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Daniela Pinheiro

REPORTAGEM

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O homem secreto de Bolsonaro

O almirante Flávio Rocha, durante o X Fórum Jurídico de Lisboa, na última segunda-feira (27), em Lisboa - Cláudio Noy/Divulgação
O almirante Flávio Rocha, durante o X Fórum Jurídico de Lisboa, na última segunda-feira (27), em Lisboa Imagem: Cláudio Noy/Divulgação

Colunista do UOL

02/07/2022 04h01

Este texto é parte da versão online da edição de sexta-feira (1º) da newsletter de Daniela Pinheiro. No conteúdo completo, a colunista fala sobre a exposição dedicada ao clitóris em Algés, as denúncias de pedofilia na Igreja Católica portuguesa e mais. Você pode ler o conteúdo completo aqui (apenas para assinantes). Para se inscrever e receber o boletim semanalmente, clique aqui.

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'O presidente me pediu para ajudar o Paulo Guedes'

Arthur Schopenhauer escreveu que a ignorância só degrada o homem quando ela se encontra em companhia da riqueza. Munida de bastante ignorância e com a resiliência daqueles que flertam com a pindaíba — o que me garantia a extrema-unção do filósofo alemão —, cheguei à festa de abertura do 10º Fórum Jurídico de Lisboa, na última segunda-feira (27), mais um evento com assinatura do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (que estava com covid-19 e não compareceu), no restaurante Ohka, no bairro de Santos, em Lisboa.

A 123 euros por cabeça, tinha-se direito à vista magnífica do Tejo, música bate-estaca tocada por um DJ de óculos escuros, petiscos, jantar, além de coquetéis e vinho servidos a rodo. Quase três anos longe do Brasil, acompanhando o noticiário com distância higiênica, haviam me privado de alguns personagens que passaram a povoar corações e mentes dos brasileiros de bem. Muitos deles estavam na festa. Eu, na minha suprema ignorância, não conhecia nenhum.

Estava sentada num canto com bom ângulo para a Ponte 25 de Abril e passagem estratégica de garçom, quando um jurisconsulto da área de compliance veio puxar papo. Dois minutos depois e a descoberta de uma dezena de colegas em comum, ele passou a me guiar por um mundo desconhecido. "Aquele é o ministro da Saúde", "aquele é o embaixador brasileiro", "aquele é o aspone do ministro tal", "o de cabelo branco bebendo é ministro também", "esse aqui é o presidente do Banco Central, que falou na palestra hoje que o Brasil nunca esteve tão bem", "o de chapéu é o Adams, ex-Advocacia-Geral da União da Dilma, o outro é o Kakay, advogado de Brasília, e o ministro Barroso, do STF..." Aí, eu o interrompi, já eram da minha época.

Também fazia parte do meu repertório Lucilia Diniz, ex-grupo Pão de Açúcar, dona de uma linha de produtos de dieta, casada com Luiz Carlos Trabuco, ex-presidente do Bradesco, que comia muitos salgadinhos, enquanto ela recusava todos, mas bebia mojito. "Mas, de todos eles, o mais importante é aquele ali", disse-me o advogado, apontando um homem corpulento, atarracado, rodeado por outros muitos homens de terno, que pendiam sobre ele como uma floresta de bambu. "É o homem secreto do Bolsonaro. Manda muito", completou.

Tratava-se do almirante Flávio Rocha, Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Seu gabinete, no terceiro andar do Palácio do Planalto, é colado ao do presidente. Nos últimos anos, estreitou os laços com Bolsonaro, que conta com ele quando quer colocar algum plano em curso ou ajeitar o desajeitado. Tudo depende da perspectiva. Em Schopenhauer, o mundo como vontade e representação. Foi assim quando foi chamado para substituir Fabio Wajngarten, na Secretaria de Comunicação do governo. É assim quando tem carta-branca para negociar a política externa do país no exterior, preterindo o Itamaraty.

Quando pedi informações sobre o almirante a uma cobra venenosa do colunismo político nacional — que segura o cachimbo com a mão esquerda —, ele me disse que só o conhecia por achá-lo um "sósia do Kim Jong-Un", o ditador da Coreia do Norte. Depois, explicou-me que "na verdade, ninguém o conhece bem. Sabe-se que vive no mundo das intrigas palacianas e viaja mais do que o chanceler". Desde que tomou posse, há pouco mais de um ano, o ministro das Relações Exteriores, Carlos França, fez 19 viagens ao exterior. O almirante, 21.

Público no 10º Fórum Jurídico de Lisboa, realizado na última segunda-feira (27) no restaurante Ohka, em Lisboa - Cláudio Noy/Divulgação - Cláudio Noy/Divulgação
Público no 10º Fórum Jurídico de Lisboa, realizado na última segunda-feira (27) no restaurante Ohka, em Lisboa
Imagem: Cláudio Noy/Divulgação

Fui me apresentar ao "comandante", como me foi dito que eu deveria tratá-lo. A menção "colunista do UOL" provocou a debandada de três dos oito indivíduos à volta. Rocha não estava nem aí. E começamos a conversar. Ele disse ter acabado de voltar de uma viagem de vinte dias a onze países do Oriente Médio e do Leste Europeu. Depois, ficou menos de 24 horas em Brasília e embarcou para os Estados Unidos para acompanhar Bolsonaro na Cúpula das Américas. Duas semanas depois, estava aqui em Lisboa. "O presidente me mandou ajudar o Paulo Guedes. Quem sou eu para ajudar o Paulo Guedes, né? Mas o presidente pediu, e eu faço", disse. Perguntei se o ministro da Economia não estava queimado. No exterior, ele era uma piada. "Naaada!', disse Rocha. Contou ter recebido a missão de ir para países em que achava ter futuro para investimentos. "Porque o foco do Bolsonaro é gerar emprego sem ser do Estado", comentou.

Segundo ele, chamou 50 empresários brasileiros, um avião de carga da Força Aérea foi adaptado para virar um voo "de econômica" e se mandaram para as arábias. "Daqui a dois meses, você vai ver a enxurrada de dinheiro que vai chegar aqui", disse. Em suas contas, "trilhões, trilhões. Eles estão desesperados para botar o dinheiro deles em algum lugar". O almirante disse que o interesse no país é enorme. "Todos esses lugares veem o Brasil como terra prometida. Não temos essa frescura de alinhamento com Otan, bloco comunista, essas coisas", afirmou. O fato de os supostos investimentos chegarem às vésperas da eleição faz diferença? "Ah faz!", comentou, abrindo um largo sorriso.

Segundo ele, Bolsonaro se reelegerá. E se perder, o que acontece? "Se perder, em dois anos, a desgraça será muito grande. Porque o Bolsonaro estava fazendo as coisas que o Temer começou, tipo reforma trabalhista, teto de gastos, o Brasil estava caminhando. E Lula vai parar tudo o que ele fez. Vai desfazer item por item. Eu não admito a mídia apoiar um ladrão desses", disse, se referindo ao candidato do PT.

Ele é da opinião que a "mídia brasileira afundou o país". Enquanto bebericava uísque aguado, disse entender que a mídia internacional queira "ferrar o Brasil", mas "a mídia brasileira parece que não tem filho brasileiro, mãe brasileira, avós brasileiros. O que ganham com isso?". Passou a comparar os dois candidatos que lideram as pesquisas eleitorais. Disse que o presidente não rouba, que é "um cara puro", que o problema dele é de "comunicação". Que nunca viu sinal de corrupção no governo porque "quando o presidente chama um ministro, chama também alguém da PF, do Ministério Público, a sala está sempre cheia". Perguntei sobre o senador Flávio Bolsonaro, o 01, e sua casa de 6 milhões de reais. "Aquela casa foi financiada, pelo amor de Deus. Não é nada cara!". Em sua opinião, Lula "rouba por hábito".

Um homem de cabelo escovinha e casaco de náilon preto se aproximou. O almirante se dirigiu a ele como "meu ministro predileto". A minha ignorância era inadmissível. "Ah, desculpe-me, mas o senhor é ministro do que mesmo? Eu moro aqui e não conheço mais ninguém no governo", disse. Ele foi rápido. "Do Meio Ambiente. Mas, no Brasil, ninguém me conhece também, não". Perguntei ao ruralista Joaquim Álvaro Pereira Leite, o ministro, sobre as investigações do assassinato do indigenista Bruno Araújo e do jornalista inglês Dom Philips, criticadas em todo mundo pela demora e enrolação. "Em dez dias, o governo prendeu quem os matou. Agora vai chegar no mandante. A investigação está andando", disse-me. Comentei que as informações eram conflitantes, imprecisas, e a pressão internacional era forte. O ministro passou a dizer que o caso era exclusivamente ligado ao tráfico de drogas. "Internacionalmente é europeu consumindo droga."

Mesa de som com músico e DJ durante o X Fórum Jurídico de Lisboa, na última segunda-feira (27), no restaurante Ohka, em Lisboa - Cláudio Noy/Divulgação - Cláudio Noy/Divulgação
Imagem: Cláudio Noy/Divulgação

Disse que naquela região não há crime ambiental, nem de mineração ou desmatamento, por se tratar de uma das mais isoladas do país. Que também há pouquíssimo tráfico. O que teria acontecido, disse ele, é que se tratava de um corredor do tráfico, que liga o Peru ao Brasil. "Essa rota tem uns 40 anos", completou o almirante. De repente, ele começou a cantarolar: "A correnteza está levando aquela flor....Lálálá?" E completou: "Só que eles usam essa correnteza, essa locomotiva para transportar droga". O ministro acrescentou que os pescadores que os mataram "não mataram a troco de nada" e, portanto, há um mandante ligado ao tráfico internacional que será preso em breve. Quando ia insistir em outra pergunta, o ministro virou as costas e saiu. Foi quando percebi que um fosso havia sido criado ao nosso redor. Não havia vivalma à nossa volta. Era como se eu o almirante emanássemos alguma doença contagiosa. "É porque você é jornalista!", disse ele, se esborrachando de rir. Rocha chama os interlocutores — homens ou mulheres — de "cara", "bicho", "amigo". E insiste: "Me chama de Flávio". Dá gargalhadas monumentais mesmo com piadas pedestres, o que lhe confere um ar simpático e bonachão.

Um garçom colocou um bandeja de salgadinhos à frente do almirante. O prato tinha forma de uma paleta de pintura, e o rapaz a equilibrava com a força do polegar que saía de um buraco na madeira. "Aiiiiii, não!!!", gritou o garçom, quando Rocha lhe puxou o dedão, achando se tratar de uma coxinha. Houve uma gargalhada geral, que durou minutos.

Caía a noite, o DJ aumentara o volume do bate-estaca, procurava-se em vão lugares nas mesas para o jantar, as gargalhadas do ambiente impediam qualquer conversa. Era hora de ir embora. De longe, acenei para o almirante, que estava novamente cercado de engravatados. Ele deu adeuzinho e fez o sinal de Hang Loose, encostando no ouvido a mão com o polegar e o mindinho em riste — vestígios de uma época distante, quando todo mundo sabia que isso significava "liga aí depois".

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