Ausência de cheiros leva pacientes pós-covid a fazer treinamento olfatório
O café estava com gosto de água quente. Insatisfeito, Felipe Carvalho Leão preparou a bebida mais concentrada. Como continuava sem sabor, largou a xícara e foi trabalhar. Chegando ao Hospital das Clínicas, o otorrinolaringologista estranhou a falta do cheiro do lugar. "Ah! Então é covid", concluiu.
Era mesmo. Logo vieram as dores no corpo, o cansaço e a falta de ar. Sintomas leves que foram embora no quinto dia da quarentena. Mas seguiu sem paladar. Tanto fazia se comesse arroz ou feijoada. "A comida não tinha gosto de nada. Parecia que eu estava mastigando papel", lembra. Aos poucos, foi voltando a sentir os sabores, mas não os cheiros.
Vivendo num mundo sem odores, condição conhecida como anosmia, Felipe viu a rotina mudar. Tinha dificuldade de saber se alimentos como leite ou ovos estavam estragados. Mesmo atento aos prazos de validade e tempo de abertura das embalagens, pedia comida pronta para evitar riscos. E essa não era sua única preocupação. Como mora sozinho, ficava apreensivo quando recebia visitas. "Me desculpe, eu limpo minha casa, mas sem saber se está fazendo efeito. Se tiver alguma coisa cheirando mal, me avisa", advertia. Também ficava inseguro por não sentir o perfume e o desodorante que usava.
Um dia, ao limpar a casa, sentiu o aroma bem fraquinho do produto de limpeza. Mas era cedo para comemorar. Depois da anosmia, ele desenvolveu parosmia, disfunção que provoca um curto-circuito nos neurônios responsáveis pela percepção do olfato, alterando os cheiros. Sempre que passava pela Marginal do Tietê, Felipe não sentia o odor de esgoto, mas de madeira podre molhada. "Como se fosse um barco velho", define. Como se não bastasse, também teve fantosmia. Ou seja, percebia cheiros onde eles não existiam. Mais especificamente, de fumaça.
Como a covid-19 era muito recente em junho de 2020, quando Felipe teve a doença, os tratamentos para perda de olfato e paladar ainda estavam sendo testados. Decidiu fazer um, proposto por Marco Aurelio Fornazieri, professor de otorrinolaringologia da UEL (Universidade Estadual de Londrina). Passou a inalar aromas de café, cravo, mel, vinagre de vinho tinto, creme dental de menta, essência de baunilha e suco de tangerina concentrado. Depois de cerca de oito meses, recuperou totalmente o sentido.
Felipe, que atualmente tem 28 anos, trabalha no ambulatório do departamento de otorrinolaringologia do HC/FMUSP (Hospital das Clínicas e Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo). Na manhã da última quinta-feira (2), estava à espera de pacientes que vivem histórias parecidas com a sua. A reportagem do TAB é recebida por ele e pelo colega, Deusdedit Brandão Neto, 35, também da equipe. Ambos falam da batalha enfrentada por quem teve cheiros e sabores roubados pelo novo coronavírus.
Lembram de um dos pacientes atendidos, diagnosticado com parosmia. Para o homem, tudo cheirava a bala de morango, até carne. Outro, um sommelier que costumava participar de degustações às cegas, percebeu que estava com covid-19 num encontro com um casal de amigos. "Esse vinho aqui não tem graça", sentenciou. Como os companheiros discordaram, abriu a segunda garrafa, a terceira... E nada de perceber as nuances da bebida. Viu que alguma coisa estava errada e foi parar no ambulatório.
Perda de olfato é a principal queixa
Os consultórios não estão cheios. Um dos motivos é que os pacientes só procuram ajuda quando não aguentam mais o incômodo de não sentir nenhum cheiro. E não são poucos. Num estudo feito por Deusdedit e outros especialistas, publicado na American Academy of Otolaryngology - Head and Neck Surgery, 42,9% dos entrevistados com o diagnóstico da doença relataram ter anosmia. Apesar disso, adiam o quanto podem a ida ao médico, principalmente os que têm apenas uma redução do olfato, distúrbio chamado hiposmia ou microsmia.
O ambulatório também é frequentado por quem não suporta conviver com odores desagradáveis, com a ausência ou distorção de gostos e por profissionais que usam o olfato e o paladar como ferramenta de trabalho, como chefes de cozinha, degustadores e perfumistas. "A priori, na covid o impacto maior é no olfato, por conta da alteração olfativa. Alguns pacientes apresentam a questão da gustação, mas numa incidência menor", afirma o otorrinolaringologista.
Ainda passam por aqui pessoas que perdem o prazer de comer e emagrecem muito, ou engordam porque recorrem a alimentos muito salgados ou doces para sentir algum sabor. Além dos que desenvolvem ansiedade e depressão. "O olfato tem uma relação importante com uma área do nosso cérebro chamada sistema límbico, que é responsável por nos dar as emoções e os sentimentos. Ele está intrinsecamente relacionado com essas sensações de prazer e sentimentos. Para quem o perde, é natural sentir um impacto grande na qualidade de vida, porque deixa de ter a relação habitual que tinha com os cheiros", observa.
O paladar é composto pela gustação - capacidade de identificar o que é salgado, azedo, doce, amargo e umami - e pelo olfato. É a união de ambos que permite distinguir os diferentes sabores dos alimentos. A perda de um pode levar à do outro ou acontecer separadamente. "Pode ter só a perda da gustação, que é a ageusia, ou só do olfato. Mas consequentemente um vai interferir na percepção do outro. Estão interligados", ressalta Felipe.
Reaprendendo a sentir
Mesmo que a maioria das pessoas se recupere sem tratamento, os médicos não aconselham esperar que o olfato e o paladar voltem sozinhos, pois acreditam que quanto mais precoce for o tratamento, melhor é a perspectiva de recuperação. Nas consultas, ouvem o relato dos pacientes e o comparam com os resultados de três testes psicofísicos, desenvolvidos pela Connecticut Chemosensory Clinical Research Center, Universidade da Pensilvânia e Universidade de Yale, que avaliam e graduam o nível de olfação.
Dependendo do caso, pedem exames de sangue, endoscopia nasal, tomografia ou ressonância magnética para descartar outros problemas. E quando necessário, receitam medicamentos como corticoides, vitamina A, citrato de sódio e ácido alfa-lipoico, embora a eficácia deles ainda não tenha sido comprovada para essa finalidade. Até agora, só o treinamento olfatório demonstrou realmente funcionar, já que a estimulação via nariz ajuda a refazer as conexões neurais no sistema nervoso central.
O treinamento é feito em casa e consiste em sentir cheiros de famílias olfativas distintas — cítrico, amadeirado, floral e resinoso — pelo menos duas vezes ao dia, até o sentido voltar. Podem ser usados kits prontos, óleos essenciais ou produtos caseiros, como Felipe fez. Não há riscos. O único cuidado é pedir para alguém que esteja com o olfato funcionando checar se os itens perecíveis, como suco de frutas cítricas, não estão estragados. No retorno das consultas, os testes são refeitos para acompanhar a evolução do tratamento.
Felipe, que viveu o problema na pele, alerta para o perigo da ausência do olfato, que vai muito além de comer alimentos deteriorados ou deixar uma preparação culinária passar do ponto. "Também há riscos associados a vazamento de gás, queimaduras no fogão, intoxicação ou início de incêndio, uma vez que a pessoa não tem esse cheiro de proteção". Para evitar que isso aconteça, o ideal para quem vive sozinho é usar um detector de fumaça.
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