécie de marco temporal e síntese de imagem nacional que tem sofrido profundamente com a pandemia. Ficam meus votos para que ele retorne triunfante no próximo ano, para nos fazer reaver o que há de único em nós.