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'Advogada das causas invisíveis' protegeu mais de mil excluídos na pandemia

 Juliana Hashimoto, advogada orientadora do Departamento Jurídico XI de Agosto e atuante junto a Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo - Rogério Fernandes/UOL
Juliana Hashimoto, advogada orientadora do Departamento Jurídico XI de Agosto e atuante junto a Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo
Imagem: Rogério Fernandes/UOL

Angelica Santa Cruz

Colaboração para o TAB, em São Paulo

29/11/2021 04h00

O paulistano Ruy Pereira de Oliveira, 59, e o recifense Joel de Araújo Aragão, 54, se conheceram fazendo bicos nas imediações do bairro do Glicério, no centro de São Paulo. Viraram grandes amigos. Joel tem deficiência auditiva -- só consegue ouvir quando o interlocutor se aproxima e fala muito alto. "Aos poucos, fui virando um tipo de intérprete para ele. Fico muito feliz, porque esse é um grande cara", diz Ruy.

A dupla integra um contingente imenso de brasileiros em situação instável de moradia. Quando consegue dinheiro, aluga um quarto em uma pensão. Se por algum motivo precisa fornecer um endereço, Ruy costuma informar o de um lugar onde fica sempre que pode, na rua Marquês de Itu. E Joel aponta o seu preferido, na rua 25 de março. Nos momentos de dinheiro curto, no entanto, os camaradas seguem para um dos abrigos públicos da cidade -- ou dormem na rua.

Ruy e Joel são sorridentes. Mas, quando a pandemia chegou, foram jogados em um mundo de desespero. Em abril de 2020, o governo federal anunciou a distribuição do auxílio emergencial, em cinco parcelas de R$ 600. Eles, no entanto, não conseguiam concluir o cadastro, àquela altura todo online, para pedir o benefício. O sistema acusava erro e, em seguida, travava. As agências do INSS não estavam funcionando, e todos os outros serviços aos quais costumavam recorrer, do Cras (Centro de Referência de Assistência Social) ao Centro POP (Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua) ou fecharam ou ficaram com atendimento tão restrito que a dupla se viu perdida.

Os amigos Ruy Pereira de Oliveira e Joel de Araújo Aragão - Rogerio Fernandes/UOL - Rogerio Fernandes/UOL
Os amigos Ruy Pereira de Oliveira e Joel de Araújo Aragão
Imagem: Rogerio Fernandes/UOL

Os amigos foram salvos quando "as curvas da vida", como define Ruy, os levaram até a advogada Juliana Costa Hashimoto Bertin. Ao longo da pandemia, e de modo fortuito, ela se transformou no único caminho para que uma multidão de sem-tetos de São Paulo pudesse vencer a truculência de uma burocracia estatal que fechou as portas. Na maior cidade do país, ela virou a advogada das causas invisíveis.

Juliana tem 39 anos, nasceu e cresceu no bairro da Mooca, na zona leste de São Paulo. É especialista em direito contencioso cível e arbitral. Em março de 2020, percebeu que seu trabalho ficaria suspenso enquanto os tribunais estivessem fechados. Pegou seu computador e o levou até a Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, no bairro onde mora. A ideia era ficar à disposição, para o caso de alguém precisar de ajuda no cadastro do auxílio emergencial. Enquanto os sem-teto apareciam para pegar o café da manhã distribuído na igreja do padre Júlio Lancellotti, ela se colocava à disposição.

Rapidamente, ficou abismada ao constatar como a pandemia potencializou todos os tipos de exclusão.

Doutora das Ruas

Juliana passou a trabalhar de domingo a domingo, fazendo cerca de 50 atendimentos por dia. "A implementação do auxílio emergencial foi uma tragédia. A cada dez atendimentos que eu fazia, cinco davam problema", diz.

Assim que foi liberado, o cadastro só podia ser feito por meio de um número de celular. E, claro, a maioria dos moradores de rua não contava com um. A advogada começou a pedir ajuda. "Gente do país inteiro acabou ligando para a Pastoral e fornecendo o número. Eu ficava na linha com a pessoa, ela recebia um código e a gente dava andamento", diz.

Outra camada de problemas, mais dramática ainda, veio em seguida: o contingente de indocumentados. Muitos não lembravam dos números do CPF e do RG, obrigatórios no cadastro. Ela, então, telefonava para cartórios de registros civis nas cidades dessas pessoas, para tentar uma via da certidão de nascimento. Com tudo fechado, era uma missão árdua. Em alguns casos, defensores públicos dos lugares se ofereciam para conseguir os documentos e enviar para a advogada.

Outras colaborações iam chegando. Juliana publicava nas redes sociais as dificuldades que encontrava. Um juiz viu os posts e a colocou em contato com uma colega do Tribunal de Justiça, que conseguiu os CPFs de dezenas de moradores de rua.

Juliana em atendimento na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco - Rogério Fernandes/UOL - Rogério Fernandes/UOL
Juliana em atendimento na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco
Imagem: Rogério Fernandes/UOL

Em pouco meses, a advogada tinha um relatório com dados de mais de mil pessoas. Era uma amostragem importante — e inédita — dos principais problemas de acesso da população mais vulnerável ao auxílio emergencial. Por isso, começou a ser procurada por entidades que queriam ajudar a resolver esses problemas.

Foi convidada a colaborar com grupos de trabalho no Conselho Nacional de Justiça, na Procuradoria da República para Direitos Fundamentais, Cidadania e Minorias de São Paulo e na Ouvidoria da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Em todos esses órgãos, era a voz da tragédia que acontecia nas ruas.

Acabou ganhando também uma inusitada importância institucional. "As Defensorias Públicas fecharam as portas e passaram a fazer atendimento apenas online. Eu brigava com eles: vocês estão de brincadeira! Como a população de rua vai chegar até vocês?", lembra. Depois de tanto insistir, as defensorias criaram um e-mail especial, apenas para que ela pudesse repassar os problemas que chegavam a seu conhecimento.

Era um imenso balaio de demandas: andamento de processos, pedidos empacados de BPC (Benefício de Prestação Continuada, concedido a quem comprova que não tem condições de garantir o próprio sustento), cadastros de auxílio-aluguel — e assim por diante.

Mil Mãos

A certa altura, o que começou com a iniciativa individual de abrir um computador nos fundos de uma paróquia virou uma rede de apoio da sociedade civil.

Maior instituição particular de assistência jurídica gratuita do país, o Departamento Jurídico XI de Agosto funciona no 17º andar de um edifício no centro de São Paulo, com vista para os fundos da Catedral da Sé -- e roda apenas com o trabalho voluntário de centenas de estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. "Quando soubemos do que ela estava fazendo sozinha, perguntamos se queria se juntar a nós", conta a universitária Maria Carolina Ferrari, ex-integrante da diretoria da entidade.

Ex-aluna do Largo de São Francisco, e também ex-estagiária do DJ -- como os universitários se referem à entidade --, Juliana topou na hora. "Aí mudou tudo. Meu trabalho passou a contar com outras mil mãos".

Juliana Hashimoto na Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo - Rogério Fernandes/UOL - Rogério Fernandes/UOL
Juliana Hashimoto na Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo
Imagem: Rogério Fernandes/UOL

Com ajuda dos outros voluntários, Juliana conseguiu judicializar mais de 100 demandas que estavam sem solução — e destravou cerca de 60 casos. Entre eles, o de Joel. Por conta de sua deficiência auditiva, a advogada sugeriu que ele pedisse também o BPC.

Tentaram fazer o cadastro para pedir o benefício ao INSS via internet, mas não dava certo. A advogada acabou impetrando um mandado de segurança pedindo que o INSS julgasse o pedido administrativo. Deu certo. "Ela me salvou! Eu nem sabia que tinha esse direito", diz Joel, em resposta à pergunta feita em voz altíssima por Ruy -- que acabou conseguindo seu auxílio emergencial sem precisar entrar na Justiça.

Juliana acabou também se transformando em advogada orientadora dos estudantes do DJ, um trabalho pro bono (sem honorários) ao qual dedica dois dias de sua semana. Guarda o andamento de todos os atendimentos dentro de saquinhos de plástico, organizados em seis pastas.

São relatos em juridiquês de histórias às vezes notáveis.

Juliana Hashimoto e estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco - Rogério Fernandes/UOL - Rogério Fernandes/UOL
Juliana Hashimoto e estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco
Imagem: Rogério Fernandes/UOL

Salvo-conduto

Ali está, por exemplo, o caso de Silete Mawulikplimi Djibom, músico que teve que fugir às pressas do Togo, pequeno país na África ocidental, depois de participar da onda de protestos contra um presidente cuja família se perpetuava no poder havia 50 anos. Há cinco anos, chegou ao Brasil. Apesar de ter diploma universitário em telecomunicações, por aqui resolveu apostar em um fascínio antigo: tocar órgão em igrejas. Virou um personagem singular de São Paulo. Conseguiu entrar para o curso de música da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e, para conseguir treinar, sai tocando nos instrumentos de várias paróquias da capital.

Hervé, nome de batismo pelo qual prefere ser chamado, adora tocar o magnífico órgão alemão com quatro teclados e cerca de seis mil tubos do Mosteiro de São Bento. Delira com o som classudo que sai do modelo, com 2.600 tubos, que está no Santuário de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, no Sumaré. E conhece todos os macetes do órgão digital da imensa Catedral da Sé (o original, com 12 mil tubos feitos a mão, está quebrado). Depois de tanta persistência, virou o organista da paróquia Santa Generosa, no Paraíso. Para conseguir emitir notas fiscais, abriu uma MEI.

Quando veio a pandemia, sofrendo com uma hérnia inguinal, tentou dar entrada no auxílio-doença. O pedido foi negado porque ele atrasou em alguns dias uma parcela da contribuição da MEI. Foi salvo por Juliana, que entrou com um recurso administrativo e conseguiu o auxílio-emergencial -- e agora está tentando o passaporte brasileiro para refugiados. "Eu sou uma das muitas, muitas pessoas que ela ajudou nesse período", diz.

O músico Silete Mawulikplimi Djibom - Rogerio Fernandes/UOL - Rogerio Fernandes/UOL
O músico Silete Mawulikplimi Djibom
Imagem: Rogerio Fernandes/UOL

Cada um dos seres humanos por trás daquelas folhas guardadas nos arquivos tem um papelzinho com o celular da advogada anotado. Alguns levam no bolso também declarações escritas e assinadas por ela, atestando que não têm endereço fixo, mas passaram pelo seu atendimento - um documento útil para que sejam bem tratados quando tentam resolver pendências em agências bancárias ou mesmo tirar um novo RG, por exemplo.

Por incrível que pareça, o salvo-conduto com a letra da advogada costuma mesmo evitar maus-tratos. É uma autoridade que ela acumulou depois de meses atuando na defesa de mais de mil excluídos.

"Eu inventei minha fé pública!", brinca ela.