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Bernardo Machado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Pronomes neutros: linguagem inclusiva aumenta nosso repertório linguístico

Colunista do UOL

29/11/2021 04h00

"Pessoas trans não estão pedindo nada mais do que uma linguagem que reconheça seu desconforto com a regra e com a estrutura linguística dada" explicou Brune Medeiros, travesti não-binária e integrante do Núcleo de Estudos em Discursos e Sociedade da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). O assunto está presente na arena pública e gera as reações as mais diversas — como projetos de lei, decisões judiciais e afins.

No universo dos podcasts, o Larvas Incendiadas tratou do tema recentemente, bem como algumas novelas e programas de TV. No último dia 17, por exemplo, o ministro Edson Fachin do STF (Supremo Tribunal Federal) suspendeu uma lei de Rondônia que proibia o uso da linguagem neutra em escolas públicas e privadas do estado.

Uma história antiga

O debate parece novo, mas não é. Pesquisas no campo da linguística oferecem indícios de que na língua proto-indo-europeia (aquela que deu origem à maioria das línguas do continente), a principal divisão operante era aquela que separava seres animados e inanimados, conforme explica o pesquisador Rodrigo Borba, da UFRJ. Segundo o linguista, "em algum momento da história, esses falantes passaram a produzir categorias mais complexas à medida que outras necessidades sociais e culturais foram surgindo. Os seres animados começaram a ser divididos entre masculino, feminino e, em alguns casos, neutro".

Como resultado, as línguas latinas, derivadas daquela mais antiga, passaram a apresentar o gênero gramatical, mas o organizam de formas variadas: "o francês, o português e o espanhol têm marcações gramaticais para o feminino e o masculino", comenta Borba, "o romeno tem três categorias: masculino, feminino e neutro". Curiosamente, mesmo dentro dessas línguas o gênero gramatical não é exatamente equivalente, afinal, enquanto em português, "borboleta" é gramaticalmente feminino, em francês, "papillon", é masculino.

Masculino genérico

Como uma língua é, em última instância, uma invenção, a estabilização das regras numa gramática passa também por escolhas técnicas e, também, políticas. O linguista Claude Vaugelas (1585-1650), por exemplo, — um dos fundadores da academia francesa —fez questão de sedimentar e naturalizar esse processo histórico. Conforme conta Borba, Vaugelas escreveu que na gramática latina, o gênero masculino seria naturalmente mais nobre, e por isso, deveria predominar todas as vezes que o masculino e o feminino se encontrarem juntos. Isto é, diante de um grupo com 100 mulheres e dois homens, o bom falante da língua francesa deveria dizer "bom dia a todos". Esta forma de enunciar ficou conhecida como "masculino genérico".

Novas demandas

Nem todo mundo ficou satisfeito com essa formulação. Na década de 1970, com fortalecimento institucional do movimento feminista e as reflexões propostas por estudantes em maio de 1968, o debate sobre a linguagem tornou-se assunto, sobretudo em países como Estados Unidos e França. "O movimento destacou como mulheres eram subrepresentadas linguisticamente. Isto é, uma língua inclinada a tornar as mulheres invisíveis, uma linguagem sexista", explicita Brune Medeiros.

No Brasil, o tema ganhou relevância durante a democratização do país, sem grande alarde ou teorização, conforme relembra Borba. Neste período emergiram algumas estratégias para contornar o masculino genérico, como as formas coordenadas: "professores e professoras" ou "professoras e professores". Outros modelos também foram aventados: ao invés de falar "os alunos", tornou-se uma opção utilizar palavras não marcadas como "discentes" ou "estudantes", isto é, aquelas que não denotam gênero explicitamente.

O X da questão

Desde então, as estratégias para a visibilização, a neutralização e a contestação das formas da língua se ampliaram. Uma das primeiras surgiu por volta dos anos 2000, com o uso do "@", como em "professor@s" — uma abordagem mais econômica do que a coordenação masculino-feminino.

Logo em seguida, contudo, outras reflexões ganharam força. O movimento trans e o movimento queer passaram a pautar que a língua não é apenas sexista, mas sim binarista. Isto é, ela tem a tendência de alocar em dois polos binários a existência das pessoas tornando impossível a nomeação de quem não se identificava com o masculino ou o feminino.

O objetivo era "criticar uma estrutura que essencializa e dicotomiza a língua em dois gêneros: masculino e feminino", explica Medeiros. É nesse contexto que surgem outras possibilidades criativas, como o uso do "x" — como em 'professorxs'. Mais recentemente, essa estratégia vem recebendo críticas por ser razoavelmente difícil de ser dita, ficando praticamente restrita à escrita — e por não conseguir ser lida pela maioria dos softwares para pessoas com deficiência visual.

Mais pessoas, mais línguas

"Embora a não-binariedade de gênero não seja um fenômeno novo, a internet possibilitou que essas pessoas se encontrassem e problematizassem o fato de o português reconhecer somente dois gêneros com os quais pessoas não-binárias não se reconhecem" destaca Borba. Diante disso, as pessoas elaboraram outras formas que podem ser faladas e escritas. Deste caldo de debate surge o uso do 'e' como em 'alunes', 'todes' etc., além de novos sistemas pronominais como o "ile" "dile", os chamados "neo-pronomes", expõe Brune Medeiros.

Acrescentar

"O que acontece é um processo de adição de recursos ao repertório linguístico" comenta Rodrigo. "São estruturas que vamos usar e que vão existir uma ao lado da outra", avalia Brune, "não necessariamente uma é maior ou melhor e se sobrepõe a uma outra".

Embora o tema gere controvérsia, ele tem entrado, aos poucos no cotidiano. Há pessoas adotando enunciados como "bom dia a todos, todas e todes". Mesmo em anúncios de emprego, por exemplo, as chamadas têm mudado: "procura-se pessoa desenvolvedora", "procura-se pessoa advogada". Essa formulação neutraliza o discurso, respeita quem for se candidatar ao não colocar gênero no anúncio, destacam as pesquisas feitas no núcleo de que participam Rodrigo e Brune.

Uma demanda por reconhecimento de pessoas não-binárias aparece como uma oportunidade para discutirmos as amarras linguísticas antigas que podem, a todo momento, ser repensadas. Aliás, a ampliação da linguagem não merece ser vista como uma circunscrição, mas uma potencialidade e uma libertação.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL