Topo

Lidia Zuin

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Sobrevivencialismo é caminho válido para mudar nossa sociedade?

Julio Lobo, do canal Sobrevivencialismo - Instagram/Reprodução
Julio Lobo, do canal Sobrevivencialismo Imagem: Instagram/Reprodução

Colunista do TAB

10/03/2021 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Darwinismo social foi uma corrente ideológica que visava aplicar as leis da teoria da seleção natural de Charles Darwin na vida e na sociedade humanas. Um dos teóricos mais populares dessa vertente foi o filósofo inglês Herbert Spencer — o verdadeiro criador da expressão "sobrevivência dos mais aptos", que mais tarde seria adotada por Darwin.

Como explica Maria Augusta Bolsanello em artigo publicado na revista Educar, de 1996, "o darwinismo social considera que os seres humanos são, por natureza, desiguais, ou seja, dotados de diversas aptidões inatas, algumas superiores, outras inferiores. A vida na sociedade humana é uma luta 'natural' pela vida, portanto é normal que os mais aptos vençam".

O darwinismo social, na visão de Bolsanello, sempre esteve associado "a uma apologia do laissez-faire econômico e social, a uma defesa da sociedade capitalista", mas logo se vinculou a ideologias eugênicas e racistas para justificar essa diferença a nível biológico (e supostamente científico) para defender uma superioridade imaginária de certas raças ou indivíduos sobre os demais. Isso se estende à maneira como os próprios brasileiros eram vistos no século 19, quando Darwin chegou a vir para o Brasil, assim como outros observadores europeus.

Enquanto o biólogo fez anotações sobre a fauna e a flora nacional, bem como sua indignação diante da violência perpetrada contra pessoas escravizadas, outros visitantes como o conde Gobineau (embaixador da França no Brasil), descreveu o país como "uma multidão de macacos", "um mundo estagnado na própria imbecilidade" e afirmou que os casamentos interraciais produziam "uma degenerescência do mais triste aspecto" (apud Bolsanello).

Apesar disso, alguns intelectuais brasileiros do século 19 e 20 absorveram essas observações racistas para explicar por que o país enfrentava tantas dificuldades econômicas e sociais à medida que o processo de industrialização se instaurava no país. Como explica Bolsanello, "partia-se do princípio de que, se o brasileiro não tinha conseguido promover o desenvolvimento adequado do país, seria por ter-se tornado preguiçoso, ocioso, indisciplinado e pouco inteligente devido ao calor e mistura com raças inferiores. Era necessário resolver o problema racial, uma vez que contra o clima nada poderia ser feito."

De forma semelhante, na África do Sul, grupos como o Suidlanders têm se organizado como uma comunidade que se prepara para um suposto genocídio branco, também conhecido como "Uhuru" ou "A noite das facas longas". Em reportagem da CNN, um dos membros comenta que "é possível ver como o clima revolucionário está crescendo no nosso país. Quando a anarquia começar, nós fugiremos. Moisés foi apenas um homem e ele possibilitou a fuga de seu povo. Vocês são todos como Moisés agora." Para isso, os Suidlanders precisam aprender a sobreviver em condições extremas — e como usar as armas.

Por outro lado, também há pessoas como a Afrovivalist, que adota esses preceitos sobrevivencialistas a partir do outro espectro racial. Em um episódio da série "Follow This" do Buzzfeed para a Netflix, a jornalista Bim Adewunmi entrevista a blogueira e contextualiza o caso dos afroamericanos que, historicamente, sempre foram oprimidos pelo governo ocidental — e isso não mudou muito mesmo na história recente.

Quando o Furacão Maria passou por Porto Rico em 2017, quase 3 mil pessoas morreram. Apenas em julho de 2018, a Agência Nacional de Administração de Emergências nos EUA assumiu que sua resposta ao desastre foi inadequada. No Michigan, a cidade de Flint não havia tido seu encanamento totalmente substituído mesmo depois de quatro anos desde a crise de fornecimento de água, e assim por diante.

Sobrevivencialismo

O TAB produziu, recentemente, um documentário focado em sobrevivencialistas brasileiros. Os entrevistados contam como esse estilo de vida se baseia em cinco pilares: defesa, resgate, autossuficiência, sobrevivência e liberdade individual. Segundo eles, vivemos em um tecido social muito frágil, e qualquer evento — seja ele grandioso ou pequeno — pode repercutir em uma calamidade ou até na nossa própria extinção.

No caso da pandemia, os sobrevivencialistas comentam que, por terem esse estilo de vida, eles sequer foram atingidos pela crise e que sua estratégia de estocar alimentos e suprimentos já não parecia mais tão descabida quando as pessoas começaram a fazer o mesmo diante do risco de desabastecimento das lojas em março de 2020.

Apesar de alguns sobrevivencialistas afirmarem que não adotaram esse estilo de vida por conta de questões sociais, ainda assim eles demonstram falta de confiança no governo, nas instituições ou em qualquer pessoa que "esteja para além dos muros de sua casa", como afirma o youtuber Batata. "Para mim, o coletivo não funciona. Vai ter muito parasita ali dentro. E o Estado? Para mim, o Estado também é inimigo. Eu não vou pegar tudo que eu fiz aqui e compartilhar com todo mundo. Não vai rolar. Muito pelo contrário, tem uma porta de aço ali para dar um tiro em alguém que tentar pegar o meu", diz.

Já Júlio Lobo, outro entrevistado e também youtuber, a violência e a insegurança enfrentada pelo brasileiro é mais um motivo pelo qual deveríamos repensar nosso estilo de vida nas cidades e considerarmos a possibilidade de nos armar:

"A população clama por uma forma de se defender contra as pessoas, e não há justificativa que me compre dizendo que o crime é apenas um sintoma de um sistema corrupto e, por isso, os criminosos são quase que vítimas desse processo. (...) Eu acho que a violência tende a aumentar porque a disparidade social tende a aumentar — e essa visão que é individualista, na verdade, ela é bastante normal. Ou seja, se eu quero uma arma para proteger minha família, se eu quero comida estocada pra que eu não passe fome, isso não é um egoísmo, não é uma visão ruim, porque se meu vizinho fizer o mesmo, ele também é mais forte. Sociedade forte só é construída por indivíduos fortes, indivíduos que sabem se proteger, que sabem o que querem, que sabem prover os seus recursos. (..) Não dá pra construir uma sociedade forte baseada na opinião de indivíduos vulneráveis."

Como surgem as sociedades

Júlio vive em uma instância com cerca de 20 famílias, sendo a maioria delas composta por atiradores. Para ele, o Brasil padece do ovelhismo, o que definiu como a "cultura da não-reatividade às situações." O sobrevivencialista ilustra com um exemplo de assalto, em que a pessoa recorre à autoridade (no caso, a polícia) para que resolva o problema. Mas alega que eles não só não resolvem como também promovem essa falta de reatividade.

Acontece que a polícia se divide em "órgãos do Estado que têm a finalidade constitucional de preservar a ordem pública, de proteger pessoas e o patrimônio, e realizar a investigação e repressão dos crimes, além do controle da violência." Isto é, qualquer formação de grupos armados para defesa fora do respaldo do Estado se define como milícias — que, historicamente, podem ser descritas como "organizações militares ou paramilitares compostas por cidadãos comuns armados que, teoricamente, não integram as forças armadas de um país." No contexto brasileiro, porém, o termo se desenrola em outros significados que não se limitam a essa definição, como explica o artigo do site Politize.

Em "História da Solidão e dos Solitários" (2019), do historiador francês Georges Minois, acessamos um panorama histórico dos indivíduos e comunidades que escolheram viver totalmente reclusos (como os eremitas) ou então em comunidades de reclusos, como os cenobitas. Originalmente ligados à prática religiosa, os eremitas, ao longo da Idade Média, passaram a ser na verdade pessoas expulsas da vila por ter cometido algum crime — e então, excomungados pela Igreja.

Com o tempo, como explica Minois, entendeu-se que viver recluso não só era algo muito difícil em termos de sobrevivência como também não era favorável para a própria saúde mental, o que justifica a formação dessas comunidades de eremitas que se ajudam entre si. Em outras palavras: o ser humano nunca se deu bem com a solidão completa e o motivo pelo qual nos organizamos em sociedades após nos assentarmos enquanto espécie tem a ver com a cooperação entre pares, para se conquistar o bem-estar comum.

Acontece que, com as revoluções industriais e o surgimento do liberalismo e capitalismo no ocidente, fomos ensinados a acreditar na ideia do "self-made man", o indivíduo que, sozinho, conquista todos os seus bens e sucesso — e que não precisa de ninguém para isso. Daí para a meritocracia é apenas um passo.

Com o desenvolvimento da teoria de Charles Darwin sobre a evolução das espécies e a noção de sobrevivência dos mais aptos, também veio a filosofia de Nietzsche e a ideia do super-homem que foge da mentalidade de rebanho para conquistar sua melhor forma. Daí para o fascismo e o nazismo foi apenas um passo. O darwinismo social e a eugenia, portanto, foram a resposta que Hitler trouxe enquanto narrativa de sobrevivência dos mais aptos (arianos) diante de uma realidade tão degenerada quanto certos povos que a compõem (judeus, negros, gays, pessoas com deficiência etc). Só que, em vez de chegar ao poder e organizar campos de concentração, sobrevivencialistas como os Suidlanders, na realidade, se retiram e formam sua comunidade que estará pronta quando chegar a hora de sujar as mãos.

No documentário do TAB, o que se vê entre os entrevistados são argumentos sociais ao observar a instabilidade da nossa sociedade e a falta de confiança nas instituições e nas pessoas, em geral. Por outro lado, tanto Minois quanto Douglas Rushkoff, em seu livro "Team Human", reforçam como a formação de comunidades foi importante para a sobrevivência da espécie humana e não o contrário. Nas palavras de Rushkoff:

"A sobrevivência do mais apto é uma forma conveniente de justificar o ethos assassino de um mercado, cenário político e cultura competitivos. Mas essa perspectiva interpreta mal as teorias de Darwin, assim como de seus sucessores. Ao ver a evolução através de uma lente totalmente competitiva, nós ignoramos o contexto maior do nosso próprio desenvolvimento social e temos dificuldade em entender a humanidade enquanto um grande time interconectado. As mais bem-sucedidas criaturas biológicas coexistem mutualmente, em ecossistemas benéficos. É difícil para nós reconhecer tal cooperação tão extrema. Nós temos a tendência a ver a vida de forma isolada: uma árvore é uma árvore e uma vaca é uma vaca. (...)

Rushkoff também dá o exemplo de que Darwin observou como o gado selvagem pode tolerar apenas uma breve separação de seu rebanho, de modo que os "'individualistas' que desafiam a autoridade do líder ou se afastam do grupo foram capturados por leões famintos. Darwin generalizou que a conexão social era um 'produto da seleção'. Em outras palavras, trabalho em equipe era uma estratégia melhor para a sobrevivência de todos do que a competição.

Caso contrário, se nos atomizarmos cada vez mais, corremos o risco de nos encaminhar ao que o sociólogo Émile Durkheim chama de "anomia", isto é, a ausência ou desintegração das normas sociais. Segundo ele, "a única força capaz de servir de moderadora para o egoísmo individual é a do grupo; a única que pode servir de moderadora para o egoísmo dos grupos é a de outro grupo que os englobe", de modo que a liberdade é constituída através da "subordinação das forças exteriores às forças sociais." Ao abandonarmos a solidariedade, o respeito às regras comuns, às tradições e práticas, corremos o risco de cair num estado de anomia e, assim, regredir para um cenário caracterizado pelas piores qualidades dos sistemas feudais.