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Daniela Pinheiro

REPORTAGEM

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'Estudos sobre a cannabis dependem da ideologia de quem os faz', diz expert

João Goulão, diretor do SICAD, de Portugal - Divulgação
João Goulão, diretor do SICAD, de Portugal Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

23/07/2022 04h01

Este texto é parte da versão online da edição de sexta-feira (22) da newsletter de Daniela Pinheiro. No conteúdo completo (apenas para assinantes), a colunista fala sobre a situação do prédio da Embaixada do Brasil em Lisboa, o único evento agendado até agora para a comemoração do bicentenário da Independência do Brasil e mais. Para se inscrever e receber o boletim semanalmente, clique aqui.

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'A cannabis não é uma substância inócua'

Logo que cheguei aqui, perguntei a um português muito inteligente o que ele achava que o país produzia de melhor. "Queijo, azeite e o João Goulão", disse-me. Achei que se tratava da marca de alguma iguaria local, mas ele se referia a um dos maiores especialistas em combate às drogas no mundo.

O doutor Goulão é o Doctor Fauci português, mas na área dos entorpecentes. Se o americano se mantém como inabalável timoneiro dos rumos da saúde nos Estados Unidos há décadas, independentemente de governos ou presidentes, de pandemias ou gripezinhas, o mesmo ocorre aqui. Há mais de 20 anos, a política antidrogas portuguesa tocada por Goulão é referência internacional, estudada, citada e copiada. Tem como ponto nevrálgico a descriminalização do uso de entorpecentes.

A ideia é que se deve identificar e atacar as razões que podem e levam ao vício antes de se pensar em punir o usuário. Também que é impossível imaginar solução para o problema sem haver uma rede efetiva montada pelo governo, em várias instâncias, para a recuperação e reinserção social duradoura. É deixar de ver o uso de drogas como crime e passar a tratá-lo como questão de saúde pública.

Nos anos 80, Portugal viveu uma epidemia de heroína pouco comparável a outras nações do mundo. A ditadura salazarista mal havia terminado, e junto com a abertura do país chegaram as drogas pesadas. Era um problema que perpassava todas as classes sociais, diferentes faixas etárias e não poupava homens ou mulheres. A essa altura, uma pessoa morria por dia vítima de overdose no país, e o índice de infecções por HIV era o mais alto da Europa.

A situação era tão complicada que, em uma reunião de ministros do governo da época para tratar do assunto, todos mencionaram ter algum parente ou conhecido viciado. Se era assim na classe alta, imagine o que se passava na base da pirâmide. "Era praticamente impossível encontrar uma família portuguesa que não tivesse problemas relacionados às drogas", disse-me João Goulão, que é diretor do SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências). Atualmente, Portugal é um dos países com menor índice de consumo de drogas do mundo.

Em uma manhã recente, Goulão despachava em sua sala enfeitada com fotos suas em companhia de autoridades (desde o papa Francisco ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso). Ele é sóbrio, discreto e tem a fala mansa. Começou dizendo ter visitado a "cracolândia" há alguns anos. Acredita ser impossível resolver aquele problema sem uma abordagem parecida com a que fizeram por aqui.

No auge das "heroinalândias" portuguesas, a estratégia era assim: se fosse apanhada comprando ou usando drogas, a pessoa era levada para a delegacia. Ali, era entrevistada por uma junta de especialistas em comportamentos aditivos e dependência química. A droga apreendida era pesada, o que qualificava o uso como pessoal ou tráfico (se fosse a última opção, o caso corria para a Justiça. O uso foi descriminalizado, mas não despenalizado) com base numa tabela. Se pessoal — cuja quantidade era contabilizada sobre o que seria o uso durante um período de dez dias —, o usuário era convidado a se apresentar em uma das comissões formadas por uma equipe técnica (jurista, psicólogo, assistente social), onde dava "entrada" no sistema de saúde para começar a ser acompanhado.

Em menos de seis meses, o governo montou uma comissão dessas em todos os 18 distritos do país, além das ilhas dos Açores e da Madeira. Treinou em tempo recorde centenas de profissionais, que se tornaram autoridades locais na identificação do problema. Uma lei de descriminalização foi aprovada pelo parlamento. "A ideia é buscar entender o que está por trás do uso da droga. Problemas pessoais que estão coexistindo com o consumo — às vezes questões de família ou com próprio gênero — e a intervenção é feita ali, antes que ele evolua para um consumo mais pesado", explicou Goulão.

Perceberam que o usuário dificilmente procuraria tratamento ou apoio psicológico por conta própria, mas, uma vez lá, a maioria absoluta continuava o processo. Essa ideia de que havia uma "luz no fim do túnel", que a pessoa era tratada e acolhida, que o Estado se importava com ela, que ela poderia, sim, ter uma oportunidade de mudança de vida e hábitos para um estilo de vida mais saudável e até um emprego, redefiniram a sociedade portuguesa. Até hoje, a estratégia é um sucesso.

A heroína deixou de ser um problema em Portugal. Entretanto, a cocaína cresce, o crack está chegando entre a população de baixa renda, mas ainda é a cannabis a droga mais consumida no país (e no mundo). Goulão vê com desconfiança a urgência em se legalizar a cannabis para uso recreativo. Haveria uma certa desonestidade intelectual no debate quando se coloca no mesmo balaio a medicinal — cuja dosagem, intensidade e frequência são controladas — e a recreativa. Para ele, ainda pairam muitas dúvidas sobre a pertinência da medida no momento atual e sobre os reais impactos na saúde mental dos usuários.

Experiências como o Uruguai e Amsterdã, ele disse, são consistentes e devem ser observadas com lupa. Entretanto, "os efeitos reais em termos do impacto na saúde pública ainda estão em curso". Há inúmeras questões que precisariam ser ainda debatidas com propriedade. Por exemplo, a idade mínima. Como o mercado se comportaria em termos de fornecer cannabis a menores de idade?

O fato de as gigantes do tabaco estarem apostando na legalização da cannabis, de olho na comercialização é, segundo ele, outro sinal de que se deve refletir um pouco mais. "É preciso ter claro o que é o peso do interesse econômico do que realmente importa para a saúde pública."

Para ele, vende-se uma ideia errônea de que a cannabis é uma substância inócua. "Não o é", disse. Segundo ele, tem relação com surtos psicóticos e pode até influenciar na piora de um quadro de esquizofrenia. Comentei com Goulão que ficava confusa com a quantidade de estudos diferentes publicados sobre o tema. Havia para todos os gostos. Recentemente, um dizendo que quem tem mais de 60 anos pode fumar maconha sem problemas, outro que falava dos males da droga no cérebro de adolescentes, mais um que afirmava que era mais danosa do que o álcool. O que era fato, afinal? "A literatura sobre a cannabis é muito influenciada por por questões ideológicas. Depende de quem a faz", afirmou. "O fato é que as evidências científicas sobre o real impacto ainda são muito limitadas."

Perguntei qual seria a melhor maneira de conversar com os filhos sobre o assunto. Fez-se um longo silêncio. Em seguida, ele disse que seus três filhos (dois na faixa dos 40 e uma com 17) nunca tiveram problemas com o assunto até por terem muita informação em casa. A diferença é que os mais velhos viram de perto a degradação proporcionada pelas drogas em amigos e conhecidos. Já a geração da mais nova vive um outro momento, o das drogas sintéticas, associadas a um estilo de vida glamuroso, divertido e "que parece pertencer a vidas de grande intensidade". E, no caso, a legalização da cannabis complica um pouco a conversa. "Como argumentar com um adolescente para que ele não use a droga se ela serve para tratar doenças?", indagou. Segundo ele, a conversa tem que acontecer no âmbito das escolhas pessoais e das consequências dessas escolhas.

Sob sua supervisão, o governo lançou um programa chamado "Eu e Eles" nas escolas do país. Na sala de aula, orientadores treinados promovem discussões sofismáticas sobre situações hipotéticas, que fazem com que os jovens sejam confrontados com questões que podem ensinar algo sobre usar ou não drogas. Um exemplo de debate é a discussão sobre uma festa de aniversário de um jovem de 16 anos. Começam com a pergunta para todos: "Vamos fazê-la em casa ou num espaço público?". E a turma conversa sobre os prós e contras de cada uma. "Se em casa, servimos bebida alcoólica ou não?". Se sim, há o risco de alguém vomitar no sofá. Se não, os amigos vão achar a festa sem graça. E então? "É uma discussão muito rica sobre escolhas, riscos e enfrentamento de consequências, que pode ser aplicada em várias instâncias com diferentes exemplos", afirmou.

Além do trabalho de substâncias ilícitas, Goulão passou a se dedicar à nomofobia — como os médicos já tratam o medo de ficar sem o celular, consequência do uso abusivo da internet, computadores, smartphones e outros aparelhos eletrônicos. "É uma questão extremamente séria", disse.

Na hora de me despedir, avistei sobre sua mesa dois pequenos pacotes de Heets — que eu não tinha ideia do que se tratava. É como se fosse um maço de guimbas, que são encaixadas num estojo com cara de caro e fumadas como se fosse cigarro eletrônico. Segundo a Wikipédia, o Heets é "um produto de tabaco aquecido a uma temperatura mais baixa do que os cigarros convencionais. Esses produtos contêm nicotina, que é uma substância química altamente viciante". Quis saber de Goulão se ele fumava. "Pois é, fumo", respondeu entortando os lábios para baixo.

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