Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Após dois anos, como está a criminalização da homotransfobia?
Em 13 de junho de 2019, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que as práticas LGBTIfóbicas se enquadram na Lei de Racismo (Lei 7.716/1989). De lá para cá, a criminalização da homotransfobia no Brasil ainda não é uma realidade, conforme aponta o relatório "LGBTIfobia no Brasil: barreiras para o reconhecimento institucional da criminalização" da ONG norte-americana All Out, com atuação em diversos países, e do Instituto Matizes. No dia internacional do orgulho LGBTI+, comemorado em 28 de junho, vale retomar o que é essa decisão e quais resistências ela tem enfrentado nos últimos anos.
O que é?
Devido à inércia do Legislativo, a Suprema Corte do país entendeu que os direitos fundamentais das pessoas LGBTI+ estavam desprotegidos, o que prejudicava o exercício da plena cidadania e também comprometia o princípio da dignidade humana.
A decisão foi tomada após avaliação do Mandado de Injunção 4733 - protocolado pela ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros) - e da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26. Na prática, quando o Supremo considerou a homotransfobia como racismo, a ofensa à coletividade LGBTI+ passou a ser enquadrada como discurso de ódio.
Por que racismo?
"Entende-se racismo como a inferiorização de um grupo social relativamente a outro", explica o advogado Paulo Iotti, um dos responsáveis pela defesa da pauta na corte. O doutor em direito constitucional ainda complementa: "trata-se de raça como dispositivo de poder para que o grupo dominante naturalize e inferiorize o grupo dominado para controlá-lo e eliminá-lo, conforme conceitualiza Achille Mbembe no 'Crítica da razão negra'".
No caso brasileiro, a decisão do STF define que o conceito de racismo ultrapassa aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos e alcança a negação da dignidade e da humanidade de grupos vulnerabilizados, compreendendo-o, assim, em sua dimensão social, explica o relatório "LGBTIfobia no Brasil".
Mas é preciso ressaltar dois aspectos. Primeiro, a repressão penal à prática da LGBTIfobia não alcança e tampouco restringe o exercício da liberdade religiosa — desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio. E, segundo, nem todo crime sofrido por uma pessoa LGBTI+ será identificado como homotransfobia. Nesse aspecto, torna-se requisito provar que a pessoa sofreu algum tipo de discriminação por motivação de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero.
Resistências
Para avaliar como a decisão vem sendo recebida e aplicada, o relatório da All Out e do Instituto Matizes entrevistou profissionais das polícias civil e militar, promotorias, defensorias, membros da magistratura, advocacia especializada em direitos LGBTI+ e militantes de todas as regiões do país. "A pesquisa é importante para acompanhar os primeiros anos da decisão do STF, observar os principais gargalos notados pelos agentes responsáveis e, assim, traçar algumas maneiras de superá-los", explica Arthur Fontgaland, diretor do Matizes.
A pesquisa identificou mais de 30 tipos diferentes de barreiras para a aplicação da criminalização da homotransfobia no Brasil. As dificuldades ocorrem em cinco pontos: na estrutura social, na ausência de transparência do Estado, nos procedimentos institucionais, na falta de reconhecimento jurídico e nos dilemas ocasionados pela pandemia.
"Toda minoria tem dificuldade de tirar uma lei antidiscriminatória do papel", afirma Iotti. "O fato de a gente ter a lei antirracismo por interpretação do Supremo e não uma lei votada pelo Congresso para a homotransfobia, me parece que é a menor das polêmicas." Segundo o relatório, um dos aspectos que gera considerável controvérsia no mundo jurídico diz respeito à resistência em reconhecer a injúria racial como um crime por motivação LGBTIfóbica.
Nas entrevistas realizadas, juízes e promotores entendem que o STF reconheceu a homotransfobia apenas como crime de racismo, isto é, uma ofensa voltada a uma certa coletividade, mas não como crime de injúria, que é direcionado à honra individual.
O advogado Iotti, contudo, explica. "É racismo contra o indivíduo. Inventaram essa tese inepta, ou de má-fé, de que a injuria racial não se aplicaria para a homotransfobia."
Conforme ele defende, não é possível separar a injuria racial do racismo, um conceito mais amplo para combater a discriminação. "O Supremo disse que os crimes por raça abarcam a homotransfobia. Que sentido faz a homotransfobia ser crime por raça, para aplicar a lei 7.716, mas não ser crime por raça para aplicar o Código Penal [que define a injúria racial]?".
Além disso, falta ao próprio Estado brasileiro transparência e vontade política, conforme explica Fontgaland: "há ausência de produção e sistematização de dados institucionais sobre a violência praticada contra as pessoas LGBTI+, bem como à dificuldade no acesso a tais informações, quando existentes".
Outra forma recorrente de obstruir o acesso da população LGBTI+ à justiça diz respeito à relativização da narrativa das vítimas. Em delegacias, agentes de segurança pública costumam recorrer ao argumento de que a pessoa denunciada não teve intenção de ofender. Resulta disso a descredibilização ou desconsideração do relato da vítima.
A pesquisa também constatou que as pessoas são desencorajadas em postos de atendimento e em delegacias. O mesmo ocorre com pessoas negras e mulheres que denunciam crimes de racismo e de violência doméstica. Por sinal, se a vítima da homotransfobia não conseguiu registrar o exato momento da agressão, ela costuma encontrar dificuldades para dar continuidade à denúncia.
Como efeito, pessoas LGBTI+ geralmente depositam um descrédito cético nas instituições de segurança e justiça. "Este quadro é muito mais grave quando se trata de pessoas trans, negras e/ou de classes populares, cujo acolhimento institucional ao serem vítimas de LGBTIfobia tende a ser ainda mais inadequado e ineficiente", explica Fontgaland.
As nuances do ódio
"Vai demorar um 5 ou 10 anos para conseguir avaliar com precisão como o Judiciário tem recebido a decisão do Supremo, porque só conseguimos pesquisar jurisprudência após a segunda instância", considera Iotti. Os sinais, entretanto, indicam que as resistências se manifestam de modos variados. Impera a percepção de que os crimes só existem perante um discurso de ódio literal. Isto é, formas menos explícitas — mas não menos recorrentes — de manifestações de ódio são reiteradamente deslegitimadas, sendo compreendidas como mera opinião ou como humor inofensivo.
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